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Ministra Sonia Guajajara sendo empossada por Lula como Ministra dos Povos Originários (2/1/2023) | Foto: Ricardo Stuckert
Edição 191

Fábrica nacional de indígenas

Documentos revelam o funcionamento das engrenagens de um negócio rentável para ONGs estrangeiras que atuam no Brasil

Cristyan Costa
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Em agosto deste ano, os brasileiros foram surpreendidos com a notícia de que o número de indígenas no país aumentou cerca de 90% em 12 anos. De aproximadamente 900 mil em 2010, alcançou quase 1,7 milhão em 2022, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para ter ideia, essa quantidade de gente equivale à população de Curitiba (PR), ou 1% dos mais de 200 milhões de habitantes do país.

Durante o evento de divulgação dos dados, em uma cerimônia organizada pelo Ministério do Planejamento, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, ressaltou a urgência em desenhar “políticas públicas” para esse estrato social. O então presidente interino do IBGE, Cimar Azeredo, concordou com Sonia, acrescentando que o ato era o “descobrimento do Brasil”, e agradeceu a todos que participaram da pesquisa. Azeredo, contudo, não explicou as razões por trás do aumento quase dobrado no período ou mencionou quem são os colaboradores do levantamento.

Como as engrenagens funcionam

Uma das justificativas para esse cenário é a mudança de metodologia do IBGE, no ano passado. O Censo passou a fazer uma pergunta extra unicamente para entrevistados em terras indígenas. Isso porque, em pesquisas anteriores, o IBGE notou que muitas pessoas, vistas pelo instituto como de “ascendência indígena”, respondiam que sua cor era “parda”, em virtude de enxergarem a si mesmas como mestiças. Por isso, os recenseadores incluíram no roteiro a interpelação “você se considera indígena?”, se o entrevistado responder “pardo” à primeira pergunta. “É comum o indígena se declarar pardo ou preto, por associar a pergunta à sua cor de pele ou ao seu documento”, diz o manual do IBGE. “Por isso, em áreas indígenas, existe uma ‘pergunta de cobertura’ que permite a declaração como indígena quando o informante declara outra cor ou raça.”

Trecho do manual de treinamento de recenseadores do IBGE | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste
Trecho do manual de treinamento de recenseadores do IBGE | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Essa mudança de metodologia chegou a ser discutida na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs. Em outubro, Marta Antunes, uma das técnicas do IBGE, revelou que o instituto se adaptou a critérios internacionais da “Agenda 2030” da Organização das Nações Unidas (ONU) para elaborar o Censo. Um dos critérios propostos pela ONU é “ouvir a população indígena”. Por isso, o IBGE estabeleceu parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, comandada pela ministra Sonia, notória por sua militância ambientalista, e com a Funai. O IBGE chamou ainda a ONG Instituto Socioambiental (ISA), investigada pela CPI por praticar abusos contra indígenas, cujas bandeiras são o apoio a demarcações e o fim do marco temporal no Brasil.

“As pessoas olham muito para a cor da pele quando essa pergunta [‘qual é sua cor?’] é feita”, justificou Tiago Moreira, do ISA, que colaborou com o Censo. “Mas, quando se faz a pergunta a mais [se a pessoa se considera indígena], isso abre para uma série de outros critérios de etnia que a pergunta sobre cor não responde.” Moreira reconheceu que a interpelação extra remete “à ascendência indígena”, diferentemente da pergunta sobre a cor, que existe em um “contexto mais restrito”. “Muitas vezes, as pessoas são descendentes, até militam no movimento indígena, mas respondem ‘pardo’ para a cor da pele”, disse. 

Com os novos dados do IBGE em mãos, mais o fim do marco temporal, o governo Lula já sinalizou que vai demarcar novas terras indígenas. Hoje, pelo menos 67 locais, em 17 Estados, estão a um passo de ir para as mãos dos “povos originários”. Neste ano, Lula já assinou a homologação da demarcação de oito territórios, sendo seis em abril e dois em setembro. Em janeiro, a ministra Sonia afirmou que o governo demarcaria pelo menos 14 territórios em 2023. “A expectativa é terminar com os outros seis até o fim do ano”, anunciou. “É uma questão mais de alinhamento.” Para 2024, a expectativa de atos semelhantes também existe. A quantidade de indígenas em determinado local é fator crucial para a Funai definir sua demarcação, depois de um levantamento que envolve a contratação de antropólogos e demais especialistas da área.

Em um discurso recente, Lula garantiu que os indígenas têm poucas terras no Brasil. Os fatos, contudo, desmontam a narrativa. Atualmente, 14% do território do país é destinado a essa população — o equivalente a 0,7 quilômetro quadrado para cada indígena, enquanto o resto dos brasileiros conta com 0,03 km² cada. Se o Executivo levar adiante a política de Sonia, o tamanho dessas terras pode chegar a quase 30% do Brasil. Em linhas gerais, seria 1,5 km² para cada indígena, ante 0,02 km² para os brasileiros que não se enquadram nessa categoria.

Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, e Joênia Wapichan, presidente da Funai, durante ato de encerramento da 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) 2023, na Praça da Cidadania, em Brasília (DF, 28/4/2023) | Foto: Palácio do Planalto

Muitas dessas terras, hoje ocupadas por produtores e pessoas que se consideram mestiças, têm riquezas naturais no solo, como ouro e diamantes, além de muito potássio. Sua transformação em propriedade da União tem gerado conflito entre produtores e agentes da Força Nacional, sobretudo no Amazonas e no Pará. Em operações de “desintrusão” de terras que se tornaram indígenas, agentes despejam famílias inteiras, de até 20 pessoas, e usam da força quando elas se recusam a sair. Em uma audiência da CPI, em agosto, Herderli Alves, líder do Movimento Pardo-Mestiço, do Amazonas, disse temer o aumento das demarcações sobre locais produtivos, que são a única subsistência dos populares, tornando-os ainda mais dependentes das ONGs que atuam na Amazônia sob o pretexto de cuidar do bioma.

Mesmo com toda essa distribuição de dinheiro que seria em prol dos indígenas, essas pessoas continuam vivendo na pobreza e cada vez mais dependentes do Estado e das ONGs estrangeiras

Negócio vantajoso

Ao abrir a caixa-preta das ONGs da Amazônia, a CPI rasgou a fantasia sacrossanta do terceiro setor e revelou um esquema de enriquecimento de burocratas à custa da exploração de gente simples, com a anuência do poder público brasileiro. Um dos objetivos da CPI é dar mais transparência ao Fundo Amazônia, criado em 2008, cujos recursos vêm, em sua maioria, da Noruega e da Alemanha, com uma pequena contribuição da Petrobras. O BNDES é responsável por administrar os atuais R$ 4 bilhões que mantêm em funcionamento uma indústria bastante rentável.

A ideia de criar o fundo surgiu de debates na ONU, que propôs 13 mecanismos para o enfrentamento das “mudanças climáticas”. Com a doação de países desenvolvidos, emergentes como o Brasil poderiam, no futuro, criar um Fundo Verde capaz de abastecer “organizações independentes”, no caso, as ONGs. Documentos do próprio BNDES mostram quanto e como as ONGs captam recursos vultuosos do fundo para realizar projetos “em prol dos indígenas” que nem sempre têm a concretização comprovada, por falta de fiscalização. Em 99% dos casos, a descrição da iniciativa é vaga e tem palavras rebuscadas.

Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, e Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, no Rio de Janeiro (15/2/2023) | Foto: Shutterstock

Em 2012, por exemplo, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) captou quase R$ 25 milhões para apoiar, em assentamentos do Incra no oeste do Pará, “o desenvolvimento de uma experiência demonstrativa de produção sustentável e a implementação de pagamento por serviços ambientais a famílias comprometidas em realizar a redução do desmatamento.” O Ipam ganhou fama depois de a CPI revelar que a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, é conselheira honorária da ONG e, ao mesmo tempo, ocupa um cargo no fundo responsável por direcionar as verbas para as ONGs. A organização captou quase R$ 35 milhões do fundo no ano passado, e um dos diretores admitiu ter usado 80% do valor com consultorias, viagens nacionais e internacionais e folha de pagamentos de funcionários.

Dois anos antes do Ipam, a ONG Fundação Amazonas Sustentável (FAS) recebeu do fundo pouco mais de R$ 30 milhões para “dar continuidade e ampliar as ações do Programa Bolsa Floresta” (espécie de Bolsa Família criado no Amazonas, que dá R$ 100 às famílias), em unidades de conservação no Estado, “por meio do apoio ao desenvolvimento de pequenos empreendimentos e arranjos florestais sustentáveis”. Em 2015, a Associação SOS Amazônia pegou aproximadamente R$ 10 milhões para “disseminar e apoiar iniciativas empreendedoras em nove instituições aglutinadas com vistas à geração de trabalho e renda, por meio do desenvolvimento sustentável das cadeias produtivas dos óleos vegetais e do cacau silvestre”.

Relação de projetos da “caixa-preta” do Fundo Amazônia | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste
Relação de projetos da “caixa-preta” do Fundo Amazônia | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste
Relação de projetos da “caixa-preta” do Fundo Amazônia | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste
Relação de projetos da “caixa-preta” do Fundo Amazônia | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Há ainda órgãos de governos estaduais que conseguiram pegar dinheiro para realizar projetos que poderiam ser desenvolvidos pelo Executivo local. É o caso da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental de Rondônia, que fechou um contrato de R$ 30 milhões com o Fundo Amazônia, em 2014, para “apoiar a gestão ambiental do Estado” e combater o desmatamento na região. O governo do Amazonas, em 2010, sacou cerca de R$ 20 milhões com o mesmo objetivo de Rondônia, mas voltado para o sul do Estado e para “reflorestar”. A região, contudo, permanece até hoje sendo uma das que mais registram desmatamento ilegal no Amazonas.

Mesmo com toda essa distribuição de dinheiro que seria em prol dos indígenas, essas pessoas continuam vivendo na pobreza e cada vez mais dependentes do Estado e das ONGs estrangeiras — um poder paralelo que atua na Amazônia sob a omissão das autoridades. É essa também a conclusão da CPI das ONGs, que caminha para o fim, de modo a apresentar um relatório robusto com propostas legislativas que ajudem — de verdade — os indígenas do país. Poucas coisas no Brasil foram tão rentáveis, nos últimos 50 anos, quanto abrir uma igreja, um sindicato ou um partido político. A esse grupo, pode-se somar uma ONG.

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6 comentários
  1. Uncle Sam
    Uncle Sam

    O negócio é tão retardado que usarão esse crescimento politicamente, ao mesmo tempo que essa “bolha artificial” pode estourar a qualquer momento, o que será considerado por eles como “genocídio indígena” ????

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Cristyan, sugiro um artigo sobre os benefícios de parques nacionais concedidos ao setor privado nos Estados Unidos. Como isto agrega riqueza ao país e seu povo.

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Trata-se de um caso raro de natalidade entre humanos.
    Deve ser urgentemente estudado por biólogos, obstetras e outros estudiosos quando o assunto é reprodução humana.

  4. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Completíssima sua reportagem. Só faltou, entre as coisas mais rentáveis do país, colocar as biqueiras – franquias – dos pontos de venda de drogas.

  5. Maki K
    Maki K

    Por volta de 1998, me lembro de ter ouvido dizer que no Brasil havia um total de 300 mil índios.
    Hoje há no meio cultural por exemplo, “artistas” que até ontem era protagonista na área de dança afro por exemlo, mas que de ontem para hoje virou índio, fazendo dança de índio cuja idéia foi tirada onde ninguém sabe dizer.

  6. JOSE RODORVAL RAMALHO
    JOSE RODORVAL RAMALHO

    Comparar abertura de igrejas com o mesmo procedimento das Ongs e Partidos é pura leviandade.

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