Um dia eu vou contar aos netinhos (que ainda não tenho) sobre meu último emprego “normal”. Vou lembrar que me envenenava de stress no trânsito, a caminho da empresa de jornalismo onde trabalhava. Chegando lá, ligava o computador, checava as redes sociais, conversava com os amigos e amigas, debatia a rodada no futebol, tomava café, dava boas risadas, ouvia as fofocas sobre possíveis mudanças de chefia, tomava outro café, dava uma volta solitária no jardim, jantava no bandejão da firma. E então, quando voltava para casa, escrevia meus artigos com toda a seriedade e dedicação madrugada adentro. Sim, queridos netinhos. Meu local de trabalho era um clube. Minha casa era meu verdadeiro local de trabalho.
Trabalhar em casa era “exótico” há apenas 15 anos. Hoje o homeworking está virando a norma. Especialmente com o empurrão de uma pandemia global, que nos trancou numa escassez de opções viáveis. Mas a tendência já estava se fortalecendo antes mesmo da covid-19.
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Não tem mais sentido (em muitas atividades profissionais) jogar no lixo horas diárias de deslocamento pela cidade. E mesmo o ato rotineiro de juntar as pessoas num único lugar de trabalho vem tendo sua lógica — finalmente — contestada. Sob essa nova perspectiva, a vida “na firma” parece cada vez mais um ritual corporativo cheio de significados ocultos e pouca eficiência. Como um episódio repetido da série The Office.
Claro que médicos continuarão indo aos hospitais, bombeiros aos quartéis, cozinheiros aos restaurantes etc. São profissionais que precisam estar em seu local apropriado de trabalho. Mas para uma vasta parcela de atividades profissionais não existe o menor sentido em permanecer emburrado num escritório de olho no relógio, esperando que as horas passem rápido. Isso não é trabalho. É emprego. Depois que inventaram a internet, todos esses costumes profissionais que pareciam eternos deixaram de ter sentido. E, com a implantação da internet das coisas, nem mesmo os médicos terão de se deslocar para realizar suas cirurgias.
De casa, em São Paulo, a executiva dirige sua equipe na costa leste dos EUA
O sociólogo norte-americano Jeremy Rifkin resumiu para a BBC um pouco dessa vasta mudança. “A revolução comunicativa é a internet, assim como foram a imprensa e o telégrafo na Primeira Revolução Industrial no século 19 no Reino Unido ou o telefone, o rádio e a televisão na Segunda Revolução no século 20 nos Estados Unidos. Hoje, temos mais de 4 bilhões de pessoas conectadas […]. Em um período como o que estamos vivendo, as tecnologias nos permitem integrar um grande número de pessoas em uma nova estrutura de relações econômicas. A internet do conhecimento é combinada com a internet da energia e a internet da mobilidade. Essas três internets criam a infraestrutura da Terceira Revolução Industrial. Elas convergirão e se desenvolverão em uma infraestrutura de internet das coisas que reconfigurará a maneira como todas as atividades são gerenciadas no século 21.”
Uma personagem desse novo tempo é Gabriela, que prefere não dizer o sobrenome. Gabriela é gerente de projetos especiais de uma grande multinacional norte-americana. Ela coordena sua equipe na costa leste dos EUA… dando de mamar em seu apartamento em São Paulo. “A empresa é superadepta do home office e flex time. Então, desde que o trabalho esteja sendo feito, não há horário fixo. Tenho um filho pequeno que está em casa comigo todos os dias enquanto trabalho. Não dá para fazer o típico horário das 8 às 17. Só fico mais atenta enquanto o pessoal está ativo na matriz devido ao fuso horário. Mas dá tranquilamente para trabalhar sob demanda.”
Claro que Gabriela ganharia muito mais, e em dólar, se trabalhasse na sede da empresa. “Eles criaram esse movimento de realocação de funções em outros países justamente para diminuição de custos. Acho vantajoso para mim, pois estou tendo a oportunidade de me expor a outra cultura e a pessoas que nunca conheceria. Networking internacional é fantástico. Globalização ao extremo.”
Uma volta imediata aos escritórios imporia um inferno de regras de distanciamento, controle de temperatura, normas restritas de comportamento e vestuário
Nem todo mundo convocado a trabalhar em casa está gostando da novidade. Uma pesquisa realizada em abril nos Estados Unidos pela consultoria Eagle Hill constatou que cerca de metade dos trabalhadores não vê a hora de voltar ao escritório. Eis as principais razões para queixa: maior carga de trabalho, a mistura entre vida profissional e pessoal, falhas de apoio da empresa, aumento da pressão do tempo.
O problema para os descontentes é que não existe retorno tão cedo para a “normalidade”. Nicholas Bloom, professor de Economia na Universidade Stanford, estuda trabalho remoto desde muito antes da pandemia. Bloom calcula que uma volta mais ou menos imediata aos locais tradicionais de trabalho imporia um inferno de regras de distanciamento, controle de temperatura, normas restritas de comportamento e vestuário, batalhas jurídicas trabalhistas etc. Apesar das dificuldades, é mais fácil para as empresas mandar todo mundo para casa.
Essa mudança (ou parte dela) provavelmente não será revertida com o fim da pandemia. É para sempre — ou pelo menos até que haja outra transformação. O Wall Street Journal noticiou que a Google/Alphabet determinou que toda a sua força de trabalho — 200 mil funcionários ao redor do mundo — passe a trabalhar em casa até julho de 2021. “Sei que não vai ser fácil”, comunicou o CEO da empresa, Sundar Pichai, a seus funcionários. “Espero que isso ofereça a flexibilidade que vocês precisam para equilibrar trabalho com cuidar de vocês e de seus amados pelos próximos doze meses.”
Mark Zuckerberg enxergou mais adiante e já declarou que espera que pelo menos metade dos 45 mil empregados do Facebook passe a trabalhar em casa não no próximo ano, mas durante toda a próxima década. A Twitter nem tem prazo para a volta aos escritórios. Espera que apenas 20% dos seus funcionários retornem. Já mandou avisar aos outros 80% que podem trabalhar em casa “indefinidamente”, se quiserem.
Hotéis de Nova York estão adaptando suítes para que se tornem luxuosos escritórios individuais de aluguel
Está complicado em casa? Alugue uma salinha de coworking, um ramo que tende a crescer com esse panorama. Com a baixa do turismo, hotéis de Nova York estão adaptando suítes para que se tornem luxuosos escritórios individuais de aluguel. Com room service, claro.
O melhor ambiente de trabalho que conheci na minha vida de repórter foi a sede da produtora Pixar, na Califórnia. A Pixar oferece a seus funcionários um câmpus onde mistura ambientes de trabalho altamente aconchegantes e confortáveis, instalações esportivas, restaurante, lanchonete, tudo funcionando 24 horas. A maior dificuldade era fazer os funcionários voltar para casa. Tudo ali foi feito para incentivar a criatividade e a vontade de produzir.
Quando voltei para a redação da revista onde trabalhava, olhei para aquelas pessoas amontoadas em ambiente fechado, grudadas umas nas outras, todas falando ao mesmo tempo, olhando para seus computadores ou para outras pessoas olhando seus computadores. Eu não entendia como alguém pudesse escrever uma linha que fosse num ambiente como aquele. Preferia o aconchego do meu home office, minha roupa larga, a boa música nos fones. Em casa, eu escrevia sem parar porque escrevia com prazer. E procurava estar o mais bem equipado possível para o trabalho. Sabia que essa relativa independência no emprego dependia de minha capacidade de produzir, me comunicar e entregar minha produção.
Mesmo os mais “humildes” (e essenciais) têm encarado as novas exigências da tecnologia
Na atual situação, a tecnofobia se tornou o novo analfabetismo. O maior exemplo disso foi dado por profissionais mais “humildes” (e essenciais). Eles foram muito rápidos em perceber que ninguém mais pode oferecer um trabalho de faxineiro, encanador ou pedreiro se não tiver um celular com os aplicativos essenciais de comunicação e finanças, um endereço de e-mail e uma maquininha de cobrança de cartões. É cada um empresário de si mesmo.
Toda mudança assusta. A estabilidade do passado recente era artificial e deslocada da realidade, garantida por uma legislação ultrapassada. Essa insegurança com as novas regras é natural. Pode paralisar. É campo fértil para demagogos que prometem a estabilidade e a segurança de volta, em pleno terremoto.
O futuro do modo como trabalhamos e ganhamos nosso dinheiro se parece hoje com uma floresta escura e cheia de ameaças. É um péssimo momento para quem tem medo de mudanças. O resto de nós acorda, escova os dentes, tira o pijama, coloca uma roupa confortável, liga o computador e aproveita mais um dia de revolução.
Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.
Como é bom ler um texto abordando esse tema sem o viés da visão enfadonha e monótona da ideologia, seja ela qual for.
Parabéns pelo texto.
😉
Que boas lembranças dos textos inteligentes de Dagomir na extinta (auto-extinta, por pura incompetência editorial) revista Info nos anos 90. Aqueles textos eram um Oasis no deserto.
Ótimo artigo, Dagomir! Em meio a tantos desgastes que estamos vivendo nesse mundo, seus brilhantes textos têm sido verdadeiros bálsamos. Excelente “aquisição” da Oeste.
Ótimo artigo, parabéns.
Excelente artigo! Estamos vivendo uma verdadeira revolução. Antes talvez parecesse apenas uma evolução das grandes mudanças trazidas pela internet e introduzidas de forma, nem tão lenta, mas gradual. Aí veio essa pandemia e acelerou drasticamente esse processo. Quem não estiver preparado será sumariamente “excluído”. A ver.
Ótimo texto, Sr. Dagomir. Não há como contestar. Até aproveito a deixa para acrescentar aqui uma vantagem adicional, que me ocorreu neste momento: o fim (o fim talvez não, claro), mas um possível enfraquecimento do politicamente correto, essa praga que ameaçava tomar conta do mundo. Minha preocupação agora é quem irá ocupar o lugar deixado por essa gente toda nos espaços públicos, e que ainda não mostraram a cara. No meu tempo de criança havia um dito muito repetido aqui na nossa região: “Quem sai no vento perde o assento”.
Muito bom, Dagomir. Seus artigos estão entre os melhores motivos para assinar a Oeste.