Pular para o conteúdo
publicidade
Colheita de tomates vermelhos maduros | Foto: Shutterstock
Edição 188

Um desconhecido em seu prato, o tomate

O uso de tecnologias e da irrigação fazem do Brasil o nono produtor mundial. São 50 mil produtores, em sua maioria pequenas propriedades, em todas as regiões, com exceção da Amazônia

Evaristo de Miranda
-

Processado ou in natura, o tomate é a hortaliça mais consumida no Brasil e no mundo. Para a botânica, ele é um fruto. Para o senso comum, o tomate é uma hortaliça, parte integrante das saladas. A produção nacional do corado e coroado rei das hortaliças supera batata, cebola, cenoura, abóbora e outras. O Brasil produz cerca de 4 milhões de toneladas por ano de tomate. O valor da produção se aproxima de R$ 9 bilhões. A maior contribuição da cadeia produtiva do tomate é para a saúde dos brasileiros, além de gerar muito emprego e renda. Pouca gente sabe.

O tomate foi “inventado” na Itália, em 1544, por Pietro Andrea Mattioli, médico e botânico. Ele cunhou o nome pomi d’oro e o apresentou como um novo tipo de berinjela. Cortado em segmentos, podia ser comido como tal, preparado com sal, pimenta-preta e azeite de oliva.

Representação de uma planta de tomateiro | Ilustração: Pietro Andrea Mattioli

O tomate é originário dos Andes peruanos e equatorianos. O sequenciamento de seu genoma (DNA) permitiu compreender sua domesticação. Mesmo se muitos detalhes ainda são desconhecidos. Sua domesticação começou há cerca de 8 mil anos no Andes. Dali, ele foi introduzido na América Central. No século 16, na chegada dos espanhóis, o cultivo estava amplamente difundido no México. Na domesticação milenar do tomate, a seleção aumentou o tamanho dos frutos e a diversidade das formas e cores.

A espécie mais próxima do tomate (Solanum lycopersicum) na natureza é o Solanum pimpinellifolium. Em grego, lycopersicum (λυκοπέρσικον) significa “pêssego do lobo”. Há uma quinzena de espécies selvagens próximas do S. lycopersicum. Charles Rick, da Universidade de Davis, Califórnia, consagrou sua carreira com a prospecção botânica de tomates na América do Sul. Ele reuniu centenas de lotes de tomateiros selvagens. Existe uma filiação genética direta entre o S. pimpinellifolium e o S. lycopersicum, na qual o S. lycopersicum cerasiforme, o tomate-cereja, é considerado uma espécie intermediária. Todas essas espécies resultam de uma seleção iniciada no Peru e continuada no México, por milhares de anos.

Ainda não se encontrou registro arqueológico do tomate, ao contrário do milho e do amendoim. Nem representação pictórica. Os primeiros escritos são os da conquista do México pelos espanhóis. Eles o apresentam como alimento comum dos astecas, encontrado em mercados, utilizado como planta medicinal e em oferendas religiosas. Palavras do náhuatl, falado pelos astecas, passaram para centenas de idiomas, como “tomate” (“tomatl“), “abacate” e “chocolate“.

Tomates frescos da espécie Solanum lycopersicum | Foto: Shutterstock

Os tomates introduzidos na corte espanhola e na Europa no século 16, de origem peruana e mexicana, apresentavam diversidade de tamanhos e cores, do amarelo ao vermelho. O nome italiano “pomodoro“, “pomo de ouro”, evoca o amarelo dos primeiros tomates. Temia-se serem venenosos. A toxidez é característica de muitas plantas solanáceas, como as beladonas.

A solanina é uma toxina natural, comum em tomates, berinjelas, pimentões e batatas. Esse glicoalcaloide, de sabor amargo, quase insolúvel em água, é estável ao calor. Difícil inativá-lo pela cocção. Os níveis de solanina variam com a genética, os sistemas de produção e as condições de armazenagem. Doses de 2 a 5 miligramas por quilo de massa corporal causam sintomas de intoxicação e de 3 a 6 miligramas podem ser fatais.

Para evitar a solanina, a colheita não deve ser precoce. Tomates verdes contêm mais solanina. É necessária a completa maturação. Deve-se evitar comer quantidades excessivas diariamente e escolher tomates maduros.

O tomate é um fruto climatério e amadurece depois de colhido, como banana, manga, abacate, mamão e outros. Essa característica permite colher tomates verdes em São Paulo e enviá-los de caminhão a supermercados de Manaus, onde terminam de amadurecer e assumir a coloração vermelha.

Como planta ornamental, disseminada nos jardins botânicos e por viajantes, o tomate se espalhou pela orla do Mediterrâneo. Os italianos foram os primeiros a cultivá-lo para consumo no século 17, em Nápoles. Para a primeira garfada de macarrão com molho de tomate, foi preciso esperar até 1839, quando Ippolito Cavalcanti codificou, em dialeto napolitano, a receita do vermicelli co’ le pommodore em seu tratado Cucina Teorico-Pratica.

Tratado Cucina Teorico-Pratica | Foto: Reprodução
Espaguete tradicional à bolonhesa italiano | Foto: Shutterstock

As estradas de ferro levaram o tomate em direção ao norte da Europa. No século 20, com seleção, irrigação e estufas cresceram produtividades, áreas cultivadas, cores (verde, rosa, laranja, amarelo, vermelho, preto) e formatos (oblongos, redondos, alongados, com feitio de coração). Quando de qualidade, sua polpa é doce, perfumada e suculenta.

Um exemplo é o piennolo, o pomodorino del Vesuvio, o tomatinho do Vesúvio, a vedete de pizzaiolos e cuocos italianos, cultivado em 17 comunas, em torno de 300 m de altura, nas encostas do vulcão e colhido em cachos. Desde 2009, ele tem certificação de origem protegida, exclusiva da Itália, o DOP, e é exportado para o Japão, Estados Unidos e diversos outros países.

Domesticação, difusão pelo mundo e programas de melhoramento genético causaram forte redução da diversidade genética molecular do tomate, apesar da enorme variação morfológica nos cerca de 10 mil tipos existentes. Espécies selvagens são utilizadas em melhoramento genético para restaurar a diversidade original e trazer novas características. Busca-se ampliar a resistência e a tolerância a doenças, a adaptação a condições ambientais diferentes e a qualidade dos frutos. Aqui, apenas a Embrapa tem pesquisas e resultados nesses temas, sobretudo viroses e pragas do tomateiro.

Pomodorino del Vesuvio é um tomate cultivado em Nápoles, na Itália | Foto: Shutterstock

As sementes de tomate usadas no Brasil são importadas. O custo é alto. Não são vendidas por peso — usual em outras plantas —, e sim por lotes de mil sementes. Hoje, os tomateiros cultivados são híbridos (F1) e substituíram variedades de linhagem pura. Não adianta plantar suas sementes; não serão como o tomate original. A genética é norte-americana, e as sementes dos híbridos são produzidas, por terceirização, na China.

O uso de tecnologias e da irrigação fazem do Brasil o nono produtor mundial. A produtividade média é da ordem de 70 toneladas por hectare. São 50 mil produtores de tomate, em sua maioria pequenas propriedades, em todas as regiões, com exceção da Amazônia. Sudeste e Sul lideram a produção. O maior Estado produtor é Goiás.

No século 19, migrantes europeus levaram sementes aos Estados Unidos. O país criou o ketchup mais famoso e é o segundo produtor. A China é a maior exportadora do produto, embora o consumo de tomate seja pequeno por lá

Existem basicamente dois sistemas de cultivo: em estacas ou tutores para o tomate de mesa, consumido in natura, e tomate rasteiro para a indústria. Dada a proximidade das indústrias, o tomate para processamento é produzido principalmente em Minas Gerais, Goiás e São Paulo.

O tomate é um superalimento. São muitos seus benefícios à saúde. Com cerca de 90% a 95% de água, tem baixo valor energético (2,4 gramas de carboidratos por 100 gramas); é rico em fibras (2 gramas de fibra por 100 gramas); contém carotenoides, sendo 80% de licopeno (de 50 miligramas a 100 miligramas por quilo de tomate fresco) e outros (betacaroteno, xantofila). Seus efeitos antioxidantes e anti-inflamatórios são atestados. Carotenoides atuam no bloqueio do crescimento de tumores, no aumento das funções imune e cardiovascular, e contra a degeneração macular relacionada à idade. Cheio de nutrientes e sais minerais (potássio, manganês e magnésio), ele é fonte de vitaminas C, D, E e precursores da vitamina A.

No tomate, a concentração desses compostos depende das variedades, das condições de cultivo e outros fatores. Seus efeitos resultam da forma como o organismo os assimila ou sua bioacessibilidade e biodisponibilidade. Essas propriedades são influenciadas pelos processos de industrialização do tomate. O licopeno, eficaz na prevenção do câncer de próstata, é mais biodisponível em molhos, se comparado ao tomate fresco.

Molho de ketchup | Foto: Neil Langan/Shutterstock

Em casa, cozinha-se para a família. A indústria agroalimentar cozinha para milhões. Segundo a Abia, um molho caseiro feito com 5 quilos de tomate rende, em média, 2,5 quilos e demora mais de 2 horas para ficar pronto. A indústria brasileira produz 83 toneladas de molho a cada 2 horas, quantidade 33 mil vezes maior. Entre os produtos industrializados, em latas, vidros, garrafas, sachês e tubos, estão molhos, pomarola, extratos, polpas, concentrados, suco, pó de tomate, tomates pelados e ketchup. No século 19, migrantes europeus levaram sementes aos Estados Unidos. O país criou o ketchup mais famoso e é o segundo produtor. A China é a maior exportadora do produto, embora o consumo de tomate seja pequeno por lá.

Donas de casa conhecem bem as flutuações constantes no preço dos tomates. Variações climáticas causam oscilações de oferta para mais e para menos e impactam nos preços. No inverno, com temperaturas mais baixas, a maturação é retardada, a oferta diminui, e os preços aumentam. No verão, as temperaturas mais altas aceleram a maturação, antecipam e ampliam a oferta, e há redução nos preços. O excesso de chuvas favorece a incidência de doenças, reduz a qualidade dos frutos, os volumes produzidos e eleva os custos de produção e os preços ao consumidor.

Tomates frescos no balcão do mercado | Foto: Shutterstock

Estudos da Embrapa apontam: quem ganha com a flutuação e a especulação nos preços do tomate ao consumidor é o varejo. O setor de tomaticultura é pouco organizado. Como em outras cadeias produtivas, os agricultores precisam crescer em organização para obter maior lucratividade. Os mais estruturados e capitalizados plantam bem e vendem com maior rentabilidade, direto a supermercados e indústrias, sem atravessadores. Presença cotidiana nas mesas, o tomate contribui com a saúde pública, gera empregos e renda. Mais de meio milhão de brasileiros vivem do tomate. Após os ganhos em produtividade, as tecnologias buscam a qualidade. Aos poucos, segredos, história e benefícios do tomate são revelados pela ciência. Ao inteirar-se pela primeira vez desse dom da biodiversidade sul-americana difundida para o mundo pela mão de ibéricos e italianos, ninguém precisa ficar corado ou vermelho, como um tomate. Em 2009, durante a conferência de imprensa de um jogo de rúgbi decisivo da Irlanda contra a Inglaterra, o craque irlandês Brian O’Driscoll sentenciou: “Conhecimento é saber que o tomate é uma fruta. A sabedoria é não colocá-lo na salada de frutas”.

Leia também “Há cem anos, um menino travesso quase secou o Rio Amazonas”

7 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Quando criança tinha o costume de comer puro tomate com sal.

  2. Leonor
    Leonor

    Artigo muito interessante e instrutivo.

  3. Letícia Mammana
    Letícia Mammana

    Dr. Evaristo sabe muito de nossa agricultura. Agora nos surpreende com essa aula de história, Botânica, agronomia e gastronomia do tomate. Realmente, um autor gourmet. Só na Revista Oeste!

  4. José Gilberto Jardine
    José Gilberto Jardine

    Outro excelente artigo. Artigos com este valorizam a ótima revista Oeste.

  5. José
    José

    Excelente. Parabéns

  6. Nelson Ramos Barretto
    Nelson Ramos Barretto

    A Itália valorizou e divulgou o tomate pelo mundo com sua alta culinária. Gostei do “poma aurea”. Meus parabéns Dr. Evaristo por esse verdadeiro tratado sobre o tomate.

  7. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Sim. de maneira fácil e didática aprendemos tudo sobre tomate. Importante a disseminação de informação fiel sobre suas propriedades medicinais que muitos desconhecem. O tomate deve fazer parte da nossa dieta diária, so temos a ganhar com esse habito. Grata Por Evaristo por mais esse artigo.

Anterior:
A falácia das ‘desigualdades’
Próximo:
Imagem da Semana: nasce um pinguim-imperador
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.