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Edição 18

O que nos espera depois da pandemia?

Nos debates sobre o futuro, ganham espaço o discurso anticapitalista e as antigas utopias para reinventar o mundo

Selma Santa Cruz
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Ninguém poderia imaginar que duraria tanto. Que, quatro meses após a imposição do confinamento, ainda continuaríamos isolados e com quase tudo paralisado ao redor. Estima-se que entre um terço e metade dos 7,8 bilhões de habitantes do planeta tenham ficado recolhidos em casa, simultaneamente, no final de abril. Mas não adiantou. Não só não se vislumbra o fim do pesadelo, como temos sido sobressaltados por alertas cada vez mais assombrosos: há o risco de novas ondas; talvez as vacinas não se mostrem totalmente eficazes; e as sequelas da covid-19 podem ser mais graves do que se supunha.

Enquanto isso, o mundo como o conhecemos entra na lista de vítimas. Vai desmoronando em câmera lenta, com o desaparecimento de milhões de empregos e empresas por toda parte, a multiplicação de famílias sem renda e moradia, uma geração inteira fora da escola, a miséria se disseminando como peste. O que esperar depois de uma ruína dessa magnitude? A discussão sobre como sair do inferno provocado pelo vírus, o lockdown e a gestão irracional da crise vêm acirrando a já intensa polarização ideológica, ao pôr em confronto visões radicalmente antagônicas.

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Enquanto pragmáticos focam programas imediatos para reativar a economia, e pensadores da inovação propõem reformas estruturantes para tirar partido da transformação digital, o autodenominado “campo progressista” quer aproveitar para virar a mesa. Tenta resgatar surradas utopias para solapar o modelo do capitalismo liberal consagrado no Ocidente desde o pós-guerra — e que parecia ter se provado de vez, após o colapso dos regimes comunistas, na década de 1990.

O otimismo inicial em relação à chamada “retomada em V” durou pouco

Grandes crises, lembram os historiadores, costumam trazer grandes consequências. Como a Grande Depressão da década de 1930, um período de convulsão social e política que desembocou na ascensão do nazismo e na 2ª Guerra Mundial. Por enquanto, grande parte dos países tem conseguido conter a falência do sistema despejando dinheiro em suas economias e tentando garantir a sobrevivência dos desempregados por meio de auxílios emergenciais. Só no Brasil, foram até agora R$ 200 bilhões. Nos Estados Unidos, os pacotes somam mais de US$ 3 trilhões e há outros a caminho. Já a União Europeia aprovou, na semana passada, um fundo comum de € 1,8 trilhão, equivalente a R$ 11,5 trilhões.

Mas sabe-se que esse tipo de estímulo fiscal e transferência de renda não poderá perdurar indefinidamente. Nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte do auxílio deve expirar nos próximos dias e especula-se como reagirão as pessoas destituídas de quaisquer meios de sobrevivência. A preocupação parece pertinente também no Brasil, onde mais de um terço da população passou a depender dos repasses do auxílio emergencial.

Também não há certezas sobre quais serão os resultados práticos desse volume sem precedentes de estímulos para a recuperação da economia global. O otimismo inicial em relação à chamada “retomada em V” durou pouco. As analogias agora são com um U, para os prognósticos de que ela levaria meses ou alguns anos; um W, levando-se em conta o risco de novos surtos da pandemia e uma crise financeira; ou até mesmo um L, sinalizando um longo período de contração. “No momento, há muito mais coisas que não sabemos do que coisas que sabemos”, alertou dias atrás o fundador da Bridgewater Associates, o maior hedge fund do mundo, Ray Dalio, durante evento promovido pela XP.

“Não queremos reformas, queremos uma nova sociedade”, bradam os ativistas de esquerda

O desafio será reativar as economias de forma sustentada, com estratégias voltadas à recuperação dos investimentos do setor privado. Pois, embora a maioria dos economistas venha apoiando essa maciça intervenção estatal diante da excepcionalidade da crise, grande parte dos países já enfrenta taxas de endividamento próximas ou superiores ao PIB — caso do Brasil, dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido, entre outros. Terão, portanto, capacidade limitada de sustentar essas despesas, caso a pandemia se prolongue, aprofundando a depressão e minguando a receita dos impostos. Afinal, como gostava de lembrar a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher, não existe “dinheiro público” — ele é sempre subtraído do trabalho ou do investimento de alguém.

A questão, portanto, é quem acabará pagando a conta. E quais setores serão beneficiados com tamanho manancial de recursos públicos. Um ponto especialmente crítico no Brasil, dado nosso histórico de corrupção, o sistema político disfuncional e o passivo acumulado de problemas básicos nunca resolvidos, como as carências em educação, saúde e infraestrutura. Com a economia encolhendo pelo menos 4,5% neste ano, depois de uma década de estagnação, ficará ainda mais desafiante fechar as contas e administrar os interesses em conflito sem provocar turbulências sociais e políticas.

A tendência à radicalização, aliás, já é evidente na Europa e nos Estados Unidos, e vem sendo comparada à da década de 1930, provocada pela depressão global que sucedeu ao crash da Bolsa de Valores de Nova York. Na arena política e das ideias, ganha força o discurso revolucionário dos meios acadêmicos e ativistas, ecoado pela grande mídia. “A esquerda está redesenhando o mundo”, opinou recentemente uma articulista do The New York Times, citando os movimentos a favor do fim da polícia, do fechamento das prisões e do cancelamento do pagamento de aluguéis, que se disseminaram nos últimos meses pelo país. “Não queremos reformas, queremos uma nova sociedade.”

A radicalização da esquerda será uma das tendências globais para 2021

A ofensiva da esquerda norte-americana ganhou tração também com a recente onda de ocupação de espaços públicos por grupos de extremistas, à moda da antiga Occupy Wall Street, que fez escola pelo mundo após a recessão de 2008. Desde os protestos antirracistas de março, multiplicaram-se zonas que se proclamam “livres” e “independentes” dos governos locais, como a do bairro do Capitólio, em Seattle, capital do Estado de Washington, que se manteve durante um mês, antes que as autoridades resolvessem recuperar o espaço público após a ocorrência de assassinatos. Nesta semana, a polícia de Nova York também teve de desocupar a área em frente ao City Hall, prédio da prefeitura, transformada em acampamento de ativistas e sem-teto. E agentes federais foram enviados a cidades como Portland e Chicago para conter manifestações violentas.

Por trás desta onda contestatória, segundo diversos institutos de pesquisa respeitados, estaria a crescente adesão da juventude norte-americana ao socialismo — uma dessas pesquisas, a da Harris Poll, indica que praticamente um em cada dois norte-americanos nascidos depois de 1981, mais exatamente 49,6% deles, preferiria viver em um país socialista. Por mais surpreendente que pareça, considerando-se o confortável padrão de qualidade de vida da imensa maioria da população local, conquistado justamente graças ao sistema capitalista, o dado explica a popularidade de políticos socialistas como o senador e ex-pré-candidato à Presidência Bernie Sanders e o status de celebridade conquistado pela musa da esquerda local, a deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez.

Mas o fenômeno não se restringe à América do Norte. Segundo a revista Forbes, a radicalização da esquerda será uma das tendências globais para 2021. O que fica evidente para quem acompanha a mídia internacional e a safra recente de livros de não ficção dos dois lados do Atlântico, onde predominam obituários das economias de mercado. Na abastada Europa, chega-se a defender uma “economia do decrescimento” e a redução do consumo — sem levar em conta os milhões que ainda não tiveram acesso aos benefícios da economia de mercado que se pretende abolir. Já no Brasil, fala por si só o destaque dado pela grande mídia às propostas radicais do candidato à prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores sem Teto e da frente de esquerda Povo Sem Medo — aquele que nunca foi eleito para nenhum cargo público e ficou em décimo lugar na eleição presidencial de 2018.

As elites intelectuais parecem empenhadas em destruir um sistema que conseguiu alavancar todos os indicadores de desenvolvimento

Parece consenso que, embora o mundo não vá mudar radicalmente após a covid-19, muitas transformações aceleradas pela pandemia podem ter vindo para ficar. Como o aumento do comércio on-line e do trabalho remoto, que acarretaria mudanças em cadeia nos fluxos de mobilidade e na reorganização do espaço urbano nas grandes cidades dos países desenvolvidos, devido à desocupação de prédios comerciais, estacionamentos e shopping centers. Estudos indicam que nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 37% dos empregos poderiam ser definitivamente transferidos para home office. Nesse contexto, surgem propostas para redirecionar parte dos investimentos destinados à retomada a empreendimentos da chamada “nova economia”. No caso do Brasil, por exemplo, com o objetivo de promover desenvolvimento tecnológico e segmentos de maior valor agregado, com vistas à superação da dependência da exportação de commodities.

Como diz o adágio que já se tornou chavão, crises trazem, de fato, oportunidades. Nenhum democrata bem informado pode se fechar à análise de novas ideias. Nem desconsiderar a necessidade de aperfeiçoamentos ou reformas no modelo do capitalismo liberal, cuja força tem sido, justamente, sua capacidade de evoluir com o tempo, sem rupturas destrutivas, adaptando-se às novas potencialidades da economia e demandas sociais de cada época. O que surpreende é o empenho, justamente por parte das elites intelectuais, em destruir um sistema que conseguiu alavancar todos os indicadores de desenvolvimento econômico, social e humano nas últimas décadas, com a redução da miséria, do analfabetismo, da mortalidade infantil e das desigualdades, além do aumento da longevidade.

Em seu último livro, O Novo Iluminismo — Em Defesa da Razão, da Ciência e do Humanismo, o neurocientista e professor da Universidade Harvard Steven Pinker, autor de mais de uma dezena de obras aclamadas internacionalmente, investiga esse paradoxo. Depois de elencar uma longa lista de dados que atestam a incontestável prosperidade do mundo na virada do século 20 para o 21, ele especula que a tendência do cérebro a memorizar fatos negativos pode explicar a ênfase obsessiva da mídia e da intelectualidade nos problemas, ignorando aspectos positivos, numa espécie de pessimismo atávico e negação do progresso. Isso acabaria, contraditoriamente, por desvalorizar a razão, a ciência e o humanismo, justamente os valores que possibilitaram essas conquistas civilizatórias e constituem a base para novos avanços.

O capitalismo com certeza não é um sistema perfeito. Porém, numa analogia com a célebre frase de Winston Churchill sobre a democracia, ainda não se conseguiu inventar alternativa melhor. Além do fato de que todos os experimentos de engenharia social e política já tentados para substituí-lo acabaram fracassando redondamente, a um custo imensurável em vidas, sofrimento e opressão totalitária. Portanto, entre a evolução e a revolução, melhor ficar com a primeira opção.

Leia mais sobre a radicalização da esquerda nos Estados Unidos no artigo de Ana Paula Henkel, “Como o Partido Democrata se distancia de JFK”

Mais sobre a guerra fria entre EUA e China no artigo de Bruno Garschagen, “Chegou a hora de enfrentar a China — e a Rússia”

11 comentários
  1. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Essa tão decantada classe intelectual, que ninguém sabe o nome, onde mora e até mesmo se realmente existe, mas que parece ter passado a vida inteira no trabalho home office, entre a fumaça dos charutos cubanos e a Bíblia, não a Bíblia cristã, mas a marxista, já que agora nós, pretensos capitalistas, estamos sendo empurrados para morar e trabalhar presos num mesmo lugar, certamente já estão impacientes para ocupar os espaços ociosos que sobrarão pelas ruas, avenidas e tudo o mais. O que eu não consigo entender é porque essa classe continua intocável, sublime, aguardando pelo glorioso dia em que colocarão uma lápide definitiva sobre a sepultura de nossos sistemas, com a nossa amigável continência. Às vezes eu não sei de quem eu tenho mais raiva, se deles ou de nós mesmos.

  2. Fabricio
    Fabricio

    Gostei.

  3. Francisco De Assis Silva
    Francisco De Assis Silva

    Este parágrafo está perfeito. Acredito mesmo que a burrice é infinita, e muitos não enxergam este fato.
    “O que surpreende é o empenho, justamente por parte das elites intelectuais, em destruir um sistema que conseguiu alavancar todos os indicadores de desenvolvimento econômico, social e humano nas últimas décadas, com a redução da miséria, do analfabetismo, da mortalidade infantil e das desigualdades, além do aumento da longevidade.”

  4. Sebastiao Márcio Monteiro
    Sebastiao Márcio Monteiro

    Excelente análise. Parabéns, Selma!

  5. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Vamos aguardar, a crise sempre foi uma porta aberta para o idiota radicalismo da esquerda.

  6. Ruy Quintão
    Ruy Quintão

    Eu ouso acreditar na expansão dessas idéias esquerdistas, porque lembro do que nos ensinou o pensador e filósofo Renan Calheiros: “a burrice é infinita”.

  7. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Boa inspiração. Estamos estarrecidos do que acontece nos EUA. Não imaginava que o povo estivesse tão dividido como aqui. Só que aqui no Brasil existem problemas maiores, como a atuação tresloucada do STF.

    1. Jose
      Jose

      Excelente texto! Muito bem escrito e elucidativo…

  8. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Bom texto

  9. Eric Kuhne
    Eric Kuhne

    Perfeito, parabéns pelo texto! Mais uma vez fica claro que a narrativa da esquerda está sendo mais eficaz que as divulgações da direita. É como um inocente ser condenado num tribunal pois seu advogado é pior que o da acusação

    1. PAULO ROBERTO HARDMAN
      PAULO ROBERTO HARDMAN

      Parabéns pelo texto, destaco a observação 😮 autodenominado “campo progressista” quer aproveitar para virar a mesa. Tenta resgatar surradas utopias para solapar o modelo do capitalismo liberal consagrado no Ocidente

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