“É aconselhável manter prontas algumas camisas limpas, passadas e dobradas. Melhor se com iniciais bordadas. Para ter moral entre os presos. Quando a polícia tocar a campainha de suas casas, não terão tempo de preparar as malas.”
Assim recomenda o lobista Mario Alberto Zamorani em seu livro Primeiro, Levem um Pijama Listrado. Na obra, Zamorani explica aos executivos italianos como se preparar para um evento que provavelmente faria parte de seus currícula: a prisão.
O ano era 1993. A Operação Mãos Limpas estava em pleno vapor, com um turbilhão de prisões diárias. Em poucos meses, milhares de políticos, empresários, banqueiros e intermediários acabaram na cadeia por corrupção. Uma classe dirigente inteira foi varrida pela história e nunca mais voltou ao comando do país.
A Operação Mãos Limpas revelou muito mais do que um esquema de corrupção. Mostrou como na Itália tinha se instalado uma gigantesca teia de subornos. Essa estrutura funcionou por décadas em todos os âmbitos da vida pública, completamente normalizada pela alta cúpula do Estado e do empresariado. A rede de crimes era tão grande que a imprensa a apelidou de Tangentopoli (algo como “Propinópolis”, em português).
Dinheiro na privada
Na tarde do dia 17 de fevereiro de 1992, o procurador Antonio Di Pietro entrou no escritório de Mario Chiesa, presidente do Pio Albergo Trivulzio, abrigo público para idosos de Milão. O executivo estava embolsando o suborno de um empresário. Foi apanhado em flagrante. Antes de ser algemado, Chiesa perguntou aos policiais se podia ir ao banheiro, onde jogou notas na privada para tentar se livrar de outra propina milionária.
Nesse dia, quase por acaso, começou a Operação Mãos Limpas. Chiesa, membro do Partido Socialista Italiano (PSI) com a função de arrecadar recursos ilícitos, tinha certeza de que a classe política pressionaria os juízes para obter sua rápida liberação. Não aconteceu. A opinião pública tinha mudado e não tolerava mais casos de corrupção. O líder socialista, o ex-primeiro-ministro Bettino Craxi, tentou manter distância. Chamou Mario Chiesa de “pequeno larápio” ao vivo na televisão. Furioso, Chiesa decidiu delatar. “Todos roubaram”, declarou aos juízes, que começaram a prender geral.
Nenhum líder político foi salvo por chicanas em Cortes superiores ou por supostas incompetências territoriais, como no caso do processo contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lava Jato
Dois anos depois, Craxi fugiu para a Tunísia para evitar a prisão. Aquele que havia sido o homem mais poderoso da Itália por décadas terminou a vida como fugitivo internacional. Morreu no exílio em 2000. Seu corpo nem sequer foi trasladado de volta para o solo italiano. Permanece num cemitério de Hammamet, perto de Túnis.
O Partido Socialista, provavelmente o mais corrupto de todos, tornou-se o símbolo da indecência. A população começou a mostrar sua repulsa em relação à classe dominante nas praças. Os políticos não podiam mais sair nas ruas sem ser xingados de ladrão. Saindo do hotel onde morava em Roma, Craxi foi alvo de uma chuva de moedas jogadas por manifestantes que gritavam “Bettino, quer essas também?”. As lideranças das empresas estatais acabaram na cadeia ou renunciaram ao cargo. Executivos da Fiat também conheceram os presídios. Gabriele Cagliari, presidente da ENI (a Petrobras italiana), se suicidou de vergonha em sua cela.
‘Decreto salva ladrões’
Assim como ocorreu no Brasil com a Operação Lava Jato, a classe política tentou resistir à investida da legalidade elaborando leis que pudessem bloquear as investigações. Mas a indignação do povo e a persistência do Judiciário foram mais fortes. E os inquéritos foram até o fim.
Em 1993, o então ministro da Justiça Giovanni Conso tentou aprovar um decreto que descriminalizava o financiamento ilícito dos partidos políticos. A imprensa o batizou de “decreto passa pano”, pois teria acabado com todos os processos. Foi a faísca que detonou a reação dos magistrados. Os membros da força-tarefa da Mãos Limpas decidiram aparecer na televisão e denunciar a tentativa de anistia como inconstitucional. A pressão foi tamanha que o presidente da República, Oscar Luigi Scalfaro, se recusou a sancionar o texto. No mês seguinte, o governo caiu.
Os políticos tentaram de novo se salvar em 1994, com mais um decreto de outro ministro da Justiça, Alfredo Biondi. O texto permitia a prisão domiciliar aos condenados por corrupção. Dessa vez a imprensa o chamou de “decreto salva ladrões”. O documento foi aprovado pelo governo na noite da semifinal da Copa do Mundo que a Itália ganhou contra a Bulgária. Uma tentativa de distrair a população. A força-tarefa da Mãos Limpas voltou a se manifestar publicamente, anunciando que não prosseguiriam nas investigações. Os italianos se revoltaram e começaram espontaneamente a inundar de fax as redações dos jornais, as televisões e as sedes dos partidos de protesto. A pressão foi tamanha que o decreto foi rapidamente retirado.
Tudo deu certo. A repulsa visceral do povo contra a corrupção, a tenacidade dos magistrados da Mãos Limpas e a insistência dos jornalistas em denunciar escândalos foram fundamentais para que os políticos corruptos italianos prestassem contas com a Justiça.
Nem a Máfia atrapalhou
A Operação Mãos Limpas investigou 4.520 pessoas, das quais 3,2 mil foram processadas e 1.281, condenadas. Uma geração inteira acabou envolvida na pilantragem. Todos julgados por Cortes ordinárias, sem foro privilegiado. Milhares foram presos preventivamente. E em nenhum caso a Corte Constitucional italiana, equivalente ao Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil, ousou questionar um só julgamento.
Nenhum líder político foi salvo por chicanas em Cortes superiores ou por supostas incompetências territoriais, como no caso do processo contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lava Jato. Nem mesmo Giulio Andreotti — sete vezes primeiro-ministro, 34 vezes ministro, dez vezes deputado, inclusive constituinte, e oito vezes senador — conseguiu evitar os tribunais.
A Máfia, aliada de porções da classe política italiana, tentou mudar o rumo da história. Os mafiosos explodiram carros-bomba em Roma, Milão e Florença nos dias dos processos mais importantes. Dezenas de pessoas morreram ou ficaram feridos. Obras de arte foram destruídas. Mas os procedimentos judiciários continuaram.
Apenas 24 meses após a prisão de Chiesa, nenhum dos partidos políticos da chamada Primeira República continuava existindo. Nem mesmo a aparentemente sólida Democracia Cristã (DC), que tinha governado a Itália ininterruptamente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A DC se dissolveu em 1994. Todos estavam envolvidos em escândalos tão grandes que preferiram sumir a enfrentar novamente os eleitores.
Leia também “A agonia do varejo brasileiro”
Penso que aqui além de um povo que se deixa enganar, que ainda não acordou , temos uma imprensa conivente e paga, vergonhosa, e um Congresso comprado- igualmente vergonhoso, principalmente pelos seus líderes, vendidos inúteis. Muiito mais difícil. Mas tem algo que pode ser a saída: a completa falência econômica do país, que, acredito, vai acontecer cedo ou tarde. Talvez ISSO ” acorde” o povo que dorme….
Os malandros daqui aprenderam com os malandros de lá e reforçaram a artilharia contra a corrupção.
E assim os larápios vão apagando a história com narrativas.
Aqui no Brasil o buraco é mais embaixo. Os corruptos uniram-se à imprensa e ao judiciáro com a conivência vergonhosa das Forças Armadas. A população encontra-se acovardada mediante as ameaças impostas pela DITADURA vigente e à espera de um milagre.
Excelente! Por aqui o judiciário se uniu aos ladrões para soltá-los e agora persegue os juízes e procuradores para prendê-los. Se nada for feito, os ladrões roubarão de novo e, de novo, contarão com a ajuda das altas cortes de (in)justiça do país. São coniventes! São cúmplices!
Excelente artigo! Parabéns , Cauti, mas creio que essa gloriosa operação teve o mesmo fim da lavajato aqui, pelo q me consta. Gostaria de outro artigo abordando o assunto!
O final do texto afirma que os processos continuaram, apesar das reações e tentativas dos políticos. No entanto, a legenda da última foto diz que os magistrados foram foram derrotados pelos políticos. Ao que me consta, foi isso o que acabou acontecendo.
Excelente artigo. Que a operação mãos limpas, italiana, nos ajude a compreender o momento e buscar caminhos.
Jamais havia lido nada sobre a Operação Limpas, mas , no Brasil, acompanhei a Lava jato e a operação lavanderia imposta pela toga, manobrada pelo mecanismo.
Carlo Cauti é um excelente acréscimo a essa incrível revista. Não o conhecia, mas agora leio todas as suas reportagens. Muito bom.
Muito boa a reportagem. Mas no Brasil????
Muito boa a reportagem. Mas no Brasil????
O texto parou no meio da história, não?
Depois disso, afrouxamento das leis ocorreram, e o país voltou a níveis altos de corrupção, não? Segundo alguns pesquisadores, até mais altos que os anteriores..
Parabéns pela reportagem, muito boa, mas se não posso compartilhar o conteúdo das publicações da Revista Oeste, que me dá argumentos e fundamentos para defender aquilo que acredito, no caso a defesa do conservadorismo, diminui muito o meu interesse pela revista.
É pegar os generais bandidos ladrões e que estão recebendo 700 mil por mês, trancafiá-los pra aguardar julgamento de traidores da nação pelo STM e o resto já se sabe como tratá-los
A corrupção na Itália não é novidade.
O Império Romano do Ocidente caiu em 476 DC por questões relacionadas a corrupção.
Sua unificação ocorreu por volta de 1870, mas ainda existe cidade Estado como San Marino que é independente.
Interessante que o principal partido envolvido era o Socialista.
Então não temos nenhuma diferença em relação ao PT – que não criou a corrupção – mas a institucionalizou.
O excelente artigo nos mostra uma lição. A pressão popular foi essencial para o sucesso da operação.
Aqui no Brasil, não por acaso, o executivo, judiciário e boa parte do Congresso querem silenciar as redes sociais par livrar-se do enorme incomodo que isso provoca nos meios políticos e jurídicos.
Não devemos arredar os pés. Eu continuo fazendo minha parte independe do que se passa na cabeça do Supremo Imperador Alexandrus I, o Calvo.
Parabéns Cauti, esclareceu aos brasileiros o que de fato foi a operação Mãos Limpas e suas consequências. Não voltaram ao poder e tiveram que devolver o dinheiro roubado. Infelizmente isso não foi possível no Brasil, os ladrões voltaram a cena do crime com o apoio irrestrito do STF e estão lá para ficar.