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Foto: Sergey Nivens/Shutterstock
Edição 198

Ciência 2024: alguns sonhos (e um pesadelo)

Começamos o ano com grandes esperanças e uma experiência eticamente preocupante

Dagomir Marquezi
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O ano de 2023 foi aquele em que a inteligência artificial mudou o mundo (veja edição 197). Já 2024 pode ser o ano em que, com a ajuda da IA, veremos alguns milagres acontecendo nas áreas de ciência, medicina e tecnologia. E também grandes questões éticas a resolver. 

A revista BBC Science Focus listou na sua última edição algumas das possibilidades que estão saindo (ou para sair) dos laboratórios para o mercado. O intuito é resolver ou amenizar problemas médicos considerados insolúveis até agora. Os novos medicamentos podem demorar décadas para chegar à farmácia da esquina, mas estão a caminho.

Capa da revista Science Focus | Foto: Reprodução
Reprodução sem sexo

Cientistas japoneses anunciaram no ano passado outra possibilidade revolucionária e cheia de questões éticas a serem respondidas — a reprodução sem sexo. Já existem os procedimentos de inseminação artificial em prática, mas eles envolvem óvulos e espermatozoides humanos.

Agora nem isso mais será obrigatório. Cientistas japoneses criaram um método conhecido como in vitro gametogenesis (IVG), em que isolam células da pele humana e as transformam em óvulos e espermatozoides.

Para pessoas incapacitadas de ter filhos por qualquer razão, é motivo de alegria. Mas esta é uma típica “caixa de Pandora”. A questão ética foi resumida assim pela Science Focus: “Se nós podemos fazer óvulos de células de pele, pessoas de 90 anos poderão se tornar pais. Assim como crianças de 9 anos de idade, fetos abortados ou gente que morreu há anos, mas cujas células foram congeladas”.

É uma profunda quebra das leis naturais, e para muitos uma quebra também de princípios religiosos. Dispensa-se o processo tradicional de fazer sexo sabendo que uma criança poderá nascer daquele ato. A partir dessa descoberta, torna-se possível, por exemplo, fazer espermatozoides da pele de uma mulher e óvulos da pele de um homem.

Há cinco décadas tratamos tumores com quimioterapia e radioterapia. Caminhos radicalmente novos estão sendo testados com sucesso

O professor Henry T. Greely, autor do artigo da Science Focus, mostra que, a partir dessa experiência japonesa, tudo o que aprendemos desde o início da humanidade pode não valer mais. Uma única pessoa, homem ou mulher, pode gerar um filho a partir de um pedacinho de sua pele. 

“Uma ideia ainda mais radical”, segundo Greely, é a chamada “‘paternidade múltipla’, que pode envolver produzir embriões a partir de quatro pessoas, que serão usadas para fazer óvulos e espermatozoides. Transforme esse óvulo fertilizado num bebê e você terá uma criança com contribuições genéticas de quatro pais — ou oito, ou 16, ou mais”.

“Estou preparado para consentir num procedimento experimental, aceitando os riscos em retorno de potenciais benefícios para mim e para a ciência”, conclui o professor Greely, que leciona Ética Biomédica na Universidade Stanford. “Bebês não podem aceitar nada, nem embriões. (…) Temos que enfatizar o bem-estar deles em primeiro lugar, depois os efeitos mais amplos em nossas sociedades.”

Foto: Shutterstock
Cerco ao câncer

Estamos pensando em colonizar Marte e conversando com robôs. Mas ainda nos apavoramos com uma verruga nova na pele ou um pingo de sangue nas fezes. 

“Um em cada dois de nós vai desenvolver câncer na vida”, escreve a professora Sarah Allinson para a Science Focus. “Graças aos avanços no diagnóstico e no tratamento, porém, mais pessoas estão sobrevivendo ao câncer do que nunca. Essa tendência vai continuar — e quão próximos estamos de achar uma cura?”

A pergunta, segundo a professora Allinson, não tem uma resposta fácil. Não existe, segundo ela, uma doença única chamada câncer, mas uma coleção de mais de 200 variações, cada uma com sua característica própria. Todas as variações têm um traço em comum — “uma massa de células anormais, todas originárias de uma única célula mutante que começou a se dividir incontrolavelmente”.

Há cinco décadas tratamos tumores com quimioterapia e radioterapia. Caminhos radicalmente novos estão sendo testados com sucesso. Um deles consiste em terapias hormonais, usadas no tratamento do câncer de mama e no de próstata. 

Uma arma poderosa contra a doença é o programa Atlas do Genoma do Câncer, que analisa nos mínimos detalhes as características dos tumores em 11 mil pacientes. Ao cruzar esses dados, o Atlas permite encontrar novos caminhos muito pessoais para cada caso. 

Outra estratégia que está encontrando sucesso em parte dos pacientes de câncer é a imunoterapia. O tratamento fortalece o sistema imunológico de forma que detecte e destrua por conta própria as células cancerosas, especialmente no sangue. Outra técnica em rápida evolução consiste em vacinar pacientes com antígenos específicos para provocar uma imunização eficaz para cada caso. Ou seja: vacinas sob medida para cada indivíduo.

Mesmo com todos os novos recursos, segundo a professora Allinson, a principal arma contra o câncer continua sendo o diagnóstico mais precoce possível. “Quanto mais o tumor cresce e se desenvolve, mais difícil se torna o tratamento”, diz. O diagnóstico precoce funciona muito bem para combater câncer colorretal, da cervical e de mama. Mas ainda não consegue detectar com muita antecedência o de pâncreas e o de pulmão.

A medicina ganhou um aliado muito poderoso na detecção: a inteligência artificial. Ela é capaz de analisar com muitos detalhes uma imagem e traços de células cancerosas no sangue. A IA ajuda no conceito de interceptação — a identificação de células cancerosas e o combate a elas antes mesmo da formação de um tumor. A terapia, conhecida pelo código TAC01-HER2, está sendo usada inclusive em um terreno até agora considerado perdido: a metástase.

Representação de célula cancerígena | Ilustração: Shutterstock
Biomateriais na cabeça

Este ano também chegou com o início da aprovação parcial pela Food and Drug Administration (FDA, agência reguladora norte-americana equivalente à nossa Anvisa) de materiais bioeletrônicos. Eles conectam computadores e outros dispositivos eletrônicos diretamente ao nosso cérebro. 

A empresa Neuralink (que faz parte do complexo comandado por Elon Musk) conseguiu no ano passado a aprovação da FDA para começar a testar esses chips em humanos. Por enquanto eles são inseridos por cirurgia, mas já estão sendo testados capacetes que promovem o mesmo efeito sem necessidade de implante.

Esses materiais, em princípio, são destinados a suprir deficiências de nosso organismo. O exemplo clássico é o da pessoa que sofreu um acidente, ficou paraplégica, incapaz de mover seus membros. Com o desenvolvimento de biomateriais, é possível formar uma interface que permita a um computador dar ordens que o cérebro já não consegue dar aos músculos.

Usando biomateriais, cadeirantes estão começando a andar com o uso de exoesqueletos. Deficientes visuais estão a caminho de enxergar através de câmeras conectadas diretamente aos seus neurônios. Órgãos artificiais serão produzidos em impressoras 3D por meio de um processo chamado bioink. Precisa de um novo pulmão? Imprima.

Ilustração: Iaremenko Sergii/Shutterstock
Declínio cognitivo

Os corpos humanos estão vivendo cada vez mais. Mas as mentes não estão acompanhando essa evolução. Elas perdem a capacidade de funcionar plenamente muito antes da morte, o que gera um grave problema social.

A Science Focus define “declínio cognitivo” como uma “desaceleração ou embotamento da nossa memória, concentração e capacidade de pensar”. Tudo isso é normal com a idade, mas alguns sinais, quando começam a aparecer, tornam-se fonte óbvia de preocupação para o próprio idoso e seus familiares. É o caso do esquecimento de datas, perda da linha de raciocínio, dificuldade de planejar tarefas, de decidir, de se localizar. E também a tendência a se tornar mais impulsivo, o que alimenta a imagem do “velho ranzinza”.

Em alguns casos, esse declínio torna-se um caso clínico — como no Alzheimer, para o qual infelizmente ainda não existe cura. Mas remédios como o Leqembi estão sendo usados em pacientes com Alzheimer para retardar o desenvolvimento da doença e diminuir o ritmo de declínio cognitivo. O não invasivo Exablate Neuro usa uma câmera de ultrassom para diminuir os sintomas da doença de Parkinson. O Relyvrio age da mesma maneira com quem tem esclerose lateral amiotrófica (ALS, na sigla em inglês). São excelentes notícias para quem sofre dessas doenças.

O prazer dos pequenos hábitos

Como em tudo mais, é muito mais fácil evitar o declínio cognitivo do que curá-lo. Ele é inevitável, mas pode ser amenizado. A matéria da Science Focus fala em “reserva cognitiva”, que pode ser resumida como a capacidade de lidar com mudanças. Essa reserva é acumulada durante nossa vida quando nos ocupamos de coisas diferentes, aprendemos coisas novas e desenvolvemos atividades estimulantes. Quanto mais nos adaptamos a mudanças, melhor envelhecemos.

Outros fatores são importantes para retardar esse declínio, já que ele tende a ser agravado por condições de saúde como pressão alta, diabetes, depressão e doenças cardiovasculares. Nossos aliados são aqueles que já conhecemos bem — dieta nutritiva e balanceada com muitos vegetais, atividade física, consumo limitado de álcool, e nada de cigarros.

Outros fatores são mais sutis. Atividades sociais estimulam a mente a se comunicar melhor. Relacionamentos românticos e de amizade ajudam muito. E atividades sexuais liberam hormônios (como dopamina e oxitocina), o que ajuda a manter o cérebro ativo. Encontrar prazer em pequenos hábitos ajuda muito — ler, tocar um instrumento, jogar videogame, passear, quebrar a rotina. 

E dormir. Pesquisa do Conselho de Estudos de Funções Cognitivas e Envelhecimento (CFAS, na sigla em inglês), com sede no Reino Unido, descobriu que dormir menos de 6,5 horas por noite acelera o declínio cognitivo pelos próximos dez anos e piora a memória de pessoas acima dos 65 anos. 

Cochilos durante o dia também são altamente recomendados. E nada disso implica o uso de medicamentos avançados e de tratamentos complexos para atrasar o declínio cognitivo. Apenas bom senso e amor-próprio.

Ilustração: Fer Gregory/Shutterstock

@dagomir
dagomirmarquezi.com

Leia também “A inteligência artificial muda o mundo”

7 comentários
  1. Edmar Simplício da Silva
    Edmar Simplício da Silva

    Esses últimos dois artigos publicados são muito bons, parabéns e grato por esse material.

  2. Vanda Chaves
    Vanda Chaves

    Seus artigos são espetaculares. Esse de hoje ultrapassou . Que maravilha!

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Estranho essa questão de ter filhos dessa maneira, com diversos pais, sem afeto. Espero que isto não prospere.
    Já a Neuralink, será um grande avanço para a sociedade.

  4. CARLOS ALBERTO DE MORAES
    CARLOS ALBERTO DE MORAES

    IA: muitos progressos e muitas preocupações… o que será maior?

  5. Ana Kazan
    Ana Kazan

    Excelente artigo, Dagomir. Muito obrigada.

  6. Susana Denise Zimmer
    Susana Denise Zimmer

    Artigo muito esclarecedor! Parabéns

  7. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Essa revista junto com esse infiliche desse Dagomi Marquesi são dois febrentos pá saber das coisas. Eu nunca imaginei que um véio já morrendo pudesse ter filhos sem nem olhar pra uma muié. Que evolução danada, só esse Dagomi da bobônica pra mandar isso pra gente

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