O Reino Unido está se tornando o “doente da Europa” do século 21. Nossos problemas não são apenas econômicos, eles também estão relacionados a doenças reais. Atualmente, mais de 2,5 milhões de britânicos não estão trabalhando nem procurando emprego em razão de doenças de longa duração. Esse problema se tornou tão grave que ameaça arruinar os cofres públicos.
Surpreendentemente, de acordo com dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatísticas Britânico (ONS, na sigla em inglês), o principal impulsionador dessa crise de doenças não são as listas de espera recordistas do Sistema Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) do Reino Unido nem as complicações de saúde de longo prazo decorrentes da covid-19 e do lockdown. Na verdade, ela está sendo alimentada em grande parte por questões de saúde mental, como depressão e ansiedade. Entre 2019 e 2023, mais de 300 mil pessoas saíram do mercado de trabalho citando problemas de saúde mental como principal razão.
Não há dúvida de que a pandemia e os lockdowns tiveram um impacto destrutivo na vida das pessoas. No entanto, é importante dar um passo atrás antes de culpar a pandemia. Existem raízes mais profundas para essa crise. Depressão, estresse e ansiedade têm sido algumas das principais causas de ausência no local de trabalho desde pelo menos o início do século.
Durante décadas, empreendedores da área de saúde mental e burocratas de sindicatos tentaram estabelecer uma relação causal entre o trabalho e os problemas de saúde mental. Um relatório publicado pelo Congresso Sindical Britânico (TUC, na sigla em inglês) em 2004 afirmava que o estresse havia se tornado a maior ameaça à saúde dos trabalhadores do Reino Unido. Em 2012, o TUC endossou de forma entusiástica um relatório que argumentava que “o excesso de horas de trabalho causa depressão”. Três anos depois, afirmou que “o estresse adoece um trabalhador a cada dois minutos”.
Tornou-se muito comum que as tensões e pressões que surgem no trabalho sejam discutidas pelo prisma da saúde mental. Sentir frustração, tristeza e isolamento não é mais tratado como uma dificuldade cotidiana. Agora esses sentimentos são considerados sintomas de uma doença. Isso mudou a maneira como grandes segmentos da população enxergam os desafios que enfrentam.
O trabalho pode ser verdadeiramente gratificante. Ele também pode ser uma fonte importante de criatividade e pode ajudar a dar sentido à nossa vida
Em The Nocebo Effect: Overdiagnosis and Its Costs, livro de 2015, Stewart Justman observa como a medicalização dos problemas cotidianos na verdade leva as pessoas a se sentirem doentes e as incentiva a se conformarem com seus diagnósticos. Isso é especialmente verdade quando se trata de problemas de saúde mental. Atribuir suas dificuldades à depressão ou à ansiedade pode se tornar uma profecia autorrealizada.
Enquanto isso, nas últimas décadas também surgiu uma antipatia mais generalizada pelo trabalho. No meu livro de 2003, Therapy Culture: Cultivating Vulnerability in an Anxious Age, chamo a atenção para a tendência cada vez maior de apresentar o trabalho como uma possível ameaça ao nosso bem-estar. Isso pode ser observado no uso generalizado da expressão “equilíbrio entre trabalho e vida pessoal”, que coloca trabalho e vida pessoal em conflito, sugerindo que a “vida real” precisa ser protegida do avanço do trabalho, que aparentemente só pode ter consequências nocivas. Claro, essa tendência ignora o fato de que o trabalho pode ser verdadeiramente gratificante. Ele também pode ser uma fonte importante de criatividade e pode ajudar a dar sentido à nossa vida.
O trabalho árduo, em especial, é amplamente demonizado nos dias de hoje como uma barreira para a realização pessoal. Como argumentou um renomado psicólogo social no ano 2000, “os possíveis benefícios das emoções positivas parecem ser especialmente subestimados em culturas que endossam a ética protestante, que considera o trabalho árduo e a autodisciplina virtudes, e o lazer e o prazer como pecados”. De lá para cá, essa representação negativa da ética protestante do trabalho ganhou uma aceitação cultural significativa. Enquanto trabalhar duro costumava ser considerado necessário para a autorrealização, hoje é mais provável que seja visto como o primeiro passo para a entrada em uma clínica.
Aliás, no mundo anglo-americano, o compromisso com o trabalho árduo foi rebatizado como workaholism (a característica do workaholic, ou “trabalhomaníaco”). Pelo jeito, é uma forma de vício que pode ter consequências drásticas para a saúde mental. Nessa perspectiva, trabalhar pesado é visto como uma droga que as pessoas usam para não enfrentar seus problemas psicológicos. Eles nos dizem que trabalhadores dedicados têm mais probabilidade de adoecer do que seus colegas tranquilos e descontraídos, que saem do escritório na primeira oportunidade.
Essa desvalorização cultural do trabalho e a tendência de medicalizar toda emoção negativa são o pano de fundo da crise de doenças de longa duração no Reino Unido. Não é tanto uma crise de saúde quanto uma crise cultural. E só pode ser resolvida lembrando as pessoas da importância do trabalho e desenvolvendo os recursos culturais que lhes deem uma sensação de autonomia. Atualmente, muitas pessoas se veem como pacientes de saúde mental, e não pessoas que controlam o próprio destino. Isso precisa mudar.
Frank Furedi é diretor-executivo do think tank MCC-Brussels
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Cada ser humano tem um perfil. Hoje, por mim, passo o dia inteiro trabalhando, e não sinto necessidade de lazer. Talvez seja um momento da vida. Mas assim segue..
Adorei o artigo e os comentários de Paulo Gouvea e da Professora Eloisa.
O século XX nos legou a praga do socialismo e a falácia de que a vida é uma promessa de felicidade. Sucumbimos ao excesso de direitos em detrimento de obrigações óbvias que a demanda de uma existência exige e estamos criando gerações de incapacitados à encarar a vida como ela é. O trabalho é a fonte de autonomia que nos traz dignidade, não uma doença.
Adorei o artigo. Sempre me perguntam como mantenho sempre ativa e com saúde, eu respondo : trabalhando. Jesus disse: comei o pão com o suor de seu trabalho. É a pura verdade. Fui professora até os meus 72 anos. Agora, tenho 83. O trabalho enaltece o ser humano. No Brasil, trabalhar é palavrão. É sinônimo de escravidão. Estimulam as pessoas a se contraporem àquele que oferecem trabalho. Os que são bons estudantes e que posteriormente trabalham com dedicação são criticados e sofrem booling,
Professora Eloísa, parabéns pelas suas observações.
Sou muitíssimo grato a todos os meus professores, que com certeza me tornaram uma pessoa melhor e me incentivaram e ajudaram a conquistar meus objetivos.
Muito bom seu comentário Professora Eloisa . A Senhora é um grande exemplo , mais pessoas e professores como a Senhora .