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Brendan O'Neill | Foto: Reprodução
Edição 194

Brendan O’Neill, editor da Spiked: ‘Estamos numa nova era de irracionalismo’

Oeste conversou com o editor da revista digital britânica, que acaba de lançar um livro em defesa da liberdade de pensamento

Bruno Lemes
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No início de 2024, a LVM Editora brindará os leitores brasileiros com a edição em português de A Heretic’s Manifesto: Essays on the Unsayable (“O manifesto de um herege: ensaios sobre o que não se pode falar”, em tradução livre), terceiro livro do autor britânico Brendan O’Neill. Editor de política da revista inglesa Spiked, O’Neill é também colunista de Oeste, com textos exclusivos para assinantes.

A obra é uma coletânea de ensaios do autor, em que discorre sobre uma nova tirania: a do politicamente correto (PC), que vem censurando, punindo e destruindo o pilar da liberdade que funda a civilização ocidental. Com destaque para o mundo anglo-saxão, os eventos e fenômenos mostrados por O’Neill são observáveis em todo o Ocidente, incluindo o Brasil.

Livro A Heretic’s Manifesto: Essays on the Unsayable, de Brendan O’Neill | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Brendan O’Neill falou com exclusividade para Oeste sobre seu “manifesto herético”, “racismo das baixas expectativas”, ideologia woke, cultura do cancelamento e manipulação da linguagem. Contou o momento em que decidiu escrever seu novo livro. E revelou seu maior temor nesta crescente onda de autoritarismo.

A analogia entre hereges históricos e contemporâneos é frequente ao longo dos seus ensaios. O senhor poderia nos falar um pouco do processo de como e quando percebeu essa correlação?

Alguns anos atrás eu comecei a achar que a cultura do cancelamento tem uns ecos sombrios da Inquisição. Não em todos os aspectos, é claro. Ninguém está indo para a fogueira nos anos 2020 pelo que acredita. Mas a linguagem acusatória de hoje é similar àquela do passado. E a sanha em aniquilar — socialmente, se não fisicamente — é assustadoramente parecida também. Foi o uso generalizado da palavra “negacionista” que me fez pensar pela primeira vez que estamos passando por uma nova guerra à heresia. Você ouve essa palavra o tempo todo, com destaque para o insulto “negacionista climático”. Questione qualquer aspecto do alarmismo sobre mudanças climáticas e vão condená-lo como “negacionista”. Vão tentar mantê-lo fora do ar e longe dos campi universitários. Vão despersonificá-lo. Depois percebi que, mesmo que você aceite que mudanças climáticas estão ocorrendo, mas não gosta de algumas das políticas propostas para lidar com isso, ainda assim vão chamá-lo de negacionista. Durante o movimento #MeToo, se você levantasse questões a respeito do fracasso do devido processo legal, chamariam você de “negacionista de estupros”. E por aí vai. E, é claro, essa noção — de alguém que nega a verdade — era central na era da Inquisição. Isso me fez pensar: o que mais na cultura do cancelamento vem do passado? Comecei a ficar muito interessado no assunto da caça aos hereges — o que a motivava, quem era alvo, que justificativas se davam? E descobri tanta coisa que aconteceu naquela época e acontece de novo hoje. Mais uma vez, as pessoas são punidas por “negar a verdade”, por envenenar as almas dos homens, por ser uma ameaça à moralidade, por potencialmente enlouquecer as massas com suas ideias perigosas — chamamos isso de “incitar o ódio” agora.

Brendan O’Neill | Foto: Reprodução
Foi nesse momento que o senhor decidiu escrever o livro?

A gota d’água para mim foi a demonização de mulheres que não aceitam a ideologia do transgenerismo. Ao longo dos últimos cinco anos, ou algo assim, qualquer mulher que “negue” que um homem possa se tornar uma mulher — a nova verdade religiosa da nossa época moralmente perdida — é severamente perseguida. Ela é rotulada como intolerante, transfóbica, uma Terf (“feminista radical que exclui trans”). Esses insultos são cuspidos nessas mulheres com o mesmo ódio e veneno com que se faziam acusações de bruxaria outrora. Foi quando pensei comigo mesmo: a caça às bruxas, a humilhação pública, a guerra à heresia estão de volta. Palestrei na Universidade de Oxford em 2018, destacando minha crença herética central — a de que as pessoas nunca conseguem mudar de sexo. A reação foi insana. Houve protestos. O jornal estudantil de Oxford me condenou por meu “ódio”. Uma ouvinte ficou tão horrorizada pelo que eu disse que começou a hiperventilar e teve que ser retirada da sala. E assim reconheci, sem dúvida, que estamos numa nova era de irracionalismo, uma nova era de ódio ao livre pensar. E decidi que precisava escrever sobre isso.

O senhor acha que houve um momento de virada em que o bom senso tornou-se herético, e o politicamente correto assumiu seu lugar como o pensamento predominante (isto é, imposto pelas elites culturais)?

Penso nisso com frequência. Acho que há uma tentação de procurar a grande virada, o momento-chave em que nossas sociedades relativamente livres se tornaram “woke” e cada vez mais iliberais. Mas, na verdade, não acho que houve um momento propriamente dito. Prefiro usar a metáfora do sapo fervido para descrever o dilema em que nos encontramos. Assim como o sapo não percebe que está em água quente até ser tarde demais, acredito que tenhamos sido cercados pela espiral do PC e da cultura woke por muito tempo, e só recentemente percebemos isso. Embora eu esteja confiante de que ainda não é tarde demais para fazer algo a respeito. O que me é mais interessante é a forma como o autoritarismo passou de um fenômeno principalmente de direita para um fenômeno de esquerda. Quando pensamos nas explosões de autoritarismo no passado não tão distante — o macartismo, por exemplo, ou a pressão religiosa para censurar literatura gay ou música rap nas décadas de 1970 e 1980 —, eram principalmente os conservadores que estavam na vanguarda dessas missões morais. Mas, em algum momento dos anos 1970, o bastão foi passado da direita para a esquerda. Hoje, vivemos sob uma tirania de controle do pensamento quase inteiramente justificada em linguagem de esquerda: manter minorias seguras contra ofensas, manter a paz em uma sociedade multicultural, combater o ódio etc.

O que é a cultura woke?

Para mim, “cultura woke” é um termo útil, mas não conta a história toda. Acredito estarmos vivendo sob uma ideologia que não tem de fato um nome — ainda não, pelo menos. Ela emergiu em etapas. Primeiro, nos anos 1970, os progressistas começaram a perder a fé nas pessoas comuns. Começaram a ver as massas como facilmente influenciáveis, em especial pela grande mídia e pela publicidade, e assim se incumbiram de limitar nossa exposição a tais males e tentar controlar como pensamos e nos comportamos. Os hippies viraram tiranos. Então, nos anos 1980, tivemos a ascensão do politicamente correto: novas formas de falar, projetadas para alterar o próprio pensamento. E, mais recentemente, dos anos 2000 em diante, tivemos o “woke”, o estágio mais novo e elevado dessa ideologia sem nome. Nessa fase, o policiamento da linguagem tornou-se cada vez mais severo. As pessoas agora são colocadas em listas negras abertamente, ou banidas das redes sociais, ou até fisicamente atacadas por seu pecado de “erradopensar” [“wrongthink”].

Foto: Shutterstock
Como o Ocidente, com sociedades que podem ser consideradas símbolos da liberdade, se submeteu a isso?

Cada etapa se alicerçou sobre a anterior. Temo que, entre conservadores e liberais de fato, tirar sarro desse desenrolar — “o PC enlouqueceu!” — tenha sido uma tentação frequente, em vez de levá-lo a sério e submetê-lo a uma análise e crítica rigorosas. As pessoas perderam tanto tempo rindo do fato de que as crianças não podiam mais cantar “mé, mé, ovelha negra” — é racista, aparentemente —, que não pararam para pensar quão extraordinário era que a nova tirania tivesse chegado até mesmo às cantigas de ninar. E assim a ideologia sem nome cresceu, descontrolada, até ficar fora de controle. Mesmo agora, muitos conservadores parecem não considerar o tamanho da ameaça que essa nova ideologia representa para o nosso estilo de vida. Para a liberdade, para o livre pensar, para a integridade da família e até para a ordem social. Precisamos entender que lacração não é gozação.

Não pude deixar de anotar a palavra ‘denegrir’ quando a li no seu livro. No Brasil, o verbo é frequentemente usado como exemplo de palavra de ‘origem racista’ (o que não é verdade). O senhor observa, no mundo anglófono, se há palavras e expressões cujos significados vêm sendo distorcidos, a ponto de serem eliminadas, reduzindo assim o vocabulário das pessoas e facilitando o controle da linguagem e do pensamento?

Ah, sim, tivemos incidentes semelhantes aqui. Um dos mais loucos foi quando uma colunista de jornal foi chamada de racista por dizer que tinha uma preocupação “chata” [“niggling”] com o casamento de Harry e Meghan. “Niggling” não tem absolutamente nada a ver com aquela palavra que começa com N [the N-word”, referente à palavra “nigger, termo ofensivo para os negros]. Significa apenas “um sentimento persistente de desconforto ou incômodo”. E ainda assim foi interpretado como uma ofensa racial contra Meghan — foi algo completamente descompensado. Sob a ideologia woke, a linguagem em torno da raça é severamente policiada. Não me refiro apenas a fazer cara feia para ofensas raciais — todos nós fazemos isso. Quero dizer que até mesmo a linguagem “correta” agora muda o tempo todo. Costumávamos dizer “pessoas negras”. Então tivemos que passar a dizer “Bame”, que significa “negros, asiáticos e minorias étnicas”. Daí tivemos que dizer “pessoas de cor”. Depois, “mulheres de cor”, “professores de cor”, “enfermeiros de cor”, e assim por diante. Quem consegue acompanhar isso tudo? É uma forma muito elitista de fala. A grande maioria das pessoas comuns que conheço — incluindo, desculpe meu “erradopensar”, pessoas negras — não usa os novos termos. Acha estranho e paternalista. É como “latinx”, nos Estados Unidos. As únicas pessoas que falam “latinx” são os brancos escolarizados de classe alta, não os latinos de verdade! Eles estão felizes em ser latinos.

linguagem neutra
Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

“As pessoas dizem que a liberdade de expressão é selvagem e imprevisível e que frequentemente tem consequências desestabilizadoras. Mas a censura sempre tem consequências piores. Sempre. A censura é a parteira da intolerância”

É uma forma elitista de linguagem?

Acho as regras woke de linguagem muito eduardianas, no sentido de demonstrar que você faz parte de uma nova elite que fala corretamente, pensa corretamente, se comporta corretamente. Usar o linguajar “correto”, como “pessoas de cor”, “gênero atribuído ao nascer” ou “diferentemente eficiente” (em vez de “deficiente”) é como você sinaliza que pertence à patota. Que é membro da casta mais elevada de todas — os novos controladores do pensamento. É muito performático. Prefiro de longe a maneira como comunidades da classe trabalhadora falam. É mais crua e mais sincera. Por exemplo, elas dirão “minha amiga deu à luz uma menina”, e não “minha amiga ganhou neném a quem foi atribuído o gênero feminino”. Acho o policiamento intenso sobre o linguajar racial incrivelmente paternalista. A ideia de que pessoas negras e outras minorias étnicas requerem que as escolarizadas elites majoritariamente brancas as poupem de ofensas ou “danos” é impressionantemente paternalista. É, em si, uma forma de racismo, creio eu, já que situa os governantes da sociedade como os salvadores de grupos minoritários supostamente fracos. Reabilita a relação mestre/servo no campo da linguagem. É o racismo das baixas expectativas, em que muitos de nossos concidadãos são julgados incapazes de tomar parte na vida pública porque podem se desmanchar ao ouvir uma palavra ofensiva.

Hoje, não há necessidade de matar alguém fisicamente. A cultura do cancelamento se certifica de que alguém se torne um morto-vivo, social, financeira e moralmente falando. Por outro lado, não é incomum alguém perguntar hoje em dia: ‘Como tantas pessoas apoiaram ou ignoraram as atrocidades dos nazistas contra judeus e outros povos?’. Mas sabemos que a propaganda da Alemanha Nazista construiu a ‘normalidade’ da violência por meio da desumanização. O senhor acha que estamos próximos de um tempo em que a violência física fatal contra aqueles considerados ‘odiosos’ será justificável por aqueles que se arrogam o direito de odiar?

Acredito que é muito possível que vejamos em breve a punição violenta ao “discurso de ódio”. Na verdade, acho que já tivemos vislumbres disso. Pense no Massacre do Charlie Hebdo, em 2015. Esses assassinos radicais islâmicos eram, essencialmente, a ala militante do PC. Eles puniram cartunistas por ferirem seus sentimentos. Deram força física, bruta, à ideia de PC. O que acho mais aterrorizante nesses casos recentes é a aliança profana entre o radicalismo islâmico e o PC. Os islamitas declaram guerra à “blasfêmia”, enquanto os “despertos” do woke declaram guerra à “islamofobia”. Mas isso se resume ao mesmo — somos encorajados a acreditar que criticar o Islã é errado e merece punição. Algumas pessoas acham que a punição deveria ser perder o emprego. Outras, como os assassinos do Charlie Hebdo, acham que a punição deveria ser mais severa. A lógica é a mesma em ambos os casos, no entanto: as pessoas são atacadas por expressar pensamentos supostamente blasfemos, por “discurso”. Também vimos violência latente em reação às feministas críticas à ideologia de gênero, que não aceitam que um homem possa se tornar uma mulher. Aqui na Grã-Bretanha, tais mulheres foram agredidas fisicamente. Quando Kellie-Jay Keen, conhecida militante britânica dos direitos das mulheres, foi à Nova Zelândia falar sobre o problema do transgenerismo, foi cercada por uma multidão agitada. Cuspiram, atiraram coisas nela, a insultaram. Ela teve que ser retirada às pressas pela polícia. No meu entender, isso foi a inquisição woke em ação, em toda a sua “glória” ameaçadora e violenta.

Vista de trecho do 11º Arrondissement, fechado pela polícia logo após o tiroteio na redação do Charlie Hebdo, em Paris, na França (7/1/2015) | Foto: Thierry Caro/Jérémie Hartmann/Wikimedia Commons
Como se justificaria o uso dessa violência?

A censura sempre contém pelo menos a ameaça de violência. Se dizemos que palavras são violência — como os woke dizem o tempo todo —, então estamos implicitamente aceitando que a violência é uma resposta razoável a palavras. Afinal, se palavras nos machucam, por que não deveríamos machucar aqueles cujas palavras odiamos? Se palavras nos causam dor psíquica insuportável, por que não deveríamos infligir dor física aos “erradopensadores”, de modo a nos proteger de suas palavras? É aí que o woke não é apenas irritante e iliberal, mas também perigoso. As pessoas dizem que a liberdade de expressão é selvagem e imprevisível e que frequentemente tem consequências desestabilizadoras. Mas a censura sempre tem consequências piores. Sempre. A censura é a parteira da intolerância. Gera violência. Quando encorajamos a nova geração a pensar que suas crenças e ideias são tão perfeitas que ninguém pode proferir uma palavra dolorosa sobre elas, treinamos essa geração para reagir com veneno e até violência contra quem ousa divergir de suas ideologias perfeitas. O poeta alemão Heinrich Heine uma vez disse que “onde queimam-se livros, queimar-se-ão pessoas em breve”. Devemos nos atentar a esse aviso. Porque, se estamos dispostos a destruir o sustento de alguém com base em suas supostas declarações pecaminosas, por que não destruiríamos sua vida de fato também? A cultura do cancelamento desencadeou males suficientes do jeito que está — precisa ser impedida antes que desencadeie mais.

Kellie-Jay Keen-Minshull é escoltada até um carro da polícia, depois de ser hostilizada em um evento em Auckland, na Nova Zelândia (25/3/2023) | Foto: Wikimedia Commons

Leia também “Eliana Calmon, ministra aposentada do STJ: ‘O Supremo tem a nação nas mãos'”

4 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Continuarei falando ”denegrir”, ”buraco negro” e tudo que quiser. Que se lasquem esses mimizentos.

  2. Nilson Cardoso
    Nilson Cardoso

    Ótimo diagnóstico. E como saímos disso?

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    A jumentice é global que retrocesso

  4. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Wonderful interview.
    Easythink esse Brendan.
    Perguntas ótimas. Parabéns, Bruno.

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