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Pelé marca o primeiro gol do Brasil contra a Itália, durante a Copa do Mundo de 1970, no México | Foto: Granger/Shutterstock
Edição 197

O Brasil sem Pelé

A morte do maior jogador de todos os tempos, há um ano, fez o país aprender a viver sem seu grande símbolo

Eugenio Goussinsky
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O Brasil teve dois imperadores, 36 presidentes e apenas um Rei. Por cerca de 50 anos, Pelé foi um símbolo do país para o resto do mundo, o exemplo definitivo do que os brasileiros tinham de melhor a oferecer. Foi um fenômeno tão sólido que deu mesmo a impressão de imortalidade. Por décadas ele salvou a imagem da nação. Tornou-se seu maior embaixador, acima das confusões dos governos e das várias crises de identidade nacional. Era aquele cartão de visita imediato, que abria portas no exterior: “Ah, Brazil! Pelé!”.

Pelé remetia para o mundo o lado bom do brasileiro — a ginga, a arte e a criatividade. Mas, desde aquele início de tarde de 29 de dezembro de 2022, o Brasil teve que se acostumar com a ideia de que o Rei tinha morrido. Partiu aos 82 anos, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Pelé comemora gol na Copa do Mundo de 1970 | Foto: Divulgação/Fifa

Coincidência ou não, depois da morte de Pelé a seleção brasileira acumulou recordes negativos em 2023, com inéditas três derrotas seguidas nas Eliminatórias da Copa. Além de ter perdido pela primeira vez em casa nessa competição classificatória. 

O Santos Futebol Clube, também. O clube em que Pelé surgiu, jogou e se consagrou de 1956 a 1974 fez uma campanha deprimente em 2023. E amargurou a primeira queda para a Série B do Campeonato Brasileiro. O Rei não estava mais entre nós para testemunhar esse triste tombo.

“Ele inspirava aqueles que sonhavam, como toda criança, em mudar de vida”, afirma Gabriel Davi Pierin, professor e historiador do Centro de Memória do Santos FC. “Pelé representou essa inspiração, uma centelha de chance dessas pessoas poderem almejar algo melhor na vida.”

Pelé é homenageado depois de marcar o milésimo gol | Foto: Reprodução/Acervo Santos

Na opinião do historiador, Pelé virou uma instituição capaz de entrar no dicionário como sinônimo de “excelência”. O termo “pelé” passou a se referir àqueles que brilham em determinado assunto. “Por isso a gente diz que o Pelé era essa instituição, muito além do excepcional jogador de futebol.”

Mas até os reis morrem. Problemas de locomoção, por causa de várias cirurgias no quadril e na coluna, já vinham desde 2012. Depois vieram infecções urinárias e o câncer de cólon, descoberto em setembro de 2021. E, aos 82 anos, o apito final.

As novas gerações, apegadas ao imediatismo das redes e ao videogame, já começavam a deixá-lo um pouco de lado. Mas, sempre que um menino saía por aí chamando Messi de o melhor de todos os tempos, lá vinha um adulto indignado lhe contar algumas verdades sobre os incomparáveis feitos do Rei.

O Rei do Futebol é erguido por torcedores depois da conquista do tri | Foto: Reprodução/Fifa

O grande desafio agora, segundo o historiador Pierin, é a preservação da trajetória de Pelé. “Neste mundo atual e, em um país como o nosso, que tem grande dificuldade de preservar a memória, é necessário mantermos constantemente em pauta”, diz. “A mídia, o meio futebolístico, os formadores de opinião precisam fazer o tratamento da história de Pelé, para que ela seja contada sempre. À medida que nos distanciamos também do presente, vamos tendo muito menos registros, especialmente visuais, de jogos e tudo mais, em meio a uma geração que hoje consegue captar e substituir tudo com muito mais facilidade.”

Pierin realça a importância de preservar tudo o que diz respeito à memória de Pelé. “A gente tem a sorte de ter um museu aqui em Santos destinado a ele, o Museu Pelé. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) sempre homenageia Pelé. Temos o Memorial das Conquistas em Santos, no qual boa parte do acervo é voltada também para ele. Estamos lembrando dos feitos de Pelé por meio de textos e imagens. É uma memória bastante diversificada, mas ao mesmo tempo sabemos que é difícil competir com a quantidade de recursos e registros que temos dos craques da atualidade.”

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‘Você vai ser o maior jogador de futebol do mundo’

Certa vez, o jornalista Armando Nogueira disse que, “se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola”. O eterno camisa 10 foi mesmo uma referência para os jovens seguirem o que almejam. Desde a infância em Três Corações (MG), onde nasceu em 23 de outubro de 1940, até a juventude em Bauru (SP), onde cresceu ao lado do pai, Dondinho (João Ramos do Nascimento), da mãe, Celeste, e dos irmãos, Maria Lúcia e Jair (o Zoca).

Nos joguinhos entre os meninos, quando atuava no gol, ele gritava o nome “Bilé”, de um goleiro conhecido por ele, sempre que fazia uma defesa. Os meninos entendiam que ele dizia “Pilé” e, em tom de provocação, passaram a chamá-lo de Pelé.

Alguém com o mínimo de sensibilidade logo perceberia a intensidade da relação daquele menino com a bola. Um amigo de Dondinho, o ex-jogador Waldemar de Brito, apostou no talento dele e o ciceroneou em sua ida ao Santos, aonde chegou com 16 anos, em 1956. Chegou ao lugar certo, na hora certa. “Você vai ser o maior jogador de futebol do mundo”, previu Waldemar, irmão de Petronilho de Brito, o inventor da “bicicleta” — jogada aperfeiçoada por Pelé.

Pelé realiza mais um dos seus lances geniais: a bicicleta | Foto: Reprodução/CBF

O Santos recebeu Pelé de forma acolhedora. “Nos primeiros dias, ele já mostrava que ia ser um extraordinário jogador”, conta José Macia, o Pepe, célebre ponta-esquerda que fez parte do ataque de futebol mais conhecido do mundo nos anos 1950 e 1960. Aos 88 anos, Pepe recorda que “Pelé era bastante jovem, caiu no time certo, caiu num time que dava oportunidades para jogadores jovens e que já era campeão paulista”.

O destino quis que o meia titular, Vasconcelos, quebrasse a perna. “Coincidiu também com essa fratura”, lembra Pepe. “O Vasconcelos veio e me falou: ‘Meu, estou frito, vai ser difícil jogar agora com esse garoto aí’. Ele jogou algumas partidas no juvenil, mas o técnico Lula não perdeu tempo e disse: ‘Esse menino aí é fantástico, vou colocar ele no time’.”

Pelé ao lado dos companheiros Pepe (centro) e Coutinho, no Santos | Foto: Reprodução/Santos

Pepe conta que, nos jogos amistosos iniciais, Pelé fez “gols, gols e mais gols”. Ele lembra que, naquele momento, antes de ter ficado muito amigo de Pelé, o apelido ajudou na ascensão do novato. “Chamou a atenção o termo ‘Pelé’, um apelido diferente. Se fosse Edson, poderia não ser a mesma coisa”, observa o ex-ponta. “Logicamente ele era o mesmo jogador, mas a aceitação dos torcedores tinha que ter alguma outra memória. Pelé pegou.”

Pepe, depois de encerrar a carreira, virou técnico. E dirigiu o Al-Ahli, do Catar, entre 2003 e 2005, quando treinou ninguém menos que Josep Guardiola, tido como o maior treinador da atualidade, para o qual passou alguns ensinamentos sobre futebol. Muitos deles, sobre Pelé. “O Guardiola me perguntava: ‘Senhor Pepe, o Pelé era tudo o que falam mesmo?’.” Pepe, então, se sentava ao lado do jovem espanhol e discorria sobre os feitos do amigo. “Quando eu era ponta e estava com dificuldades, a gente sabia que era só cruzar para a área que o Pelé iria cabecear e normalmente fazer o gol”, dizia a Guardiola. “Foi o melhor jogador, chutava com a esquerda e com a direita com a mesma facilidade, era excelente no jogo de cabeça.”

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O inventor do futebol moderno

Ainda aos 9 anos de idade, Pelé havia feito uma promessa ao pai, quando o viu chorando pela derrota da seleção brasileira na trágica Copa do Mundo de 1950. Jurou que ia ser campeão do mundo, e cumpriu a promessa dois anos depois da chegada ao Santos, na Copa de 1958, na Suécia. Pelé já estreou no mundial com a alcunha de Rei do Futebol, dada a ele em uma crônica de Nelson Rodrigues.

Quatro anos depois, venceu a Copa do Chile, apesar de uma contusão que o fez ser substituído por Amarildo. A maior das frustrações foi na Copa de 1966, quando, no jogo contra Portugal, ele foi caçado em campo e deixou a competição contundido. O Brasil foi eliminado ainda na primeira fase. Depois, veio a superação com o tricampeonato mundial, no México. 

Pelé comemora durante a final da Copa do Mundo de 1970, em que ganhou o tri | Foto: Reprodução/CBF

Além dos seus quatro gols, algumas jogadas criadas por ele se tornaram lendárias, como o drible de corpo sobre o goleiro uruguaio Mazurkiewicz, o chute de antes do meio-campo que fez o goleiro tcheco Ivo Viktor voltar correndo, e a cabeçada para o chão, defendida pelo inglês Gordon Banks.

Pelé foi o precursor do que se chama futebol moderno. Um vídeo no YouTube mostra que inúmeras grandes jogadas hoje feitas por Messi, Cristiano Ronaldo e outros foram inventadas por Pelé: arrancadas, dribles de corpo, decisões em frações de segundo diante de dois ou três adversários. Quando conduzia a bola de cabeça erguida, o craque levava em seu rastro um conceito que supera o esporte.

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Para os que se dividem nas preferências entre Messi e Cristiano Ronaldo, um bom parâmetro é dizer que Pelé foi uma mistura de ambos. Com 1,72 metro de altura, tinha 1,22 metro de impulsão, superior ao 1 metro de Cristiano, aproximadamente, que mede 1,87 metro. O Rei corria os 100 metros em pouco mais de dez segundos, marca similar à do craque português. E tinha uma objetividade e rapidez na condução de bola iguais ou melhores do que Messi. 

Fenômeno global

O futebol se tornava um fenômeno global, mas um país, justamente o mais poderoso, resistia: os Estados Unidos. Pelé inovou ao se transferir para o Cosmos, de Nova York, em 1974. A jogada de marketing foi concebida pela Warner Communications (atual Time Warner) e pelos irmãos Nesuhi Ertegün e Ahmet Ertegün, proprietários da Atlantic Records. Foram os irmãos Ertegün que sugeriram a criação do Cosmos quando a Atlantic se incorporou à Warner. E a chegada de Pelé, poucos anos depois, pode ser considerada um primeiro passo para transformar o futebol também em um negócio.

Pelé é homenageado e posa com troféu na sede da CBF | Foto: Ricardo Stuckert/CBF

Pelé deixou os gramados em 1977. Sua influência continuou como ministro dos Esportes do governo Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 1998. Foi a chamada Lei Pelé que acabou com o passe (que prendia os jogadores aos clubes) no futebol brasileiro e abriu caminho para a fundação de clubes-empresas.

Uma marca negativa

Pelé se casou três vezes, a última delas com Márcia Aoki, sua companheira nos momentos finais. Teve seis filhos: Edinho, Jennifer e Kely, com a ex-mulher Rosemeri; Celeste e Joshua, com a ex-mulher Assíria; e Sandra Regina, num relacionamento rápido com Anísia. Ele só reconheceu Sandra Regina depois de um exame de DNA, mas pai e filha se mantiveram distantes até ela morrer, em 2006, aos 42 anos. Em meio a uma carreira irretocável, a triste história da filha excluída foi uma grande marca negativa em sua imagem. Essa questão foi amenizada já no leito de morte, quando ele deu as mãos para os netos Otávio e Gabriel, filhos de Sandra, que estavam juntos com toda a família.

As revoluções do Rei

Pelé fez 1.283 gols em 1.371 jogos. Ganhou três títulos mundiais pelo Brasil, dois pelo Santos, dez Campeonatos Paulistas e cinco Taças Brasil, entre outras conquistas. Alguns de seus gols também beiram o sobrenatural. Como o feito em um jogo contra o Fluminense em 5 de março de 1961, no Maracanã, quando driblou seis jogadores desde o meio-campo até finalizar. 

Pelé abraça Jairzinho, depois de mais um gol que se tornou célebre, durante a Copa de 1970 | Foto: Reprodução/Fifa

O jornalista Joelmir Beting, na época, idealizou uma placa para esse gol, dando origem ao termo “gol de placa” — mais uma inovação ligada a Pelé. Pouco menos de dois anos antes, em agosto de 1959, Pelé havia dado seguidos chapéus e marcado um gol antológico contra o Juventus, na Rua Javari.

Pelé serviu de motivação até para uma revolução na Martinica, ilha no Caribe que é território ultramarino da França. O Santos ia jogar na região e todo mundo queria vê-lo. O preço dos ingressos foi elevado, o que provocou uma revolta dos jovens contra o governo, em janeiro de 1971. Dez anos antes, o nome de Pelé havia sido incluído na letra do hino do Olympiacos, da Grécia, depois de uma vitória sobre o Santos.

Contra o Alianza de Lima, no Peru, em 1962, o técnico santista Lula teve de colocá-lo de volta em campo, depois de substituí-lo. O pedido foi do árbitro Carlos Rivero, ao ver a fúria dos torcedores que já incendiavam assentos. Em 1968, quando o Santos enfrentou a seleção olímpica da Colômbia, em um amistoso, o árbitro Guilhermo Velázques expulsou Pelé. Novamente o público protestou. O craque voltou a campo, e o próprio juiz foi expulso.

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Nenhum outro jogador até hoje atraiu tantas multidões como ele. Nem encantou tantos admiradores. Também pelas reações que ele provocava. Foi eleito, em 1981, o Atleta do Século, em votação da revista francesa L’Équipe. “Pelé foi o jogador mais completo que eu vi atuar e com o qual tive o prazer e a satisfação de jogar ao lado e de ser padrinho de casamento”, recorda-se Pepe.

O Brasil ainda sente a perda de seu grande herói, que transformou esporte em arte e conseguia ser unânime entre todas as torcidas. O Rei morreu há um ano, mas ainda une os brasileiros.

Leia também “A aventura expansionista de Nicolás Maduro”

7 comentários
  1. Odilon Soares Teixeira da Silveira
    Odilon Soares Teixeira da Silveira

    Artigo sen sa cio nal…algumas estórias que não conhecia e outras fantásticas que já conhecia…

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Bonita a história de Pelé. Porém, acho que simboliza a inversão cultural que existe no Brasil, de certa forma lembro da política de pão e circo que perdura em nosso país. E olhe que sempre gostei de futebol, mas hoje tenho uma visão diferente.

  3. Wilton Lázaro de Araújo
    Wilton Lázaro de Araújo

    O colunista também deixou passar em branco um dos maoires feito deste jogador. Ele conseguiu parar uma guerra!

  4. Raimundo Rabelo Lucas
    Raimundo Rabelo Lucas

    Parabéns pelo excelente artigo acerca do nosso ETERNO REI PELÉ.

  5. Ana Kazan
    Ana Kazan

    Parabens e muito obrigada pela bela materia e recordação de Pelé, aquecendo nossos coracoes com a vida desse grande brasileiro e heroi esportivo mundial,

  6. Agostinho Sant Anna Neto
    Agostinho Sant Anna Neto

    Tem também uma filha , Flávia , que o excelente colunista não mencionou .

  7. Victor Freitas Belo
    Victor Freitas Belo

    Edson Arantes do Nascimento é um bom brasileiro, Pelé é a criação de um herói supervalorizado em um País que esqueceu de seus verdadeiros heróis e inventou um diante da falta de identidade. Nossos pais fundadores seguem esquecidos enquanto o rei do futebol é lembrado e enaltecido, o atleta Pelé é inquestionável, o mito é uma invenção!

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