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Foto: Shutterstock
Edição 189

Contas públicas na beira do abismo

Com os gastos cada vez maiores e sem meta fiscal à vista, governo Lula ameaça percorrer o mesmo caminho trilhado por Dilma Rousseff, que culminou na pior crise econômica do país desde 1929

Carlo Cauti
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No dia 31 de agosto de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou o arcabouço fiscal. A nova lei prometia garantir estabilidade para as contas públicas brasileiras nos próximos anos. Apenas 57 dias depois, Lula anunciou que a mesma lei já não valia mais nada. E preparou o Brasil para mais um rombo nas contas públicas em 2024.

“A gente não precisa disso”, declarou o presidente, no final de outubro, em entrevista coletiva com jornalistas. Anunciando que nenhum corte no orçamento federal será realizado. 

O mercado, evidentemente, pensou o oposto. Logo depois da fala de Lula, o Ibovespa teve uma das piores quedas do ano, perdendo 1,29%. O dólar, que estava caindo havia vários dias, voltou a superar os R$ 5. E os juros futuros subiram, mostrando a incerteza dos investidores com o horizonte das contas públicas brasileiras. Poucas horas depois, o banco americano Citi decidiu encerrar sua posição favorável ao real com aumento dos riscos fiscais. 

“O mercado é ganancioso demais”, foi a resposta de Lula, acusando o mercado de “cobrar uma meta irreal”. Mas tinha sido o próprio presidente que, em inúmeras ocasiões desde a campanha eleitoral, havia garantido o compromisso de seu governo com a estabilidade do orçamento público. 

“Ninguém neste mundo demonstrou mais responsabilidade fiscal do que nós”, disse Lula, em agosto de 2022. “Sabemos que temos que ter responsabilidade fiscal”, declarou, em novembro, logo depois da eleição. “Tenho consciência, pelo que a dona Lindu, minha mãe, analfabeta, me ensinou, que a gente não pode gastar mais do que a gente ganha”, reforçou o petista, em fevereiro deste ano. 

Pronunciamento à imprensa durante a entrega do Projeto de Lei Orçamentária Anual (31/8/2023) | Foto: Diogo Zacarias/Ministério da Fazenda

Entretanto, desde que Lula assumiu, o Executivo trabalhou na direção oposta ao que dizia. Em primeiro lugar, eliminando o crime de responsabilidade fiscal. Diferente da Lei do Teto de Gastos, o arcabouço fiscal não prevê punição em caso de violação das regras orçamentárias. 

A própria formulação do arcabouço, incompreensível para a maioria dos brasileiros, era um convite para a gastança. O texto previa a possibilidade de um déficit primário de até 0,25% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2024, sem penalidades para o governo. Mesmo assim, para Lula não foi suficiente. E o presidente antecipou que, no próximo ano, vai estourar o orçamento em 0,5%. O dobro do permitido. E o ano nem sequer começou.

“O arcabouço morreu antes mesmo de nascer”, afirma Raul Velloso, um dos maiores especialistas brasileiros em contas públicas. No primeiro semestre de 2023, os gastos públicos aumentaram 6,6% em comparação ao mesmo período de 2022. Mas a arrecadação não acompanhou essa alta, registrando uma diminuição progressiva. Em setembro, a quantia de impostos pagos caiu pelo quarto mês consecutivo. No acumulado de janeiro a setembro, o rombo nas contas públicas chega a R$ 93,4 bilhões. A expectativa é que, em 31 de dezembro, esse vermelho alcance R$ 150 bilhões, cerca de 1,5% do PIB. 

Caso esse cenário se repita em 2024, o saldo final da contabilidade pública poderá ser muito pior do que apenas -0,5%. “O mercado já esperava que o governo iria mudar a meta de déficit para o próximo ano. Pois, com o tamanho do gasto que estamos vendo, e com as promessas que o governo fez, seria impossível cumprir a meta. O que surpreendeu foi o momento”, explica Gabriel Leal de Barros, economista da Ryo Asset. “O presidente se antecipou demais.”

Segundo o economista, “os investidores assumiram como premissa que Lula fosse um agente racional”, observa. “Premissa heroica. Para o mercado, se o presidente jogasse a toalha da meta fiscal, este ano iria estopar o ciclo de baixa de juros por parte do Banco Central antes do tempo, prejudicando o resultado para 2024, que é ano eleitoral. A fala do presidente causou surpresa, pois revela uma certa irracionalidade na condução da política econômica.”

Logo depois da fala de Lula, o Ibovespa teve uma das piores quedas do ano, perdendo 1,29%. O dólar, que estava caindo havia vários dias, voltou a superar os R$ 5 | Foto: Shutterstock
O drama das contas públicas

A condição real do déficit fiscal brasileiro é bem pior do que aparentado pelo governo. E o mercado está começando a perceber essa situação dramática. 

Em primeiro lugar, o déficit nominal brasileiro, calculado somando os juros pagos sobre a dívida pública, é muito maior do que o déficit primário de 0,25% ou 0,5% do PIB. O rombo real para 2024 está previsto em pelo menos 6,57%. Isso com uma dívida pública num patamar de 75% do PIB, como o atual. 

Isso foi antes das declarações de Lula. Com a autorização presidencial para gastar, as contas públicas poderão fechar num vermelho ainda mais profundo no ano que vem. 

Em meados de outubro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) já tinha antecipado que o Brasil não conseguirá zerar o déficit fiscal em 2024. E alertou sobre a trajetória da dívida pública brasileira, que, segundo os cálculos da organização internacional, vai chegar a 88,1% do PIB já no final de 2023. Beirando os 90% no próximo ano. O Brasil é atualmente o terceiro país emergente mais endividado do mundo, ao lado de Argentina e Egito. 

Além disso, o verdadeiro risco para a sustentabilidade fiscal brasileira está no refinanciamento da dívida. Todos os meses, parte dos títulos da dívida pública chega a seu vencimento natural, e o governo precisa pagar os donos desses papéis. Isso se faz através da rolagem. Ou seja, emitindo novos papéis do Tesouro Nacional para reembolsar os anteriores. 

O calcanhar de Aquiles da dívida pública brasileira é o prazo médio de vencimento. Apenas 4,1 anos. Muito curto. Os Estados Unidos têm um prazo médio acima de seis anos. O Reino Unido, superior a 14 anos. 

Com isso, o Tesouro Nacional precisa rolar uma quantidade enorme de dívida pública. Considerando essa necessidade de refinanciamento, o déficit fiscal brasileiro vai para 25% do PIB. Esse é o verdadeiro tamanho do problema das contas públicas brasileiras. Um fardo que pesa nos cofres públicos brasileiros, contribuindo para manter as taxas de juros elevadas. 

“O problema poderá ocorrer se o Tesouro não conseguir rolar essa dívida”, diz Sérgio Machado, sócio-gestor da MAG Investimentos. “Ainda não estamos vendo isso acontecer. Mas a participação dos investidores estrangeiros na dívida pública está na mínima.”

Orçamento é obra de ficção

Soma-se a isso o excesso de otimismo com a arrecadação tributária para o próximo ano — que transformou a previsão para as contas públicas de 2024 numa obra de ficção, desde a apresentação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). 

O controle fiscal do governo Lula depende de atingimentos de metas extremamente ambiciosas. Para fechar as contas no azul, o Executivo teria que obter pelo menos R$ 168 bilhões em tributos adicionais. Cerca de 10% a mais do que foi arrecadado em 2022. Algo considerado impossível pelos analistas em condições de crescimento econômico normais. E ainda mais inalcançável com uma economia brasileira que está entrando em fase de desaceleração e com uma conjuntura internacional desfavorável. 

Mas, como declarou a ministra do Planejamento, Simone Tebet, quando questionada sobre a viabilidade desses números, “o futuro a Deus pertence”. “O governo está apostando todas as fichas em aumentar a carga tributária”, afirma Leal de Barros. “É a única bala no revólver. Se der errado, lascou. O ajuste fiscal simplesmente foi colocado de lado. O Planalto não está disposto a aceitar um plano de reformas das despesas.”

Entretanto, a erosão da base fiscal neste ano era algo facilmente previsível. Isso porque, em 2022, os efeitos dos estímulos fiscais e do Auxílio Brasil, concedidos durante a pandemia, além do superaquecimento econômico e da conjuntura internacional, geraram um forte crescimento do PIB nominal e, consequentemente, provocaram uma disparada na arrecadação. 

A volta à normalidade neste ano também gerou redução na arrecadação, já que a base de comparação do ano anterior era muito elevada. O governo calibrou seus gastos nos patamares de 2022. E, como “gasto público é vida”, recusa-se a reajustá-lo à nova realidade. 

Simone Tebet Planejamento
Quando questionada sobre a viabilidade dos números, Simone Tebet declarou que “o futuro a Deus pertence” | Foto: Divulgação/Agência Brasil
Desespero arrecadatório

A saída encontrada pelo Executivo foi buscar receitas extraordinárias. Por exemplo, com decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), no qual o governo mudou as regras para o voto de qualidade. A esperança é obter mais R$ 50 bilhões. Ou com sentenças favoráveis do Supremo Tribunal Federal (STF), que desde fevereiro começou uma revisão das decisões tributárias já tomadas. Ou até mesmo tomando os recursos dos trabalhadores, como ocorreu em setembro, quando o Executivo se apropriou de R$ 26 bilhões do Programa de Integração Social e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep). Sem esse dinheiro, o mês de setembro teria registrado mais um déficit das contas públicas, de R$ 14,5 bilhões.

Uma alternativa para obter recursos passaria por concessões e privatizações. Uma fonte de receita que, no passado, foi fundamental para garantir o equilíbrio fiscal, eliminando também o peso do endividamento das empresas públicas. Mas essas duas palavras são consideradas quase anátema no Palácio do Planalto. 

O Executivo poderia também utilizar os dividendos das estatais, principalmente da Petrobras e do Banco do Brasil, para reduzir o rombo fiscal. Opção também desconsiderada por questões ideológicas. Especialmente após os duríssimos ataques de líderes do Partido dos Trabalhadores, como a presidente Gleisi Hoffmann. A mesma que, em novembro de 2022, tinha chamado o mercado de “uma vergonha” e mandado “parar de mimimi”. 

Haddad desautorado, Congresso faminto

O maior derrotado por essa situação é o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Considerado pela Faria Lima como uma garantia de estabilidade nas contas públicas, ele construiu nos últimos dez meses sua credibilidade em cima da promessa de que, a partir de 2024, o orçamento voltaria ao equilíbrio. 

As declarações de Lula desautoraram o ministro. Não por acaso, quatro dias depois, Haddad aparentou um forte nervosismo durante uma coletiva de imprensa, abandonada sem resposta aos jornalistas. “A pergunta foi muito dura”, justificou-se Haddad. 

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O descontrole fiscal que está a caminho do Brasil está sendo produzido por medidas deliberadas do governo Lula — e não por culpa dos governos anteriores

“O ministro foi bombardeado”, observou Machado. “Ele, que é o mais pragmático dentro do PT, acabou se enfraquecendo. E isso é ruim para o futuro. Aumenta o risco fiscal.”

Além do ministro, a credibilidade inteira da equipe econômica foi abalada. No mesmo dia das declarações do presidente, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, tinha descartado mudanças na meta de déficit zero. E, poucos dias antes, Gustavo Guimarães, secretário-executivo do Ministério do Planejamento e Orçamento, tinha afirmado que o governo iria fazer de tudo para garantir as contas no azul em 2024.

Quem está muito atento a essas dinâmicas é o Congresso Nacional, que percebeu o enfraquecimento do governo, junto com a disposição em gastar mais. Os parlamentares não vão deixar passar a oportunidade para obter mais recursos. 

“Essa história toda é música para os ouvidos do Congresso, que é ávido de emendas”, explica Leal de Barros. “Tanto que o próprio vice-líder do governo na Câmara, Pedro Paulo, já falou em aumentar esse déficit. E faz sentido. Se o custo político dessa história é tão elevado, o ganho não pode ser de apenas 0,25%.”

Gustavo Guimarães, secretário-executivo do Ministério do Planejamento e Orçamento | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Bomba previdenciária

Para Velloso, o problema do orçamento público vai se agravar nos próximos anos, mesmo se o governo decidir cortar drasticamente as despesas discricionárias, como investimentos. “Não tem como lidar com uma situação igual à nossa sem atacar o gasto público que mais cresceu nesse período: a Previdência”, observa. “Em 1987, gastávamos 19,2% do PIB em Previdência. Hoje, estamos em quase 52%. Se não resolver esse problema, o que resta para fazer é muito pouco. O governo vai tentar inventar formas de contornar isso procurando receitas novas, achando fórmulas milagrosas. Mas não vai adiantar.”

Segundo o economista, o Brasil terá déficits fiscais crescentes nos próximos anos por causa dos gastos previdenciários. E isso acabará comprometendo os programas de investimento, que já estão em nível historicamente baixo.

“Sem investimentos, o PIB vai sofrer”, garante Velloso. “Não conseguiremos voltar a crescer. A arrecadação também vai diminuir. Começará uma guerra em Brasília para criar novos impostos. E os mercados, que não são bobos, vão perceber que esse é um caminho sem rumo. O pessimismo vai voltar. Nosso futuro será de um caos econômico. Uma nova Argentina. Ou pior.”

O descontrole fiscal que está a caminho do Brasil está sendo produzido por medidas deliberadas do governo Lula — e não por culpa dos governos anteriores. O aparente compromisso com o equilíbrio das contas públicas nos primeiros meses de mandato foi fruto de pressões da sociedade, do Congresso e do mercado. Mas contra a vontade e os instintos do PT, que agora parece estar decidido a voltar a gastar. “Zero chance de que, até 2026, o Brasil volte a ter as contas no azul”, afirma Velloso. 

Um filme que o Brasil já viu no passado recente, especialmente durante os governos Dilma Rousseff. E que culminou na pior crise econômica do país desde 1929. 

Leia também “A síndrome de Estocolmo argentina”

9 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Nenhuma novidade. A quadrilha petista é ávida em saquear o dinheiro público.

  2. Joaquim Días do Nascimento Júnior
    Joaquim Días do Nascimento Júnior

    Um fato é claro: o Brasil tem 54 milhões de pessoas intelectualmente nulas e seis milhões de pessoas espertalhonas, isto fecha a conta dos sessenta milhões que aprovaram a pior escolha que poderiam fazer nas últimas eleições presidenciais, ou seja trazer de volta o que pior se tem no momento no setor político : Lula. Para piorar juntaram Geraldo Alkmin à receita e o creme foi a Janja. Assim aliado ao que de pior poderia produzir o Judiciário, temos um STF que é vergonha planetária. Assim coroamos o País com Lula 3 ou a imbecilidade de um povo sem rumo, sem conhecimento e sem vergonha na cara.

  3. jose carlos gomes
    jose carlos gomes

    Pelo jeito nada muda na terra da fantasia, passa ano, vem ano , tudo vai se repetindo

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    PT sempre será mais do mesmo.
    Na crise desencadeada por aquela senhora que queria estocar vento, conheci o fundo do poço.
    Comecei a respirar novamente quando Michel Temer assumiu e conseguiu algumas reformas que estabilizaram o país.
    Renegociei minhas dívidas e consegui quitar as últimas parcelas em maio de ano.
    Confesso que estou receoso com o futuro econômico do país.

  5. Marcus Borelli
    Marcus Borelli

    Acredito que o professor Velloso ou a matéria cometeram um erro pois 52% do PIB não corresponde aos fatos.

  6. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Os PTralhas continuam com o projeto de destruir o país.

  7. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

    Fora Lula

  8. MNJM
    MNJM

    A turma que fez o “L” deve estar confiante nesse Governo irresponsável e incompetente.
    Está no seu DNA do PT a GASTANÇA e a CORRUPÇÃO

  9. Oldair Dorigon Bianco
    Oldair Dorigon Bianco

    E se fizermos o L! Não resolve?

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