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Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Edição 190

Caos na gestão e no futuro territorial do Brasil?

Unidades de conservação e terras indígenas constituem as áreas protegidas do Brasil. Descontadas suas sobreposições territoriais, elas ocupam mais de 30% do país

Evaristo de Miranda
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... assim mal dividido
esse mundo anda errado
… a terra é do homem
num é de Deus nem do Diabo.
(Sérgio Ricardo, Deus e o Diabo na Terra do Sol)

Quem divide e define, e com quais critérios, a atribuição de terras no Brasil? Grandes mudanças ocorreram nesse processo após a Constituinte de 1988. De lá para cá, o Governo “federalizou ou estatizou” mais de um terço do país, destinado a unidades de conservação, terras indígenas, quilombolas, reforma agrária etc. São quase 11 mil áreas legalmente atribuídas. Eram 739 em 1988. Órgãos de Estado, sem ouvir o Congresso, já “estatizaram” e atribuíram mais de 36% do país, ante 5% em 1988.

O recorde de atribuição de terras tem sido para o meio ambiente. Segundo o Ministério do Meio Ambiente (2022), existem 2.176 unidades de conservação (UCs). Eram 284 em 1988. Elas ocupam cerca de 18% do Brasil. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei nº 9.985/2000) prevê 12 categorias de UCs. São parques (nacionais, estaduais e municipais), estações ecológicas, florestas nacionais, reservas biológicas, monumentos naturais, refúgios da fauna e outras, num total de mais de 152 milhões de hectares, ou 1,5 milhão de quilômetros quadrados, já atribuídos.

As terras atribuídas a UCs equivalem à soma do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, ou da área conjunta das Regiões Sul e Sudeste. Para o ambientalismo isso ainda é pouco. Estudos acadêmicos e de ONGs pedem a criação de novas UCs em áreas mapeadas como prioritárias à conservação da biodiversidade. Se a demanda for atendida, a superfície das UCs dobrará.

Segundo a Funai (2023), existem 633 terras indígenas (TIs) decretadas. Eram 60 em 1988. Elas ocupam cerca de 14% do território nacional, num total da ordem de 118 milhões de hectares, ou 1,2 milhão de quilômetros quadrados. A condução dos processos de demarcação e desintrusão leva a conflitos, mortes e expulsão de agricultores. Sem o marco temporal, direitos não serão resguardados. Haverá uma explosão de demandas por expansão e criação de TIs, análoga ao crescimento de 89% de índios autodeclarados entre os dois últimos Censos. Na Funai há 132 novas demandas em estudo, além de 490 reivindicações “em análise”. Se atendidas, quase dobrará o número de TIs.

Unidades de conservação e terras indígenas constituem as áreas protegidas do Brasil. Descontadas suas sobreposições territoriais, essas 2.809 áreas protegidas ocupam mais de 258 milhões de hectares, ou 30,4% do país, recorde mundial atestado pela ONU. A atribuição legal de terras difere de proteger e preservar áreas, tema já tratado na Revista Oeste (Edições 63, 83 e 103).

A atribuição de territórios pelo governo federal não acaba aí. Sob a responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e de órgãos análogos nos Estados (2023), existem 7.456 projetos de assentamento e reforma agrária, grande parte em fazendas desapropriadas. Eram 395 em 1988. Eles ocupam 43,4 milhões de hectares, ou 5,1% do país. Além disso, foram atribuídas às minorias quilombolas cerca de 2,9 milhões de hectares. São 377 áreas quilombolas decretadas, ou mais de 0,3% do Brasil.

Finalmente, o Estado atribuiu 66 áreas de extensão territorial expressiva para áreas militares (2022), como na Serra do Cachimbo no Sul do Pará. São cerca de 3,2 milhões de hectares, o equivalente à superfície de Sergipe.

Cada área, ao ser atribuída, pede instalação, gestão e monitoramento, além de investimentos e custos de manutenção. Gera cargos ministeriais e no local. São diretores de parques, administradores, técnicos, gestores, guardas, especialistas etc. São dezenas de milhares de oportunidades no setor público. Seus beneficiados dificilmente as encontrariam no setor privado.

Unidades de conservação e terras indígenas, em particular, são a manutenção sustentável de uma miríade de ONGs e institutos, como se parte do Estado fossem. Beneficiam-se do fluxo de milhões de reais (ministérios, fundações, BNDES…) e recursos internacionais, como o Fundo Amazônia. Parte dos recursos paga altos salários a seus membros, viagens nacionais e internacionais, seminários e cursos, como mostraram relatórios e trabalhos das Comissões Parlamentares de Inquérito sobre as ONGs de 2002 e 2023, apontadas como “Estado paralelo no comando da Amazônia”.

Criou-se no país um labirinto de unidades territoriais, dominadas por unidades de conservação e terras indígenas, geograficamente conectadas. Em muitos casos, seu desenho foi definido no sentido leste-oeste, na faixa litorânea e de fronteiras, para impedir a expansão do agronegócio, dificultar a implantação de projetos logísticos, o acesso a portos, a conexão aos países vizinhos e a exploração dos recursos naturais estratégicos.

As principais vítimas desse movimento galopante de atribuição de terras são os pequenos produtores rurais, com ou sem regularização fundiária, e a economia dos municípios, sobretudo na Amazônia, vítimas de um processo de desantropização e eutanásia ambiental. E perdem o desenvolvimento socioeconômico e a soberania da Nação, limitada no acesso e na exploração de suas riquezas minerais e energéticas, entre outras.

O mapa síntese das quase 11 mil áreas legalmente atribuídas ilustra a complexidade e a dimensão do imbróglio, mesmo sem conter sua totalidade (parte delas não possui cartografia disponível). Os números são dinâmicos, assim como sua atualização nos ministérios. Este mapa deveria estar presente na análise de qualquer processo de atribuição adicional de terras. Não está. Certos grupos ideológicos tratam este mapa como um anátema.

Aos grupos e minorias bastam “seu” mapa, sua lógica onipotente e a demonização dos oponentes. Duas décadas e o espaço para atribuir terras devolutas reduziu-se, apesar da dimensão do país. Cada vez mais, destinar terras a uma finalidade ou para atender um grupo implica retirá-las de outra e outros, quase sempre com altos custos e conflitos. Hoje, o processo não resolve tensões, as magnifica.

Como qualificar, arbitrar e direcionar o processo de atribuição de terras, sem o marco referencial de um projeto nacional, se nem o plano de governo é conhecido? O governo federal seguirá atribuindo-se mais e mais extensões de terra, despojando os Estados de seu controle e uso territorial? O mapa ilustra claramente como no Amapá, Roraima, Acre e Pará grande parte dos territórios foi federalizada, reduzindo os recursos e o poder de gestão dos governos estaduais e municipais.

Prosseguem as demandas de grupos, minorias e movimentos sociais por mais terras. Não se trata de questionar a legitimidade dessas demandas, e sim a necessária busca de simetrias e harmonização territorial desse processo pelo Estado. Não há terras suficientes para atender tudo e todos.

Demandas por atribuição de terras deveriam ser compatibilizadas entre si e com a destinação dos mesmos locais à geração e à distribuição de energia; a ampliação da logística de transporte; as demandas viárias da integração sul-americana; a expansão da agropecuária; o crescimento das cidades e suas necessidades (áreas verdes, estruturas de fornecimento de água, tratamento de esgotos etc.); e os novos projetos de abastecimento, armazenagem e mineração. Cada ministério teria algo a acrescentar a essa lista.

O governo federal parece não demonstrar preocupação ou competência estratégica na temática. E, se ainda tiver alguma, urge decretar sua proteção. Anda escondida e ameaçada de extinção

Só uma instância supraministerial na Presidência da República, hoje inexistente, seria capaz de tratar dessa questão de forma equilibrada. O Congresso Nacional também poderia legislar sobre o tema, aperfeiçoar os processos e suas responsabilidades atuais, assumindo maior protagonismo.

Única nação da América Latina a manter uma grande e exemplar unidade territorial, graças às políticas da coroa portuguesa e da monarquia brasileira, o país agora desaprende. E assiste a seu esgarçamento territorial. Um projeto integrado de mineração, ferrovia e porto, como o de Carajás, no Pará, exemplo de sustentabilidade, é inimaginável de ser criado nos dias de hoje.

Séculos de soberania e unidade nacional, construídas com enormes sacrifícios, podem ser destruídos. O governo federal parece não demonstrar preocupação ou competência estratégica na temática. E, se ainda tiver alguma, urge decretar sua proteção. Anda escondida e ameaçada de extinção.

Um papel do Estado num projeto nacional de desenvolvimento é harmonizar interesses antagônicos. Para muitos, uma harmonia impossível na atribuição de terras. Dá para entender. Eliezer Batista sempre explicava: “A esquerda e a direita são separadas por suas visões e unidas por sua cegueira”.

Essa harmonia é necessária, por definição. Equilibrada na tensão de opostos, como as cordas de uma sonora lira. Na mitologia grega, o deus da guerra, da violência e do sangue, Ares, se casou com a deusa do amor, da paz e do afeto, Afrodite. Desse encontro de antagônicos nasceu uma filha, personificação da ordem e da simetria. Seu nome: Harmonia.

Leia também “Um desconhecido em seu prato, o tomate”

8 comentários
  1. Hans Herbert Laubmeyer Filho
    Hans Herbert Laubmeyer Filho

    Excelente artigo, como eu gosto: dados e fatos. Infelizmente, também me deixou triste ao mostrar para onde está indo meu país. São muitos interesses externos e muitos traidores da pátria unidos para esfacelar o Brasil. Canadá, Austrália, EUA, Rússia e China, todos, absolutamente todos exploram seus recursos naturais em prol do desenvolvimento. O discurso ambiental é da boca pra fora. Povos originários e areas de conservação ocupando 30% do país? Florestas intocáveis? No way! Acorda Brasil!

  2. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Muito bom esse artigo como visto nos comentarios ate agora
    Minha parte é dissemina-lo entre grupos e pessoas que entendo, deveriam ter esse conhecimento
    Obrigada Evaristo pela lisura e por dividir seus conhecimentos conosco

  3. Rosangela J . Dias
    Rosangela J . Dias

    Parabéns pela bela matéria.

  4. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Creio que com 11 brasileiros EVARISTOS DE MORAES, voltaríamos a ter democracia neste pais com Lei, Ordem, respeito as minorias, religiões, famílias e LIBERDADE, bem como a segurança e desenvolvimento de nosso pais.
    Afinal, são 11 os que hoje comandam nossa nação para ideologias suspeitas e pouco democráticas.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Aulas como essa precisam ser expostas em Brasília aos tomadores de decisão. Isso é uma trava para o desenvolvimento do país. Veja os parques nacionais nos Estados Unidos, concedidos, gerando emprego e renda…

  6. Nelson Ramos Barretto
    Nelson Ramos Barretto

    É assustador e ninguém faz nada. A O Brasil vendido para as ONGs internacionais e a ONU. Parabéns Dr. Evaristo que conhece e estudou o assunto. 11.000 áreas reservadas! Como caímos nesse desastre?

  7. Célio Antônio Carvalho
    Célio Antônio Carvalho

    Muito bom meu caro Dr. Evaristo de Miranda. Por que não ouvir pessoas experientes, que conhecem a fundo a situação fundiária do Brasil, principalmente da AMAZÔNIA, como o caro Evaristo de Miranda?
    Independentemente de quem está no controle momentâneo do País! Esses estudiosos e especialistas têm sim ser ouvidos, oras bolas!
    Conforme nos mostrou com clareza e evidência nessa bela matéria, não há necessidade de se criar mais nada, somente compatibilizá-las, tornando o seu território comum a vários interesses e projetos!
    Parabéns Mestre, Doutor Evaristo de Miranda, nós Técnicos da áre agradecemo-os pelo brilhante trabalho, pela sua dedicação em prol do Brasil, de suas riquezas naturais e patrimoniais! Obrigado.

  8. Reginaldo Corteletti
    Reginaldo Corteletti

    Parabéns pelo artigo, Miranda. Uma leitura rápida e esclarecedora sobre a situação. Governos estrangeiros sempre trabalhando para impedir nosso acesso ao Pacífico para escoar nossos produtos e, assim, diminuir custos de produção. Travam nosso acesso às riquesas na Amazônia, mantendo seus povos na miséria, e o país sem utilizar estes recursos para, finalmente, alcançar o patamar de desenvolvimento. Graças as ONG e governo mouse seremos sempre o país do futuro.

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