Pular para o conteúdo
publicidade
Ponte de Westminster, Casas do Parlamento e Big Ben, em Londres, Inglaterra | Foto: Shutterstock
Edição 186

O mito da ‘ilha infectada’

A demonização da Grã-Bretanha pós-Brexit durante a pandemia de covid-19 teve base em notícias falsas

Fraser Myers, da Spiked
-

Durante a pandemia, logo se estabeleceu o truísmo de que o Reino Unido estava se saindo muito pior do que o resto do mundo desenvolvido. O New York Times chegou a cunhar, em dezembro de 2020, o termo “ilha infectada” para descrever uma nação supostamente lastimável e atormentada pela doença de forma singular. Esse meme se espalhou rapidamente para outros meios de comunicação e nas redes sociais. Dizia-se que a Inglaterra estava sendo atacada pelo vírus por causa de dois pecados graves. Primeiro, pela suposta atitude descuidada do então primeiro-ministro, Boris Johnson, em relação à pandemia — o que teria levado o Reino Unido a hesitar em impor lockdowns e fazê-lo supostamente tarde demais. E, em segundo lugar, pelo Brexit, já que o Reino Unido finalmente se tornou independente de Bruxelas no fim de 2020.

A narrativa da mídia era mais ou menos a seguinte: o Reino Unido enfrentou o pior número de mortes por covid-19 na Europa porque o primeiro-ministro “populista” queria “deixar o vírus se espalhar”.

A Inglaterra pode ter tido três lockdowns rigorosos, mas todos vieram tarde demais. Então, o governo tomou a decisão supostamente imprudente de suspender a maioria das restrições da covid-19 em julho de 2021. Mais de 1,2 mil cientistas escreveram uma carta aberta, alertando que esse “experimento perigoso e antiético” de retomar aos poucos à vida normal — um mês depois do planejado e sete meses depois do início da vacinação — colocaria o mundo inteiro em perigo. Deixar os velhos conservadores e infectados da Inglaterra se misturarem incubaria uma nova variante da covid-19 que seria resistente à vacina, eles argumentaram.

Boris Johnson, ex-primeiro-ministro do Reino Unido | Foto: Shutterstock

Enquanto isso, o Reino Unido foi informado de que sua decisão de sair da União Europeia (UE) em 2016 ajudou a selar seu destino sombrio. Diziam que preparar a saída do Mercado Único e da União Aduaneira, no fim de 2019 e início de 2020, havia distraído ministros e funcionários públicos dos preparativos para uma pandemia. Manchetes alertavam: o Brexit tinha “contaminado” a reação do Reino Unido à covid-19, já que suas políticas da pandemia estavam sendo moldadas em torno do excepcionalismo britânico, em vez de “seguir a ciência”, como fizeram seus vizinhos europeus. Johnson chegou a ser acusado de “colocar o Brexit acima da capacidade de respirar” quando optou por sair do esquema de aquisição de vacinas da União Europeia. Isso, conforme avisado, prejudicaria a habilidade do Reino Unido de promover um programa de vacinação bem-sucedido.

Mas, como o Financial Times lembrou recentemente, nenhum dado confirma essa história. “Quando a poeira baixou, o Reino Unido ficou na média em termos de mortalidade pela pandemia”, escreveu o jornalista de dados John Burn-Murdoch, há algumas semanas. “Não quer dizer simplesmente que, dois anos atrás, a Grã-Bretanha estava mal e depois melhorou: ela sempre teve um resultado melhor.”

A realidade contra as narrativas

Na verdade, vários conjuntos de dados confirmam isso. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que, em relação à quantidade de mortes, o Reino Unido está na parte de baixo da lista dos 35 países membros. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) constata que, em comparação aos 27 Estados membros da União Europeia, a Grã-Bretanha pós-Brexit fica em 15º lugar. O Reino Unido teve menos mortes do que a Itália, a Espanha e a Alemanha.

Então, como a narrativa da mídia conseguiu se afastar tanto dos fatos? De certa forma, a conversa sobre a “ilha infectada” é só mais uma expressão da elite apocalíptica sobre o Brexit. Praticamente todos os infortúnios que têm ocorrido na Inglaterra nos últimos anos foram atribuídos à decisão de deixar a União Europeia — não importa o que as evidências de fato apontem. Talvez não seja surpresa que o desastre da covid-19 também tenha sido explorado para se adequar à campanha das elites contra a democracia.

Afinal, quando muito, o Brexit terá ajudado o desempenho da Grã-Bretanha na pandemia. O Reino Unido recém-independente se tornou o primeiro país ocidental a aprovar uma vacina contra a covid-19, três semanas antes da União Europeia. Ele também conseguiu fechar acordos de compra de vacinas muito mais rápido que a União Europeia, resultando em uma distribuição muito mais ágil. Claro, o Brexit não garantiu uma campanha de vacinação bem-sucedida, mas pelo menos permitiu ao Reino Unido evitar o programa de vacinas malfeito da União Europeia. Ironicamente, foi ela que priorizou a política, em detrimento da saúde, ao criar um programa de vacinas. A União Europeia não costuma ser responsável por questões de saúde, mas Bruxelas queria receber o crédito por dar fim à pandemia.

Foto: Ivan Marc/Shutterstock

Outra falha importante na narrativa da “ilha infectada” é que os lockdowns e outras restrições da covid-19 simplesmente não foram as intervenções para salvar vidas que seus defensores fizeram parecer. Sendo assim, os críticos de Johnson estavam errados em presumir que os lockdowns “tardios” da Inglaterra levariam automaticamente a um número recorde de mortes. Pior ainda, os lockdowns cobraram seu próprio preço na saúde da nação e, sem dúvida, contribuíram para o excesso de mortes durante a pandemia e além.

Para entender o absurdo dos lockdowns, basta olhar para a Suécia, que não fez nenhum lockdown. Os suecos puderam frequentar bares, restaurantes, cafés e comércios durante toda a pandemia. Grandes reuniões foram proibidas, mas de modo geral o governo sueco confiou que seus cidadãos seguiriam as orientações de saúde pública, em vez de forçá-los a ficar em casa sob ameaça de penalidades criminais.

Agora que a pandemia ficou para trás, fica claro que a supercautelosa Alemanha teve um desempenho muito pior do que a Suécia, que não impôs lockdown, e que a Grã-Bretanha, com lockdowns “tardios”

Em 2020, a reação global à abordagem eminentemente sensata da Suécia foi estridente e histérica. Um país antes considerado social-democrata e moderado foi condenado como se fosse de extrema direita e ultralibertário por permitir que seus cidadãos “vivessem livres e morressem”. A política sem lockdown foi declarada de antemão um fracasso e uma vergonha moral. No entanto, os dados reais contam uma história radicalmente diferente. A Suécia emergiu da pandemia com um dos menores números de mortes da Europa.

O contraste em relação à Alemanha, que adora lockdowns, não poderia ser mais intenso. No início da pandemia, o país foi elogiado por sua resposta exemplar. Afinal, a Alemanha impôs o lockdown antes de outros países europeus, em 2020. E só permitiu que a vida social voltasse ao normal em 2021, quando um sistema de passaporte de vacina foi implantado. As máscaras foram obrigatórias no transporte público até fevereiro de 2023. No entanto, agora que a pandemia ficou para trás, fica claro que a supercautelosa Alemanha teve um desempenho muito pior do que a Suécia, que não impôs lockdown, e que a Grã-Bretanha, com lockdowns “tardios”.

Nem mesmo entre as nações do Reino Unido a narrativa pró-lockdown se sustenta. As restrições na Escócia duraram muito mais tempo do que na Inglaterra e foram aplicadas com mais rigor. No País de Gales, os supermercados foram forçados a isolar corredores que vendiam itens não essenciais (incluindo absorventes e livros infantis). Os pubs galeses, quando autorizados a reabrir, foram proibidos de vender álcool e tinham de fechar às 18 horas. O País de Gales também experimentou um curto lockdown em outubro e novembro de 2020, estabelecido para “evitar” um aumento nos casos. No entanto, nenhuma dessas restrições a mais deu resultado. Escócia e País de Gales tiveram mais mortes que a Inglaterra.

Ilustração: Shutterstock

No fim das contas, toda essa conversa sobre a “ilha infectada” não passou de retórica vazia. Uma vez que uma narrativa foi criada para dizer que os lockdowns são bons e o Brexit é ruim, fatos que questionassem essas suposições tinham dificuldade de ser divulgados. Parece que os especialistas e a mídia estavam muito mais preocupados em derrotar o suposto vírus do populismo do que em estabelecer os fatos sobre a pandemia. Eles viram como a crescente desconfiança em relação aos especialistas e às elites havia dado origem tanto ao Brexit quanto ao ceticismo em relação aos lockdowns e quiseram acabar com isso. Não podemos deixar essa desinformação passar sem ser contestada.


Fraser Myers é editor adjunto da Spiked e apresentador do podcast da Spiked. Ele está no Twitter: @FraserMyers.

Leia também “O embate econômico contra o Brexit entrou em colapso”

4 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Importante este artigo para sempre lembrarmos deste acontecimento, onde falsos empáticos festejavam mortes para manter sua narrativa, enquanto fomentavam lockdowns. Visto que tinham seus empregos garantidos, notadamente no serviço público.

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Na era das falsas narrativas, o melhor exemplo a se seguir é o da Suécia

  3. Herbert Gomes Barca
    Herbert Gomes Barca

    excelente análise
    e aqui no Brasil o fica em casa a economia a gente vê depois…
    e o maior ridículo “fica em casa, se puder “!!!
    uma barbaridade atrás da outra !

  4. Omar Fernandes Aly
    Omar Fernandes Aly

    Importante esse artigo que mostra as reais condições dos países europeus pós-pandemia e questiona a política de lockdowns.

Anterior:
Liberdade e prosperidade
Próximo:
Imagem da Semana: Berlim estampa a bandeira de Israel
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.