Woody Allen, certa vez, disse uma frase que ficou famosa: “O cérebro é o meu segundo órgão favorito”. Órgão, aliás, conhecido por muitos apelidos: miolo, cuca, crânio, moleira, mente, cachola, coco, mioleira, juízo, bestunto, tolô, cabo da nau, central de comando, raciocinador, chola…
Sherlock Holmes definia o órgão à sua maneira: “Eu sou um cérebro, Watson”, dizia o célebre detetive da Baker Street. “O resto de mim é um mero apêndice.”
Elementar. Temos uma usina de sensações, ideias, recursos e decisões com nada menos que 86 bilhões de neurônios e 100 trilhões de conexões. É tão complexo que podemos dizer que nosso cérebro ainda não sabe direito como ele próprio funciona.
A jornalista Hayley M. Bennett escreveu para a revista BBC Science Focus uma espécie de guia muito básico para a compreensão de cada parte dessa massa cinzenta no topo de nossa cabeça.
Projeto Cérebro Humano — HBP
O próximo dia 1º de outubro vai marcar o décimo aniversário do mais ambicioso programa de estudo do cérebro humano. O Human Brain Project tem sua base em Genebra, na Suíça, e reúne parceiros de mais de 150 instituições científicas de 19 países da Europa. O projeto já consumiu mais de 600 milhões €, metade com patrocínio da União Europeia. Projetos semelhantes (mas não tão ambiciosos) estão sendo desenvolvidos nos Estados Unidos, Japão, Austrália, Coreia do Sul e China.
Com tudo isso, ainda existe muito a compreender. E por razões práticas. Um projeto como o HBP não existe por mera curiosidade científica. Seus pesquisadores têm como prioridade encontrar caminhos para o tratamento e a prevenção de doenças e acidentes — como Alzheimer, epilepsia, depressão e AVC.
Quão longe o estudo chegou para a compreensão do cérebro? Uma boa resposta a essa pergunta foi dada pelo professor Jean Bjaalie, da Universidade de Oslo e participante do Human Brain Project: “Se você perguntar a um astrônomo ou a um astrofísico quão longe ele chegou em termos de mapear o universo, eu acho que estaremos falando do mesmo tipo de dúvida”.
Em outras palavras: não sabemos o tamanho do universo, assim como não conhecemos todos os mistérios e poderes que se ocultam no cérebro. Nos dois casos, não sabemos até onde já chegamos porque não sabemos até onde podemos ir.
A parceria homem-computador-máquina
Uma das funções mais importantes do Human Brain Project é traçar o mais detalhado mapa do cérebro jamais concebido, com o uso de imagens em 3D e altíssima resolução.
Qual é a importância desses mapas? O estudo do cérebro depende basicamente de saber onde se localizam suas diversas partes funcionais. Por exemplo, imagine uma pessoa que tenha determinado problema na fala. Para o devido tratamento, é importante saber de qual parte do cérebro partem os impulsos que a fazem falar.
Ao descobrir esses centros de comando, é possível, se for o caso, uma intervenção direta. É esse princípio que está possibilitando que paraplégicos consigam se mover. Nesse caso, chips são implantados no cérebro exatamente no local que determina os movimentos. Os chips mandam essas ordens cerebrais a computadores. O cérebro diz que quer movimentar o braço direito, a mensagem chega ao computador, que faz o movimento desejado por meio de outros recursos, como membros mecânicos. Ou até mesmo pelos membros naturais que estavam adormecidos, sem conexão. Como num milagre bíblico, paraplégicos passeiam no parque.
Enxergando e despertando
Os estudos do HBP permitiram que uma mulher cega de 57 anos tivesse algum sentido de visão de volta, após 16 anos de deficiência visual absoluta. Para isso, um conjunto de 96 microeletrodos foi implantado diretamente na parte de seu cérebro onde se concentra a percepção visual. A paciente, então, passou a usar óculos equipados com uma microcâmera que mandava impulsos visuais básicos diretamente ao seu córtex. Ela foi capaz de distinguir alguns desenhos básicos e letras. E isso é só o começo.
Outro campo de estudo do projeto é o conceito de consciência. Como diagnosticar um paciente em coma profundo, que não oferece qualquer tipo de resposta ou reação aos tratamentos? Esse terreno ainda difícil da medicina está sendo explorado por meio de novos instrumentos de ressonância magnética visual, com a parceria de programas avançados de inteligência artificial.
Mil cérebros
O HBP focou também a degeneração cerebral pela idade. Como cada cérebro envelhece de uma forma diferente, era preciso criar um “cérebro coletivo” que mostrasse as principais formas de degeneração agindo ao mesmo tempo. Para isso, foi criado o estudo 1000BRAINS. Mil participantes com idade entre 55 e 85 anos foram regularmente examinados por imagem de ressonância magnética (MRI) para detectar cada mudança produzida pela idade.
Os dados recolhidos pelo estudo desses mil cérebros foram então projetados em um cérebro virtual criado por computador — que pode ter seu tempo acelerado. Assim, problemas que levariam décadas para se desenvolver aparecem em muito menos tempo e podem ser estudados e tratados de forma rápida e abrangente.
“O modelo virtual nos possibilitou provar teorias que previamente nós só podíamos suspeitar serem verdade”, declarou uma das participantes do HBP, Svenja Caspers, da Universidade de Düsseldorf, na Alemanha. “O principal objetivo dessa linha de pesquisa é compreender por que e como os cérebros de diferentes indivíduos variam tanto — especialmente à medida que envelhecemos — e quais fatores podem ser responsáveis por isso. Existem também todos os outros fatores que nos influenciam: o que nos rodeia, o nosso ambiente, a forma como vivemos, o nosso estilo de vida (se bebemos álcool, fumamos, praticamos esportes), como comemos e o que fazemos todos os dias. À medida que envelhecemos, os efeitos de tais fatores se acumulam.”
A falta de perspectiva e curiosidade, a preguiça, a entrega à rotina, o comodismo, a ignorância, a dedicação a apenas um tipo de atividade — tudo isso mantém nosso cérebro em “ponto morto”
Em termos práticos, segundo a doutora Caspers, “ser capaz de predizer em nível individual como certo estilo de vida afeta o cérebro pode ser muito valioso para a medicina, pois vai permitir que médicos forneçam aos pacientes recomendações personalizadas para diminuir ou mesmo prevenir o declínio cognitivo”.
Tempestade elétrica
No mundo todo, 50 milhões de pessoas são afetadas pela epilepsia. De repente, certas zonas de seus cérebros são bombardeadas por uma tempestade inesperada de atividade elétrica. E a pessoa tem um ataque que a deixa completamente fora de controle — o que pode ser fatal.
Existem drogas para ajudar nesses casos, mas um terço dos pacientes desenvolvem resistência a elas. Outra opção é retirar o pedaço do cérebro sujeito a essas atividades elétricas. Mas onde exatamente essa região se localiza? Qual é o tamanho da parte que deve ser retirada? É uma cirurgia arriscada, e só 60% dos pacientes se livram dos ataques depois da intervenção.
O Human Brain Project está trabalhando para criar simulações de cérebros de pacientes com epilepsia para que a localização dos ataques seja conhecida, sem a necessidade de intervenção cirúrgica. A criação desses cérebros visuais “poderia representar que os modelos podem agir como pacientes virtuais, replicando o mais acuradamente possível a dinâmica de um ataque virtual”, segundo o livro de divulgação do HBP.
Ponto morto
Fora do aspecto médico, cérebros são muito mais poderosos do que podemos imaginar. A falta de perspectiva e curiosidade, a preguiça, a entrega à rotina, o comodismo, a ignorância, a dedicação a apenas um tipo de atividade — tudo isso mantém nosso cérebro em “ponto morto”. Isso numa época em que avanços tecnológicos colocam em nossas mãos uma quantidade inédita de informações e recursos, especialmente via internet e aplicativos.
Mesmo assim, nossa poderosa massa cinzenta pode passar uma vida inteira sem ter a menor ideia do que é capaz.
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Que maravilhosa ciência estamos presenciando!
Que perspectiva de auxílio humano à humanidade.
Parabéns à reportagem, aos cientistas e à ciência.
Esse estudo sobre o cérebro vai longe com a tecnologia ajudando no deciframento. Curioso é decifrar a mente
Muito bom esse artigo.
será que tem algum estudo desse tipo sobre Alzheimer?