Ennio Bastos de Barros tinha nome, jeito, cara e modos de juiz de Direito. Coerentemente, ele comandava a comarca de Taquaritinga nos tempos em que minha turma já encerrara a primeira infância mas ainda estava longe da adolescência. O uniforme coletivo era imposto a todos os menores de 11 anos nas horas do dia em que não estávamos na escola ou dormindo: camiseta com a cor do time do coração, barata demais para incluir o distintivo no peito e um número nas costas, e aquele detestável calção improvisado pela mãe ou por alguma tia com a amputação, milímetros acima do joelho, das pernas de uma calça de adulto derrotada pelo tempo.
Não havia no bando de moleques nenhum caso de polícia, tampouco delinquentes mirins em gestação. Mas, por via das dúvidas, convinha adotar medidas preventivas que nos mantivessem fora da mira dos homens da lei. O jogo de futebol na rua de terra, por exemplo, era interrompido assim que despontava na esquina da General Glicério com a Rio Barbosa, perto das 2 da tarde, aquele homem de terno e gravata, semblante grave, cada fio de cabelo em seu lugar, caminhando em direção ao fórum. Entrincheirados sob a parreira no corredor que levava ao quintal da casa dos meus pais, tanto os inocentes de carteirinha quanto os pecadores compulsivos, que nunca escapavam de pelo menos 80 ave-marias e 30 padre-nossos a cada escala no confessionário, uniam-se na reverência silenciosa.
A prudência recomendava que a personificação da Justiça fosse tratada com respeito, mas o doutor Ennio não inspirava medo. Tal sentimento ficava por conta do promotor de Justiça cujo sobrenome exótico lembrava espécies raras de peixe encontradas apenas na Bacia Amazônica. Enquanto representou o Ministério Público na cidade de 15 mil habitantes, o promotor com fama de doidão caprichou no olhar de quem só dormiria em sossego se engaiolasse no mínimo dez por dia. Desse perigo ambulante mantivemos distância até a terça-feira em que o medo foi aposentado pela grande notícia: na véspera, aos 30 e poucos anos, o doutor abandonara a mulher, os filhos e a cidade para, levando apenas a roupa do corpo e o coração transbordante de paixão, fugir com a jovem e bonita empregada doméstica.
Se tivesse um pouco mais de juízo, o promotor que acusava culpados e inocentes com a mesma convicção furiosa talvez virasse ministro do Supremo Tribunal Federal. Prender gente era a coisa que mais apreciava. Em contrapartida, o antigo juiz da comarca se sentiria tão à vontade no Pretório Excelso destes tempos estranhos quanto um Winston Churchill no Ministério do governo Lula. Primeiro nos fóruns de pequenas cidades interioranas, depois como desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, enfim como advogado, o jurista morto em fevereiro de 2017 sempre soube mostrar como é (e como age) um magistrado de nascença. Essa linhagem só tem vagas para quem condena ou absolve com base nos fatos — e somente nos fatos —, toma decisões amparado nos autos do processo, obedece sem hesitações ao que a lei determina, sabe que para quem julga a parcialidade é o oitavo pecado capital, ama a verdade acima de todas as coisas e tenta teimosamente transformar em 11º mandamento uma cláusula pétrea — “Todos são iguais perante a lei” — esquecida no baú das utopias constitucionais. Não é pouca coisa.
Se ainda estivesse entre nós, o grande juiz certamente reprovaria o desempenho dos ministros que controlam o Supremo Tribunal Federal
Mas não é tudo. Juízes de nascença também aprendem ainda no berçário a tratar com carinho o idioma nacional. Autor de vários livros, bom orador, Ennio Bastos de Barros não se limitou a escrever e falar com exemplar elegância. Também fez o que pôde para impedir que a língua portuguesa fosse submetida a medonhas sessões de tortura por promotores de Justiça e advogados. Em março de 1968, por exemplo, ele trabalhava na 10ª Vara Cível de São Paulo quando recebeu um texto produzido pelo defensor do réu de uma ação de despejo. Inconformado com o que considerou uma prova veemente do “primarismo palmar” do bacharel, o magistrado resolveu que era hora de conter a disseminação de crimes contra o idioma praticados por doutores semialfabetizados.
“Como essa entidade é ‘órgão de seleção disciplinar e defesa da classe dos advogados’, acredito que seja de seu interesse apurar as razões da inépcia desse integrante de seus quadros”, diz um trecho da petição encaminhada à seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. Para comprovar o “ignóbil nível de conhecimento jurídico” de bacharéis “sem um mínimo de formação cultural”, o magistrado anexou dois textos do mesmo advogado em que grifara um punhado de erros crassos. Três deles: denumciados, vestijos e emediatos. A repercussão do caso resultou na criação do exame obrigatório para ingresso na OAB.
Se ainda estivesse entre nós, o grande juiz certamente reprovaria o desempenho dos ministros que controlam o Supremo Tribunal Federal. Mas é improvável que se surpreendesse com o que anda fazendo Alexandre de Moraes há mais de quatro anos. O magistrado vocacional o conheceu em novembro de 1997, quando o promotor de 29 anos apenas esboçava o estilo que seria aperfeiçoado depois da chegada ao STF. À frente de um grupo de integrantes do Ministério Público, Moraes convocou uma entrevista coletiva para comunicar que havia denunciado Paulo Maluf por improbidade administrativa. Durante o falatório, responsabilizou Maluf pela compra superfaturada de frangos durante sua passagem pela prefeitura de São Paulo.
Advogado do ex-prefeito, o desembargador aposentado foi à réplica: “Ao dar como certo o que ainda lhe caberá provar, o promotor não guarda o necessário comedimento”. Segundo os dicionários, comedimento quer dizer austeridade, autocontrole, circunspecção, compostura. Todos os termos combinam com Ennio. Nenhum rima com Moraes, confirmou a reação do impetuoso promotor: “Nenhuma ameaça vai impedir que o Ministério Público continue seu trabalho técnico de defesa do patrimônio público”, caprichou na redundância. Em público, de novo. Enxergando ameaças imaginárias, como sempre. Maluf acabou ganhando a causa.
O desempenho do centroavante rompedor do Timão da Toga atesta que Moraes preferiu ignorar a voz da razão. Essa decisão infeliz condenou o jovem promotor nada comedido a tornar-se um ministro cinquentão sem compostura.
Leia também “Haja covardia”
muito bom
Reputação ilibada. Um termo em extinção no Brasil.
Excelente texto Augusto! Humor como nos velhos tempos, coisa difícil hoje em dia, seja porque a realidade não é nada engraçada, seja pela falta de pessoas capazes de exercê-lo.
Histórico, pelos personagens envolvidos, atual pelo mesmo motivo.
E não há como não reconhecer, és um homem de muita coragem. Forte abraço.
Pois eh, os juristas do Brasil morreram todos. E ai voce pergunta, morreram de que …. E eu respondo, MORRERAM DE COVARDIA AGUDA.
Oi. Tu lê algum comentário fora do que foi escrito na edição da revista? Hoje é dia 6.14h18min.
Esta nistória do Tofoli é terrivelmente degradante. Declarar a inocência do Lula e do PT é abuso de poder. Porém, os jornalistas investigativos e que atendem leitores poderia ajudar a descascar o abacaxi. Aproveitar o momento para ajudar a explicar a situação ao público. O que não é crime e ainda poderia exclarecer o que foi que aconteceu com os procesos da lava-jato. Pode ser um serviço de utilidade pública e o STF não pode reclamar, pois mais de 50 milhões de pessoas gostariam de entender. Aí o jornalismo poderia dar uma volta ao passado.
Um dos pontos que precisa mser explicados: tudo que foi descoberto pelos peritos e prouradores suíços na decoficiação de contas e contabilidade secreta da Odebrech também fazia parte do golpe? Os apliedos não exisitiram? A planilha não existiu? Os políticos não receberam dinheiro da Odebrecht? O diheiro entregue pela Odebrech eram presentes ou faziam parte de um agrado, ou de docação de campanha eleitoral? O dinheiro graúdo dado também aos partidos políticos eram destinados para ações soiais? Para o bem social? Como no caso do MST, o dinheirão distribuído tinha alguma função social? É possível entrevistar os peritos de alto nível que conseguiram descobrir os códigos da planilha que uma funcionária confessou que existia? AFinal, matéria para uma imprensa séria é que não falta. O povo deseja imensamente que o assunto volte a baila para poder entender e, quem sabe até mesmo concordar com o STF. Existem outros pontos que poderiam ser explorados. Era mentira que o Lula tinha amante?
Augusto excelente. Pena que o arrojado promotor do passado não tenha entendido que MALUF considerado à época como o maior corrupto do pais, não tenha o mesmo rigor como ministro do STF contra os atuais corruptos, muito mais catedráticos que Maluf que atualmente não passaria de um aprendiz.
Augusto, você já deve ter ouvido essa obra prima do TSE que nos cansa o ouvido destilando ódio a mais de 58 milhões de brasileiros democratas e honestos, com essa letra e batida infernal chamada RAP DA DEMOCRACIA? Você pode nos informar quanto custa aos pobres brasileiros essa palhaçada, que parece ter autoria de quem já disse “derrotamos o bolsonarismo?. Esta é a letra:
“Na hora da verdade a democracia fala mais alto. Soberania e força popular, tem que respeitar. Liberdade de expressão não é licença para espalhar mentira, ódio, golpe e desavença. Democracia é conquista, não é sorte. Pode recuar que a consciência aqui é forte”.
Augusto, não cheira autor de notável saber juridico?
Gostei do comentário
Excelente texto Augusto, está faltando o mínimo comedimento onde mais precisamos, infelizmente…
Quanto ao JORNALISTA Augusto Nunes e demais craques do jornalismo que hoje integram a seleção da Revista Oeste, todos são motivo de satisfação para nós assinantes em sabermos que estamos nos informando com pessoas que se destacam pelo preparo, experiência, honradez e imparcialidade, não mais encontrados na grande maioria dos jornalzistas da imprensa velha, existente em vários outros veículos de comunicação atuais. Se possível, contratem o Lacombe. Assim, a seleção ficará melhor ainda. Abraços.
Parece q seu desejo está prestes a ser realizado!
Lí e relí todos os comentários expostos à respeito deste xandão. Concordo com a maioria deles em gênero, número e gráu, e mais uma vez expresso minha tristeza, porém não desesperança de que, mais dias, menos dias, a verdade ou as verdades virão à tona; os fatos são teimosos e sempre prevalecem, e certamente, todos os que ainda os desconhecem, ficarão sabendo de tudo de todos, e estes senhores que foram escolhidos a dente de cachorro e colocados na suprema força, sem serem ao menos juízes de carreira, lá permanecendo de forma vitalícia, exercendo a magistratura no padrão ditatorial, passando por cima de tudo e de todos,poderá acabar mais cedo do que os próprios imaginam. É insustentável tanta crueldade e injustiça para uma instituição que existe exatamente para fazer justiça. Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe. Isto também é fato e prevalece.
Só espero que não levemos 21 anos para que nossas esperanças de que a moralidade, impessoalidade, legalidade, transparência, eficiência, eqüidade (jamais abandonei o trema), liberdade, paz e justiça sejam resgatadas e praticadas plenamente!
Isso espero com fé em Deus, mas que não tarde uma eternidade ou mais do que uma geração. Não quero ir-me dessa vida morta de medo pelo futuro de meus filhos e netos.
Perfeito
Excelente texto, Augusto. Espero que algum membro da suprema sarjeta leia.
Parabensssss por mais um grande texto !
Uma boa hora , é ler seus textos e também do JR Guzzo.
Excelente. Parabéns pelo discernimento e coragem impar.
Cabeça de ovo, um canalha a serviço do sistema. Verme sendo verme.
Nem “vestijos” de comedimento ou imparcialidade.
Parabéns Augusto! Ler seus textos me enche de esperança para tempos melhores.
Triste 😢 🙁 ☹️ Brasil
Excelente como de costume Augusto
Augusto, como sempre magistral na apresentação dos fatos. Esse ministro não escapará de suas decisões monocráticas.
Brilhante texto. Infelizmente Augusto Nunes, estas pessoas da história contada sumiram do STF. Agora só lá existem pessoas incapazes de interpretar as leis vigentes no País, ou fingir que não as conhecem. Juízes de carreira, que deveriam compor o quadro do STF foram substituídos por Alexandres, Zanins, Gilmares etc.
Sensacional o texto e triste a nossa realidade!
Excelente texto, parabéns!
Simplesmente espetacular: elegância, concisão, fluidez, ironia e leveza são o suprassumo dos textos dos melhores escritores. Os homens são truculentos, il tempo è bruto, mas o texto segue leve, certeiro e mortal como uma flecha.
Sou assinante da revista Oeste e admiro todos vcs.Leio seus artigos,assisto aos programas diários,quando não posso no horário certo,assisto depois.Agradeco a todos por comungarem comigo .
Excelente Augusto. Gostaria de lembrar uma frase do grande filósofo “Alemão Prussiano” Immanuel Kant : ” SE A JUSTIÇA DESAPARECE, É ALGO SEM VALOR O FATO DE VIVEREM OS HOMENS SOBRE A TERRA “. Tenho esta frase embaixo do vidro de minha escrivaninha a anos. Sempre achei ser apenas uma suposição filosófica teórica mas agora penso que estamos vivendo exatamente esse Desaparecer da Justiça. Não podemos deixar a justiça desaparecer. Só nos resta a resistência.
Mais um texto com o padrão Augusto Nunes!🔟
Infelizmente, a justiça carece de bons profissionais. Moraes é a prova mais contundente da decadência moral e intelectual dos profissionais do direito. Lamentável.
Como sempre perfeito!
O apanágio do medíocre é achar-se importante, como esse careca abjeto que jamais será um juiz de verdade!
Como sempre, excelente texto.
Senhor Augusto Nunes; o senhor é craque!
Como diria meu saudoso pai na roda amigos quando queria desqualificar, jocosamente, um desafeto:
“Se falas por ignorância (e o ditador careca sabe exatamente o que faz), perdoar-te-ei; mas se falas para mangar de minha presopopéia, dar-te-ei com o meu cajado no alto da tua sinagoga, e tranformar-te-ei em cinzas cadavéricas que serão varridas pelos ventos do além!”
E quando o desadeto, mudo, diante desse estranho palavrório, arregalava os olhos sem entender nada, ele finalizava:
“És apenas um ser impolofitófico e, acima de tudo, intiospecto!”
A turma caía na gargalhada, inclusive o desafeto.
É o que eu diria para o alexandre de moraes (em minúsculo mesmo), sem sorrir!
Esse Moraes é o todo poderoso do clã STF. Infelizmente o Brasil viverá dias amargos e entraremos num processo de profunda escuridão no judiciário com as leis sendo descumpridas e com isso, o povo sofrerá por ignorância e total letargia por não buscar os direitos constituídos que foram surrupiados de forma sorrateira pela côrte com os desmandos e interpretação da CF à revelia da verdade absoluta alma letra da lei. Obrigado Augusto Nunes e toda equipe de jornalistas da Revista Oeste. Vocês tem sido o farol de parte esclarecida da sociedade que se preocupa com o futuro da Nação.
Arrasou Augusto. Moraes se acha a última bolacha do pacote. Um narcisista. Merece as criticas que recebe e não são poucas, quando não gosta, prende, suspende as redes sociais, cancela passaportes enfim.. faz o diabo por emitir opinião que não o agrade, mas se for de esquerda pode tudo. É Ministro da Suprema Corte. Que lástima.
Estamos na época da transparência não adianta esconder, o rabo sempre fica de fora
Caro Augusto,
Estamos passando tempos sombrios.
Na minha modesta opinião hoje vivemos situações muito piores que aquelas do governo militar (1964-1985), incessantemente combatido pela esquerda radical e sem juízo.
Vivi minha infância, adolescência e juventude durante este período e não me recordo, excetuando o AI-5, de tantas arbitrariedades contra a população.
Se nada acontecer pela via legal, chegará o momento em que a população se insurgirá contra o sistema com consequências imprevisíveis para todos.
Esse careca é um idiota que se acha inteligente.
Talvez o senhor Augusto Nunes não vá ler jamais o meu comentário. Pois bem leio todas as semanas a revista OESTE e sou seu assinante e espectador do programa OESTE sem filtro desde seu início. Acho, Augusto vc o maior jornalista do Brasil, sou seu quase conterrâneo nasci na Jaboticabal querida e fui várias vezes quando jovem a Taquaritinga cidade próxima a nossa. Hoje sou um velho de setenta e um anos e moro em Piracicaba com minha irmã e cunhado em sua chácara. Desejo ao senhor meu jornalista que sempre o acompanhei durante sua vida jornalistica e quero dizer-te aqui Muito Obrigado por Existir. Abraços do seu fâ declarado.
Caro José Pedro: leio todos os comentários, e com muita atenção. Responderia a um por um se o dia não fosse tão curto. Sou especialmente grato a quem acompanha os textos que público ou ouve o que digo nos programas. E procuro retribuir essa demonstração de carinho tentando reproduzir na revista Oeste o que pensam leitores como você. Obrigado pela força e pelo comentário tão estimulante e generoso. Também tenho ótimas lembranças da nossa Jaboticabal, onde estive incontáveis vezes. Um forte abraço pra você. E outros para os que garantem a existência desta coluna.
Perfeito Augusto! Alexandre (o Glande) desconhece a lei, a vergonha e a decência.
Parabéns…Disse tudo.
Nada como voltar no tempo para apreciar as aulas de Processo Civil do Professor Ennio. Atesto-o pela grande vocação burilada para o enfrentamento de questões jurídicas. Por óbvio tivemos juristas que nos orgulharam, mas o Dr. Ennio se destacou como um operador brilhante do Direito, em todos os seus fundamentos. Estimado professor, referência sempre lembrada pelo Augusto Nunes, como exemplo de dignidade, equilíbrio e elevada moral, virtudes que estão em baixa em altas esferas do poder.
Nada acontece por acaso.Xandão sempre foi inimigo do comedimento e amante da verborragia irresponsável.
É um juiz (coisa que nunca foi) totalmente sem…falta tudo…
Sem compostura, sem conhecimento -talvez propositadamente- da Constituição pela qual deveria zelar,, sem nenhuma classe e atitude que a liturgia do cargo exige e ,triste, sem nenhum pudor de ordem moral.
É o anti-juíz. Coisa que nunca foi também..