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Edição 20

O STF, a imprensa e a liberdade de expressão

Dos papistas do século 17 aos bolsonaristas do século 21 e de como Alexandre de Moraes agiu de forma arbitrária e arrastou consigo toda a Suprema Corte

Bruno Garschagen
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Das muitas profecias feitas por Alexis de Tocqueville em sua obra A Democracia na América (Vide Editorial, 2019), a mais evidente foi a centralização do poder estatal como corolário da experiência “dos séculos democráticos”, da vitória da ideia da igualdade que conduz “a um governo único, uniforme e forte”, da ambição dos homens que almejam controlar os indivíduos, da ilusão dos povos que os leva a abrir mão de suas liberdades. Não se trata, portanto, de exclusividade de um dos três poderes, mas do caráter dos homens que ocupam posições relevantes no Executivo, no Legislativo e no Judiciário e que podem destruir as liberdades.

A liberdade de expressão simboliza uma espécie que congrega uma dimensão política e outra individual. Individual porque só o indivíduo é capaz de exercê-la; política porque, protegida pela lei, sua cassação é empreendida politicamente, afeta toda a sociedade e não somente aquele que foi calado.

Quem faz da liberdade de expressão um instrumento do vício deve ser responsabilizado pelo crime cometido, não há dúvida a esse respeito. Nenhuma liberdade é absoluta porque está sempre condicionada aos efeitos de seu exercício sobre um terceiro. O que não pode acontecer é o governante, o legislador ou o magistrado atacar a liberdade de expressão do “criminoso presumível” por um delito que nem sequer foi cometido.

O ofício de censor é atividade de homens mesquinhos

No seu famoso Areopagítica, livro muito citado e louvado quando o assunto é liberdade de expressão, John Milton acusou a censura prévia de ser o resultado da sensação de superioridade dos agentes do Estado e seu consequente desapreço pelos indivíduos livres. E que tal ofício, o de censor, era atividade de homens mesquinhos. Elaborados como reação aos acontecimentos históricos da Inglaterra no século 17, os argumentos de Milton são cristalinos, sofisticados e atemporais. Cabem à perfeição às discussões deste século 21, mesmo numa cultura política tão distinta quanto a nossa.

O poeta inglês não fez, porém, a defesa da liberdade de expressão para todos, mas apenas para seus irmãos de fé protestante e de causa revolucionária. Os católicos foram explicitamente excluídos como beneficiários de seu protesto e, segundo Milton, o papismo não deveria ser tolerado.

Essa posição seletiva, que define quem pode e quem não pode ter ou exercer o direito à liberdade de expressão, é triste realidade em vários países. Embora restrito à atividade jornalística, o principal índice internacional é a Classificação da Liberdade de Imprensa 2020, elaborada pelos Repórteres sem Fronteiras. O levantamento atribui notas a partir da análise do que ocorre em cada país em relação a Pluralismo, Independência midiática, Ambiente e autocensura, Quadro legislativo, Transparência, Infraestrutura, Agressões.

Numa lista de 180 países, o mais livre é a Noruega e o menos livre é a Coreia do Norte. O Brasil ocupa a nada honrosa posição de número 107. Estamos atrás de Angola, Moçambique, Serra Leoa, Kosovo. Desde que o índice começou a ser publicado, em 2013, a posição do Brasil nunca foi boa.

Uma perversão completa da lei e da ética

Na área do site dedicada ao Brasil, há uma nota cujo título é autoexplicativo acerca da postura política da instituição: “Um clima de ódio e desconfiança alimentado pelo presidente Bolsonaro”. Estou muito curioso para saber de que maneira a organização Repórteres sem Fronteiras qualificará no próximo índice a censura prévia estabelecida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes e a declaração  “Enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, nós somos editores de um país inteiro”, do ministro Dias Toffoli.

Pertencem à mesma cepa autoritária decisões políticas e judiciais que cassam a liberdade de alguns que não foram condenados por crime algum. É uma perversão completa da lei e da ética. Tão mais grave que tal excrescência seja perpetrada por ministro do STF, como o fez Alexandre de Moraes, numa clara afronta à Constituição da qual deveria ser guardião.

Assim como John Milton não queria a liberdade de expressão para os católicos, o ministro não quer que a tenham os bolsonaristas mais notórios. Ao censurar apoiadores do governo e as redes sociais nas quais eles tinham contas ativas, Moraes agiu de forma arbitrária e arrastou a instituição consigo. Em nenhuma hipótese, o STF pode ser censurador, como quer Moraes, nem editor dos brasileiros, como quer Dias Toffoli.

O Judiciário é o poder mais perigoso porque tem o potencial mais danoso

Uma vez aberto o precedente, abre as portas do inferno para queimar qualquer um que seja visto por ministro do STF como seu inimigo. Caso a decisão do ministro seja endossada pela maioria de seus colegas, o mesmo entendimento abusivo poderá ser usado contra qualquer um a qualquer tempo. A situação é ainda mais inacreditável quando ao golpe contra a liberdade de expressão são adicionados um ataque contra empresas privadas e a pretensão de que uma decisão nacional seja acatada internacionalmente.

O Judiciário é o poder mais perigoso porque tem o potencial mais danoso, impõe a maior dificuldade de correção e os demais poderes quase nada podem fazer para confrontá-lo. Se Executivo e Legislativo podem ser modificados de tempos em tempos por meio de eleições (e ressalto que o presidencialismo é o pior modelo para a solução de crises), a renovação do Judiciário é processo lento que depende de aposentadoria, morte ou renúncia de seus integrantes. E se é verdade que um ministro do STF pode sofrer processo de impeachment, imposto pelo Senado Federal, caso cometa crimes de responsabilidade (Lei nº 1.079, de 1950), até hoje nenhum ministro foi afastado do cargo com base nessa lei.

A imprensa, que exibe soberba similar à do ministro censurador, apequenou-se

A afirmação está longe de ser original, mas deve ser sempre lembrada: a defesa da liberdade de expressão só é válida se for defendida também para as ideias que rejeitamos. Reitero: se houver crime, que seu autor seja processado, julgado e condenado. Mas, se a própria imprensa, por rechaçar os censurados, endossa a censura prévia estabelecida pelo STF, estamos diante de um caso gravíssimo de duplo padrão moral: jornalistas que reclamam, com razão, dos ataques à liberdade de expressão, mas aceitam tais violações quando a vítima é um adversário.

Não se enganem: a cassação da liberdade de um indivíduo ou de vários indivíduos abre a janela para a cassação de outras liberdades de todo mundo, mesmo daqueles que celebraram quando só o inimigo foi atingido.

A imprensa, que exibe soberba similar à do ministro censurador, apequenou-se para atacar seus inimigos declarados. Contra um presidente nostálgico do regime militar e de postura similar à de Floriano Peixoto, o déspota militar que foi o segundo presidente republicano, os jornalistas endossam as posições arbitrárias do STF, do Legislativo e dos adversários do governo sob a justificativa de combater o autoritarismo de Bolsonaro e de seus apoiadores. Não se trata, portanto, da luta do bem contra o mal.

Vivemos um momento político delicado no qual líderes e integrantes dos Poderes Judiciário, Executivo, Legislativo e da imprensa estão numa disputa acirrada para, em graus e temas distintos, mostrar quem se sai pior, quem sai menor. Nosso desafio é impedir que esse conflito prejudique o país. Como? Assumindo a responsabilidade que nos cabe e usando os instrumentos políticos e jurídicos disponíveis. É difícil, mas não impossível.

Sobre o tema, leia também os artigos de Augusto Nunes e Ana Paula Henkel


Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).

 

14 comentários
  1. João Felipe Sampaio Barbosa
    João Felipe Sampaio Barbosa

    Excelente artigo. Parabéns

  2. Diana Monteiro
    Diana Monteiro

    Tempos sombrios!

    1. Ezequias Rocha Dos Santos
      Ezequias Rocha Dos Santos

      Se só o executivo está obrigado a cumprir a Constituição, então, o sistema institucional brasileiro já fracassou.
      Vamos chamar o cabo e o soldado e reiniciar o jogo!

  3. Ney Pereira De Almeida
    Ney Pereira De Almeida

    Inacreditável que o articulista nem se de conta do que escreve. Pôs-se, sem perceber, na mesma posição de John Milton. Como num diálogo frente a um espelho. Incrível a verdade de Karl Jung (quando João fala de Maria, sabe-se mais de João do que de Maria).
    Ao endossar a falácia vigente que tem justificado “porcamente” os atos totalitários dos CANALHAS DE PLANTÃO, Bruno Garschagen não apontou – PELO MENOS – UM ÚNICO ATO QUE MOSTRE BOLSONARO, desde que assumiu o Governo, como (ele mesmo disse): “de postura similar à de Floriano Peixoto, o déspota militar que foi o segundo presidente republicano”.
    Essa postura coloca Bruno Garschagen – por suas próprias palavras – na mesma vala fétida onde lançou os que detratou, juntamente com John Milton.
    A afirmação de que Bolsonaro lhe parece “um presidente nostálgico do regime militar” É EXATAMENTE A MESMA SEMELHANÇA ENXERGADA EM BOLSONARO PELOS QUASE 58 MILHÕES DE BRASILEIROS QUE VOTARAM NELE (inclusive eu mesmo). Acrescente-se que representamos a maioria do povo brasileiro. Quanto a semelhança que Garschagen viu entre Bolsonaro e Floriano Peixoto (chamado por ele de déspota militar segundo Presidente) é uma questão puramente pessoal de “ótica”, talvez fácil de resolver por um Oftalmologista ou por u’a maior honestidade intelectual, ou ainda por um trabalho de pesquisa, decente. Mas, mesmo que a semelhança exista, como profissional da palavra, o Articulista tem a obrigação de saber a diferença entre “semelhança” e “igualdade”. Por exemplo, qualquer um poderia ver semelhança entre ele – Bruno – e um crápula tirano como Dias Toffoli ou Alexandre de Morais. E daí, qual a probabilidade de a semelhança ter força de igualdade? A mim pareceria mera maledicência barata.
    Vivemos um tempo em que TODOS se veem como PEDRAS. Poucos se colocam como VIDRAÇAS.
    Fica difícil encontrar algo para ler, que realmente valha a pena.
    Nesta Revista Oeste, eu estava, até agora, com um ótima expectativa. Inclusive quanto a esse rapaz, Bruno, a quem já fiz comentários elogiosos. Graças a Deus, temos Augusto Nunes e Ana Paula, com certeza, um OÁSIS DE PUREZA INTELECTUAL E ESMERO LITERÁRIO, ALIADOS A UMA PERCEPÇÃO COGNITIVA NOTÁVEL E CENSO DE JUSTIÇA ADMIRÁVEL. Mas, não se ganha sempre.

    PS.: Apenas para “atrapalhar” qualquer sofisma que lhe ocorra para justificar sua “pisada-de-bola”, não sou Bolsonarista, nem mesmo acredito nessa bobagem. Bolsonaro – no meu entender – não tem nem 20% das qualidades para justificar-se como inspirador de um movimento (como se caracterizam os “ismos” na política). Para mim, ocorreu o contrário, ele foi sequestrado pelo POVO ENOJADO com tanta corrupção e tanta doença esquerdista, que viu nele o OPOSTO PERFEITO DO DÉSPOTA (que vc. viu) E DOS CORRUPTOS CONTUMAZES QUE GRASSAM NO BRASIL. Por isso ele foi tomado como um ícone da INDIGNAÇÃO POPULAR. Independente de quaisquer semelhanças ou rótulos que um canalha qualquer tente colar nele. Nem mesmo os filhos dele, e suas atitudes, podem ser apensadas a ele. Os caminhos da vida são pessoais e individuais, só conduzem uma pessoa. Para o paraíso ou para o inferno.

    1. Sebastiao Márcio Monteiro
      Sebastiao Márcio Monteiro

      Gosto muito dos textos do Bruno. Principalmente quando aborda temas intencionais. Desta vez optou pelo doméstico e sou obrigado a concordar com os pontos levantados pelo Sr. Ney. A abordagem geral sobre oSTF está perfeita. Já nas alusões à postura e nas comparações relativas ao PR (independentemente de ser ou não bolsonarista), o autor não foi nem um pouco feliz.

      1. Márcio André de Alcântara Souza
        Márcio André de Alcântara Souza

        Concordo em gênero, número e grau!

      2. Rogério Storino Gonçalves Gomes
        Rogério Storino Gonçalves Gomes

        Perfeita a observação!

    2. Ruy Quintão
      Ruy Quintão

      Gostei do comentário do Ney. Assino embaixo.

  4. Nara Rosangela Rodrigues
    Nara Rosangela Rodrigues

    O Presidente atual só consegue se segurar numa corda bamba, balançada dia pelo Congresso, dia pelo STF e diariamente pela mídia apodrecida. Ainda assim, é o único representante dos Três Poderes que merece o apoio que recebe de seus eleitores. E precisa ser reeleito para – com o tempo – termos chance de mudar a vergonhosa situação de nosso País. Bolsonaro não é alternativa, é a única opção que temos. O resto é tudo igual.

    1. Rosângela Baptista da Silva
      Rosângela Baptista da Silva

      Faço minhas suas palavras, Nara. Bolsonaro é nossa única esperança

  5. Silvio Tadeu De Avila
    Silvio Tadeu De Avila

    Atenção: noticia-se que há duas PEC’s sendo engendradas, uma, a da bengala, para elevar a saída compulsória dos ministros do STF para 80 anos; e a outra, pera permitir a reeleição dos Presidentes da Câmara e do Senado. Se isso acontecer, deu, né?

    1. Marcelo Gurgel
      Marcelo Gurgel

      O establisment não deixa o Brasil avançar.

  6. Claudia Aguiar de Siqueira
    Claudia Aguiar de Siqueira

    Se, no próximo ano, não tivermos queda acentuada de posição no índice dos “Repórteres Sem Fronteiras”, concluiremos que eles também são parte do problema. Excelente artigo!

  7. Fernanda Spelta
    Fernanda Spelta

    Integrantes do STF abriram guerra contra o Executivo. É tudo ou nada.
    Inimaginável, mas é o que acontece aos “guardiões da Constituição”
    Nao a toa, STF vergonha nacional e tudo isso dá nojo dos togados

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