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Manifestação pró-Palestina na cidade de Nova York, nos Estados Unidos (26/10/2023) | Foto: Reuters/Eduardo Munoz
Edição 190

A normalização da selvageria

Nas sociedades em que se desiste da liberdade, ela logo é substituída pela violência

Brendan O'Neill, da Spiked
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Desde o ataque do Hamas em 7 de outubro, tem havido uma tempestade de comentários sobre o aumento do desequilíbrio na cultura do campus no Ocidente. Políticos e escritores estão perplexos com o fato de que, nas universidades onde é considerado “microagressão” perguntar a uma pessoa de que lugar ela vem e onde você pode ser submetido a um interrogatório à moda de Salem por usar uma fantasia ofensiva no Halloween, a real violência genocida parece não incomodar as pessoas. Os mesmos maoístas jovens que choram e esperneiam se você disser que “mulheres não têm pênis” deram de ombros coletivamente para o massacre de mulheres e crianças judias. Alguns até o justificaram. “Glória aos nossos mártires”, lia-se em uma projeção na parede de um prédio da Universidade George Washington.

Se encostar no cabelo de um estudante afro-americano, você é um supremacista branco, mas, se assassinar judeus a sangue-frio, você é um mártir. Se uma pessoa branca fizer tranças afro no cabelo, ela se torna uma ladra racista; mas, se invadir um país com a intenção declarada de matar judeus, ela se torna a “resistência”. Se servir sushi ruim — como fez a cafeteria da superpoliticamente correta Faculdade Oberlin alguns anos atrás —, você será condenado por apropriação cultural. Mas, se matar centenas de pessoas em um festival pela paz no sul de Israel, os mesmos jovens que reclamam da comida japonesa servida por chefs brancos vão inventar justificativas para você. Israel é “totalmente responsável” por “toda a violência” no Oriente Médio, afirmaram ativistas estudantis em Harvard, antes mesmo que os corpos dos 1,4 mil israelenses esfriassem. 

Nossas universidades woke discutem “todos os tópicos possíveis e imagináveis”, afirmou Ben Sasse, ex-senador por Nebraska, mas não se importam com os “ataques mais graves e grotescos contra o povo judeu desde o Holocausto”. Os universitários fazem barulho por causa de coisas “idiotas” como “microagressões e pronomes”, mas hesitam, ou pior, diante do “massacre de israelenses inocentes”, disse um colunista. Quando estudantes judeus da Cooper Union, na cidade de Nova York, tiveram que ser trancados na biblioteca para se proteger de uma multidão de ativistas “pró-Palestina”, Robert Pondiscio, do American Enterprise Institute, declarou: “Nem uma palavra — em nenhuma ocasião — sobre espaços seguros, microagressões ou ‘apagamento’ em um campus universitário. Nem uma única palavra”.

Essas críticas furiosas aos infantes da moral em nossos campi são compreensíveis. Não é só irritante, é também enfurecedor, que jovens que consideram que “errar o gênero” de alguém é um ato de violência fiquem tranquilos com a violência literal. Que esses filhos e essas filhas do privilégio e da sensibilidade enjoativa exijam um espaço seguro — repleto de livros para colorir e cachorros para acariciar — quando um palestrante controverso obscurece a entrada da sua universidade na Ivy League, mas não pareçam achar que os judeus israelenses merecem um espaço seguro contra os neofascistas do Hamas. Ferir a autoestima deles? Sacrilégio. Ferir e matar judeus desarmados? Coisa de mártir.

No entanto, é importante dizer que essa solidariedade assustadora pelo Hamas, essa desconsideração misantrópica pela segurança e dignidade dos judeus, na verdade não contradiz a ideologia do espaço seguro. A atitude arrogante dos politicamente corretos em relação à macroagressão de massacrar civis não significa uma ruptura de fato com o policiamento obsessivo da microagressão de ferir os sentimentos de alguém com uma ideia desagradável. Não; há uma linha lógica entre a denúncia furiosa de certas formas de discurso como “violência” e a aceitação implícita da violência real, se ela for dirigida contra pessoas “más”. Essa linha é o que poderíamos chamar de selvageria narcisista, em que quase tudo pode ser justificado em nome de proteger nossas crenças e nosso senso psíquico de segurança contra danos. Censura, assédio e até mesmo agressão física — quando o “eu” e sua saúde emocional são sacralizados acima de tudo, acima de qualquer outra consideração moral e social —, tudo se torna permissível em sua defesa.

A intimidação está embutida na ideologia do espaço seguro. A própria ideia de que alguns indivíduos e algumas ideias são tão prejudiciais à saúde espiritual de alguém que é necessário tomar medidas especiais para mantê-los afastados incita ativamente a histeria e a violência

O que testemunhamos nas últimas semanas é a violência latente da ideologia do espaço seguro. O fato de os ativistas do espaço seguro nos campi do século 21 parecerem estar de acordo com um dos piores atos de violência dos tempos modernos não é prova de que eles tenham traído os princípios do espaço seguro, e sim de que o espaço seguro se presta incrivelmente à intolerância, mesmo quando envolve assassinatos. Alguns anos atrás, dei uma palestra na Universidade da Califórnia, em Irvine, sobre “a violência do espaço seguro”. Argumentei que o que mais impressiona nos espaços seguros é quanto são inseguros. Sim, essa nova ideologia se justifica na linguagem de manter os alunos a salvo da “intimidação”, mas na verdade os espaços seguros são “zonas feias e autoritárias” que são “sustentadas por ameaça”. Porque, no próprio ato de oferecer proteção contra pessoas transgressoras, o espaço seguro coloca essas pessoas transgressoras na mira, expondo-as a severas formas de repreensão física e social.

Faz tempo que a violência faz parte do culto ao espaço seguro no campus. As pessoas têm sido constrangidas, agredidas e até mesmo atacadas com urina, tudo em nome da “segurança” e da preservação do espaço seguro e sagrado dessa influência moral maligna. Em universidades do Reino Unido, reuniões de estudantes pró-Israel foram invadidas por esquerdistas e estudantes com cargos de autoridade que essencialmente consideraram essas reuniões “não seguras” para estudantes árabes e outras minorias étnicas. Esses encontros estudantis, compostos em sua maioria de judeus, chegaram a ser atacados fisicamente: janelas quebradas, cadeiras reviradas. Esse é o terror da segurança. Ao decretarem que esses encontros não são seguros, que são uma ameaça ao bem-estar emocional dos alunos, os ideólogos do campus dão sinal verde para ações extremas contra eles.

Também vale considerar o tratamento dado aos acadêmicos críticos da teoria de gênero — considerados “não seguros”. Um deles teve urina espalhada na porta de sua sala. Outros tiveram que contratar seguranças só para circular pelo campus. Kathleen Stock foi praticamente expulsa da Universidade de Sussex pelos chamados aliados das pessoas trans. O grupo afirmou que Stock era “nociva e perigosa” para sua saúde mental. O orwellianismo chegou a níveis inimagináveis. Em nome da nossa segurança, vamos privar a professora Stock de sua própria segurança. Para que Sussex seja um “espaço seguro”, a ideia de segurança teve de ser erradicada, para que a professora se afastasse e levasse junto suas ideias malévolas — como a de que homens não podem ser lésbicas. Quando Stock falou na Oxford Union no início deste ano, multidões de estudantes se enfureceram. “Temos o direito de nos sentirmos seguros em relação ao fanatismo e ao assédio”, disseram, e, com Stock por perto, “não sentimos essa segurança”. Em versão resumida: “Precisamos atacar Stock para nos sentirmos seguros”.

A intimidação está embutida na ideologia do espaço seguro. A própria ideia de que alguns indivíduos e algumas ideias são tão prejudiciais à saúde espiritual de alguém que é necessário tomar medidas especiais para mantê-los afastados incita ativamente a histeria e a violência. Fui impedido de falar na Universidade de Oxford em 2014 com base no fato de que minha presença “faria os alunos não se sentirem seguros”. Manifestantes do corpo estudantil ameaçaram comparecer com “instrumentos” se o debate fosse realizado — e não estavam se referindo a instrumentos musicais. Eles estavam tão convencidos de que minhas palavras — naquele caso, sobre a questão do aborto — causariam danos irreparáveis à sua autoestima que estavam dispostos a se opor à minha liberdade. Para garantir a própria segurança, eles tiveram que comprometer a minha.

A ideologia do espaço seguro alimenta o medo existencial. Assim como os aldeões da época medieval, que enlouqueciam com visões de lobos e monstros que se escondiam em suas fronteiras, o estudante que vive em um espaço seguro acaba se convencendo de que todos os que estão fora desse espaço não são seguros, ou seja, são perversos. É por isso que, como argumentei na Califórnia em 2016, o espaço seguro precisa ser sempre “fortificado por uma ameaça latente de força contra os transgressores” e contra qualquer um que transgrida o “novo culto à segurança psíquica e ao conformismo moral”. É um erro pensar nos radicais do campus como inofensivos, criaturas hiper vulneráveis que podem desmoronar ao ter contato com um pensamento divergente. Porque existe uma escuridão, uma crueldade no ativismo do espaço seguro. É a tirania disfarçada de terapia.

Sendo assim, não é surpreendente, nem contraditório, que os ideólogos do campus — que se enfurecem diante de palavras não politicamente corretas — agora aceitem, ou pelo menos justifiquem, a violência neofascista. Eles estão projetando sua ideologia de segurança nos eventos do Oriente Médio. Para essas pessoas, os israelenses são violadores do espaço seguro dos palestinos e, portanto, a vingança contra eles não é apenas justificada, mas correta. É impressionante quanto a linguagem ocidental do pavor mental está sendo usada para explicar a crise no Oriente Médio. Haverá um “tsunami de problemas de saúde mental” como resultado do mais recente conflito entre Israel e Gaza, informa a rádio nacional pública (NPR) dos Estados Unidos. O ataque a Gaza está tendo um impacto terrível na “saúde mental das crianças palestinas”, afirma um psicólogo norte-americano. Muitos radicais nos campi também veem cada evento pelo prisma das noções ocidentais de vulnerabilidade. Não seria surpreendente se eles considerassem o pogrom do Hamas de 7 de outubro menos como um ataque racista contra o povo judeu, e mais como um ato de vingança terapêutica contra um vizinho “privilegiado” — uma vingança catártica contra aqueles que fazem os árabes se sentirem “inseguros”.

Desde o ataque de outubro, o antissemitismo aumentou muito nas universidades dos Estados Unidos, e grande parte dele é alimentado pelo culto à segurança. Erwin Chemerinsky, reitor da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, em Berkeley, relata que uma aluna contou que “o que faria com que ela se sentisse segura” em seu curso de direito seria “se livrar dos sionistas”. Em suma, para alentar seus sentimentos narcisistas de segurança psíquica e ideológica, alguns judeus devem ser expulsos. Claramente, o espaço seguro também permite o racismo.

O ódio tem sido implacável. Um professor da Universidade de Colúmbia declarou que o ataque do Hamas a Israel foi uma “vitória impressionante”. Outro professor de Yale afirmou que 7 de outubro foi um “dia extraordinário” e um grande golpe para o “Estado genocida dos colonos” de Israel. Um professor de arte de Chicago disse que “os israelenses são porcos. Selvagens… Excremento irredimível”. E uma professora da Universidade da Califórnia em Davis ameaçou: “Os jornalistas sionistas (…) têm casas [com] endereços, filhos na escola” e “deveriam ter medo de nós”. 

Observe a emoção indireta que essas pessoas parecem sentir diante de atos de violência inimaginável que estão distantes. O culto à vulnerabilidade — e seu primo feio, a vingança — lhes roubou a humanidade. Considerar os israelenses “porcos” e “excremento”, e os sionistas ocidentais “criaturas suspeitas que merecem viver com medo”, mostra a desumanidade de abstrair constantemente os indivíduos. De tratar as pessoas como “oprimidas”, portanto, boas, ou “privilegiadas”, portanto, más. É um caminho curto entre as teorias acadêmicas de “privilégio branco” e o rebaixamento dos israelenses a excremento, cujo assassinato deve ser celebrado. A razão pela qual algumas pessoas nas universidades americanas estão sentindo um prazer indireto com o ataque do Hamas é o fato de acreditarem que isso fortalece a visão de mundo de privilégio/opressor e dá força física ao seu próprio desprezo pelos mercadores da insegurança. Elas aceitam o pogrom como uma espécie de terapia primitiva. 

Foto: Reprodução/Newsweek

É assustador que muitos jovens pareçam estar tranquilos em relação ao terrorismo do Hamas. Uma pesquisa de Harvard, nos Estados Unidos, revelou que 52% dos jovens entre 18 e 24 anos apoiam Israel, mas surpreendentes 48% apoiam o Hamas. Cinquenta e um por cento afirmam que a violência do Hamas contra civis israelenses é justificada. Como disse uma manchete da Newsweek, “An insane number of Gen Zers support Hamas’s slaughter of innocent Israelis” (“Um número insano de pessoas da geração Z apoia o massacre de israelenses inocentes pelo Hamas”). Pesquisas no Reino Unido sugerem que um número significativo de jovens rejeita a ideia de que o Hamas seja terrorista. Não pode haver denúncia maior do nosso sistema educacional e de todos os novos sistemas de socialização do que o fato de que boa parte da nova geração testemunhou o pior ato de violência antissemita desde o Holocausto e pensou: “Talvez Israel tenha merecido”. Podemos ver com clareza o impacto nocivo que a política identitária e o culto à piedade tiveram sobre a alma dos jovens. Eles foram afastados dos valores de nossa civilização, a ponto de sentirem mais afinidade com a barbárie retrógrada e antiocidental do Hamas do que com os civis judeus e o Estado democrático que foram profanados por essa barbárie.

Estamos vivendo uma normalização da violência. A dizimação dos ideais de liberdade, especialmente entre a geração millennial e a geração Z, deu origem a uma situação em que o debate é desencorajado por ser ofensivo, em que a força bruta é usada contra os dissidentes, e em que até mesmo o terror genocida pode ser celebrado se silenciar os “privilegiados”. Na ausência de liberdade de expressão, os rituais pré-modernos de humilhação e punição dos transgressores da ortodoxia voltaram com uma vingança sangrenta. Sem dívida, o sombrio e trágico mês de outubro de 2023 é um alerta para o Ocidente.


Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da Spiked, The Brendan O’Neill Show. Seu novo livro, A Heretic’s Manifesto: Essays on the Unsayable, já está à venda. Ele está no Instagram: @burntoakboy.

Leia também “A esquerda islâmica é uma ameaça contra os judeus e a decência”

10 comentários
  1. Marcia Regina Soares Altahyde
    Marcia Regina Soares Altahyde

    Triste realidade mundial. O que será do futuro? Me pergunto isso todos os dias…

  2. Odilon Soares Teixeira da Silveira
    Odilon Soares Teixeira da Silveira

    O que mais horroriza é que o facismo já vem sendo feito há anos pela esquerda woke no mundo inteiro mas só tirou a máscara agora com a situação do Hamas(fascistas e terroristas declarados) que fizeram “o favor” de desnudarem essas malditas máscaras,,,

  3. Fábio Hombre
    Fábio Hombre

    ACUSAM INJUSTAMENTE BOLSONARO DE SER N@ZI
    MAS A ESQUERDA É N@AZI

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Por essas que devemos cada vez mais acompanhar com lupa nossos filhos nas escolas.

    1. Renato Perim
      Renato Perim

      Cabral, infelizmente acho que já passamos desse ponto. Teríamos que resetar TODOS os professores, reitores e etc pra tentar alguma melhora. Nossos filhos são submetidos a uma massiva doutrinação desde o jardim de infância. É como os palestinos, já no berço começam com ideias antissemitas.

  5. Lenart Palmeira do Nascimento Filho
    Lenart Palmeira do Nascimento Filho

    Nunca tinha ouvido falar dessa ideologia do espaço seguro. Coisa de maluco! Você não poder ouvir um discurso contrário ao seu pensamento e atacar quem o faz porque você não se sente seguro? Absurdo!

  6. Marcus Vilela
    Marcus Vilela

    No Brasil estamos sempre 1 ou 2 anos atrasados em relação aos EUA e Europa em relação a esse tipo de sandice.
    Por aqui já começou essa imbecilidade mas não nesse nível de ignorância ( mas chegaremos lá se depender dessa esquerda histriônica.
    Eu particularmente não teria paciência e nem maturidade para lidar com esses eternos “adolescentes”
    É como dizem, não adianta querer combater violência soltando pombinhas brancas.
    Como dia James Hetfield: “Fight fire with fire”.

  7. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo. Parabéns. Que venha o apocalipse nuclear para dizimar a humanidade. Já deu.

  8. MB
    MB

    Nunca imaginei viver esse momento. Um texto da hora! Muito obrigado.

  9. Suzana Paulino Pinto
    Suzana Paulino Pinto

    Aprendi muito! Obrigada!

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