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Foto: SCO/STF
Edição 200

A negação da Justiça

A inversão de valores que contaminou os tribunais fez do Brasil um país onde um agricultor é sentenciado a mais tempo de cadeia do que uma mulher que esquartejou o marido

Cristyan Costa
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Em fevereiro de 2021, o senador Chico Rodrigues (PSB-RO), depois de um ano afastado, reassumiu o mandato, mesmo com um indiciamento da Polícia Federal (STF) por suposta participação no Covidão, esquema de desvio de verbas públicas destinadas ao enfrentamento da pandemia de covid-19 nos Estados. À época, Rodrigues ficou conhecido como “senador da cueca”. Isso porque, durante uma operação em sua casa, agentes flagraram o parlamentar tentando esconder R$ 30 mil na peça íntima. O dinheiro supostamente seria de corrupção. Por isso, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a suspensão das atividades de Rodrigues, mas nem sequer cogitou sua prisão. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tampouco propôs cassar o socialista, e o Senado nem levou o nome de Rodrigues para o Conselho de Ética da Casa, como deveria.

Por muito menos, o agora ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Novo-PR) foi cassado pelo TSE, em maio do ano passado, apenas cinco meses depois de ter assumido o cargo — em tempo recorde, a Mesa Diretora da Câmara obedeceu ao TSE. O Tribunal acolheu um pedido do PT, segundo o qual Dallagnol burlou as Leis da Ficha Limpa e de Inelegibilidade ao se candidatar. Os argumentos: o Tribunal de Contas da União condenou Dallagnol por gastos com viagens enquanto ele era procurador da Lava Jato. Segundo a acusação, ele teria pedido exoneração da procuradoria não para se candidatar, mas por ser alvo de 15 processos administrativos. No exercício de futurologia feito por seus acusadores, Dallagnol, embora não respondesse a nenhuma acusação grave, pediu para sair do cargo de procurador porque seria condenado — algo que provavelmente nunca acontecerá.

Rodrigues ianomâmi
O senador Chico Rodrigues, ou “senador da cueca” | Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Inversão de valores

Os dois pesos e as duas medidas da Justiça não se restringem ao caso de Dallagnol. Há quase quatro anos, o Brasil assistia perplexo à soltura de André do Rap, uma das lideranças do Primeiro Comando da Capital (PCC). O agora aposentado Marco Aurélio Mello concedeu ao criminoso um habeas corpus, na manhã de um sábado ensolarado. Ao sair pela porta da frente da Penitenciária de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, o bandido fugiu do país, e até hoje ninguém sabe o seu paradeiro. Rap ficou preso 13 meses por comandar o envio de remessas de cocaína à Europa, conforme investigação policial. Os entorpecentes que saíam do Porto de Santos (SP) eram recebidos na Calábria, na Itália, e distribuídos pelo continente. Nos meses seguintes, o Superior Tribunal de Justiça devolveu a Rap um helicóptero e uma lancha.

A mesma condescendência do Judiciário não valeu para um jornalista sexagenário do Espírito Santo. Detido em dezembro de 2022, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, em virtude de supostas fake news, Jackson Rangel teve inúmeros pedidos de soltura, feitos pelo Ministério Público Federal (MPF), negados. Ele passou exatos 368 dias detido, sem denúncia do MPF ou audiência com agentes da PF para se explicar. Solto há um mês, Rangel é atormentado diariamente por medidas restritivas, entre elas a tornozeleira eletrônica e a proibição do uso de redes sociais.

Foi a Procuradoria-Geral do Espírito Santo (PG-ES) que solicitou, de forma irregular e diretamente ao STF, a prisão de Rangel, em setembro de 2022. Moraes acatou o pedido, apesar da falta de provas e da ilegitimidade da PG-ES em realizar a petição. De acordo com o Código de Processo Penal, um inquérito policial deve ser concluído em dez dias — com possibilidade de prorrogação por mais dez — e o indivíduo precisa ser denunciado pelo Ministério Público até cinco dias após a conclusão, sob pena de arquivamento do processo. A denúncia formalizada tem de conter provas robustas de algum crime e ser encaminhada ao juiz, que pode aceitá-la ou rejeitá-la, mantendo ou não a prisão. No caso de Rangel, o MPF emitiu parecer contrário ao pedido.

Jackson Rangel, jornalista | Foto: Divulgação
8 de janeiro

Sentenciado na Lava Jato a quase 400 anos por corrupção, Sérgio Cabral hoje aproveita a liberdade sem medidas restritivas, desde que deixou a cadeia em 2022, por decisão do STF. Já o agricultor Jorginho Azevedo não teve a mesma sorte. No mesmo ano em que libertou Cabral, a Corte colocou Azevedo atrás das grades, sob a acusação de ter gastado cerca de R$ 30 mil para financiar um ônibus para a manifestação do 8 de janeiro, em Brasília. Com comorbidades, o homem de 63 anos terá de cumprir 17 de cadeia em regime fechado — pena superior à de Elize Matsunaga, conhecida por ter esquartejado o marido. Ele também terá de pagar uma “multa solidária” de aproximadamente R$ 30 milhões, devido aos danos causados durante os protestos.

Outro caso para lá de kafkiano é o de Felipe Feres Nassau, de 37 anos. Ele ficou oito meses detido na Papuda, mais algumas semanas cumprindo medidas restritivas, sob a acusação de ter quebrado prédios públicos durante as manifestações do 8 de janeiro, além de ter viés bolsonarista. A polícia o encontrou no interior do Planalto, onde ele alegou ter se refugiado das bombas de efeito moral. Em uma audiência, o nutricionista explicou que nunca esteve no acampamento em frente ao Quartel-General de Brasília, muito menos que havia planejado comparecer ao protesto.

No dia em que foi pego, Nassau contou que deixou sua casa, no Lago Norte, em direção ao Conjunto Nacional, um shopping não muito distante da Praça dos Três Poderes, onde compraria um par de chinelos. Ao chegar, viu pessoas caminhando pacificamente e foi convidado a participar do ato, “uma manifestação pacífica em defesa da família e de valores”. Acabou enjaulado. Moraes, porém, não acreditou na versão. Ao longo do processo, a defesa de Nassau obteve um comprovante de Uber que mostrava a rota percorrida pelo nutricionista, corroborando o depoimento dele. Mesmo assim, Moraes o condenou a três anos de cadeia e a indenizar o Estado com base no mesmo montante com o qual presos como Azevedo terão de contribuir. Em seu voto, seguido pela maioria dos juízes do STF, Moraes argumentou que Nassau depredou o patrimônio, mesmo sem ter nenhuma prova disso.

sérgio cabral - samba - integrantes da escola união cruzmaltina
Sérgio Cabral foi de presidiário a homenageado no Carnaval carioca | Foto: Divulgação/Diego Mendes/União Cruzmaltina

A dona de casa Jupira Rodrigues, de 57 anos, corre o risco de ter o mesmo destino dos demais condenados do 8 de janeiro. Desde outubro, ela aguarda o desfecho de seu caso, transferido para o plenário físico da Corte, por um pedido do ministro André Mendonça. Jupira e seu marido cuidam de duas netas pequenas em Betim (MG). Ela também é responsável por um jovem, com transtorno mental irreversível, que perdeu a mãe num acidente de carro. O benefício social que o rapaz recebe por causa da deficiência está travado judicialmente, assim como as demais contas bancárias da mulher, devido à participação dela nos protestos. Segundo o advogado de Jupira, ela tem comorbidades.

Assim como outros manifestantes soltos, a dona de casa usa tornozeleira eletrônica e cumpre medidas restritivas. Ela passou sete meses detida na Papuda, depois de ser presa no interior do Planalto, onde buscou abrigo da confusão que ocorria na Praça dos Três Poderes. Um dos argumentos de Moraes usados contra Jupira foi que sua digital estava numa garrafa de água. Jupira afirma que emprestou o objeto a um rapaz que passava mal na ocasião. “A senhora Jupira estava desarmada, sendo inimaginável que tenha tentado aplicar ou participar de qualquer golpe de Estado ou abolir o estado democrático de direito”, disse o advogado Hélio Junior.

O que Deltan Dallagnol, Jackson Rangel, Jorginho Azevedo, Felipe Feres Nassau e Jupira Rodrigues têm em comum? Todos são acusados do mais grave crime que pode ser cometido no Brasil desta segunda década do século 21: manifestar-se de alguma forma contra o governo Lula. No país de Alexandre de Moraes, esse tipo de gente não merece Justiça.

Leia também “Depois do 8 de janeiro”

23 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Com uns parlamentares e a justiça desse quilate, você se envergonha de ser brasileiro

  2. Paulo Roberto Mendonça Dilser
    Paulo Roberto Mendonça Dilser

    Como alguem que julga e de forma nenhuma e responsabilizado pelo resultado do seu julgamento, como se fosse uma crianca num parquinho ?? Mesmo sendo claramente suspeito/desonesto ?? Porque responsabilidades nao sao atribuidas. Seus julgamentos nao sao avaliados com indices claros e nem seus resultados medidos por nenhum orgao ?! Todo mundo eh avaliado na sociedade moderna.
    A sociedade precisa entender a importancia desses caras e levar a serio um escrutinio rigoroso, continuo e publico na conduta dos juizes , imagina o que deve acontecer de monstruosidades pelos rincoes do pais …

  3. COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA
    COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA

    CRISTYAN EXCELENTE , HONESTA E COMPETENTE ANALISE !!!!
    REALMENTE A LEI ACABOU NO BRASIL TEMOS, EM SUA MAIORIA, EX-ADVOGADO LIGADOS AO PT.

  4. CARLOS GUEDES
    CARLOS GUEDES

    Lamentavelmente, somos obrigados a reconhecer o completo APARELHAMENTO do judiciário (STF, STJ, etc.). E até o TSE que não tem nada a ver com o judiciário se mete onde der na telha. Vemos diariamente indivíduos fantasiados de juízes definindo o destino de pessoas que nunca foram acusadas formalmente, nunca tiveram acesso aos processos, etc. O ritual totalmente ilegal e inconstitucional segue. Na semana passada o arbítrio de um pseudo juiz mandou a Policia Federal invadir o Congresso e fazer busca em salas de políticos eleitos regularmente pelo povo, coisa que nenhum juiz foi. Isso significa estremecimento entre dois poderes. A Constituição diz claramente que nesses abalos da estabilidade do equilíbrio entre os poderes, cabe ao Exército atuar. Infelizmente, nosso exército hoje está hoje sob o comando de oficiais generais de …… sem qualquer princípio, sem ética, sem moral e batendo continência para bandido. O comandante do Exército agora chega ao absurdo de fazer parceria com o STF para atuar em assuntos de competência exclusiva do Executivo. Com oficiais generais desse padrão, pobre Exército. Por outro lado, os dois paspalhos que se apresentam como presidentes das duas casas do Congresso, ambos com os rabos presos no STF ou mancomunados com essa corte, até agora não abriram a boca sobre o assunto. Será que não tem mais oficiais generais neste país para entender o que está acontecendo e tenham culhões para agir?

  5. Murillo Gonzaga Saavedra Pires
    Murillo Gonzaga Saavedra Pires

    Alguma dúvida do regime ditatorial que vivemos??? Falam em democracia, mas alguém acredita nisso ainda??? Provavelmente teremos décadas dessa ditadura, enquanto ela não ferrar com a maioria, os meios de comunicação e entidades sociais não irão reagir. É um pena, quase o Brasil começou a trilhar caminhos melhores, mas a aristocracia socialista não deixa o povo prosperar, bando de pelego mamador do estado, sempre nos atrasando para manter seu poder e sua opressão sobre o povo. Precisamos de muitos Mieleys no Brasil.

  6. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Difícil encontrar palavras que exprimam adequadamente meu nível de indignação contra essa corte kafkiana. Quem poderia imaginar q chegaríamos a esse estado de coisas? Lamentável e vergonhoso!

  7. Francisco de Assis
    Francisco de Assis

    A quadrilha petista foi ampliada com a entrada em cena do judiciário como um todo.
    E assim caminha a in-justiça no brasil.

  8. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Goveeno Lula, não. Governo STF

  9. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Artigos como este precisam ser expostos. Para nos criar resiliência, em busca de um futuro melhor. Desistir do Brasil, jamais!

  10. Maria Lucia Benevides de Schueler
    Maria Lucia Benevides de Schueler

    Deprimente ler e reler todos estes dados reais e q sabemos q podem voltar a ocorrer,pois conforme a narrativa, não obedecem a nenhum critério de justiça. Porém, me choca mais saber q a dona Jupira, que nem a conheço, foi acusada de tentar dar um golpe com uma garrafa de água mineral. Conte isto em qualquer outro país, que dirão q vc enlouqueceu.

  11. Frederico Oliveira dos Santos Melo
    Frederico Oliveira dos Santos Melo

    Muito triste a situação das vítimas do 08 de janeiro! Realmente revoltante!

  12. MNJM
    MNJM

    Excelente artigo. Direto e revoltante.
    Os bandidos o STF amenizar mas quem é contra o governo do corrupto, mesmo sem provas tem q ser condenado.
    Acredito na Justiça divina e será na proporção das maldades do tirano.

  13. Aurelio Mialich
    Aurelio Mialich

    Não sei se devo parar de ler para preservar melhor minha saúde

  14. Aurelio Mialich
    Aurelio Mialich

    Gosto muito de ler todas as matérias da revista Oeste mas confesso que estou ficando intoxicado com tanta injustiça que perco o sono todas as noites.

  15. José Luís da Silva Bastos
    José Luís da Silva Bastos

    Quem vai ter a hombridade de botar este tirano do STF Xandão na cadeia pelos absurdos que está fazendo.

  16. renato neves
    renato neves

    Meu maior medo! Ter que enfrentar por qualquer motivo que venha acontecer. Única vez que estive num tribunal foi para depor sobre um assalto que sofri em minha loja onde o ladrão levou R$ 60,00, 10 pc de roupas total R$ 300,00 e meu carro R$ 14.000,00, que utilizou para fugir e por falta de habilidade bateu num poste à 1.000 metros de distância da loja (deu perda total). Contei toda verdade sem tentar prejudicar ainda mais o acusado. O fato é que o Estado preocupa-se mais com o bandido do que com a vítima. Quanto ao dinheiro e roupas foram recuperados e devolvidos no ato da abertura do BO na delegacia. Quanto ao carro eu teria que bancar um processo à parte.

  17. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Cristyan, como entender que sendo no mínimo mais de 60 milhões de eleitores centro direita, estamos acuados dessa forma por um pequeno grupo do EXECUTIVO e JUDICIÁRIO com tanto poder?
    Pensar que se tivéssemos o VOTO IMPRESSO tão massacrado pelo JUDICIÁRIO, nada disto estaria ocorrendo, já que com eleições TRANSPARENTES e AUDITÁVEIS, democraticamente estaríamos convencidos que ganhamos ou perdemos. Foi isso que ouvi várias vezes do presidente Bolsonaro, que passaria a faixa presidencial para o VENCEDOR com eleições transparentes e auditáveis.
    Cristyan, por que ninguém mais fala nisso? Vamos continuar com essa dúvida? Ninguém avalia como seria bom para o próprio eleitor fazer AUDITORIA do seu voto, sabendo que ele estará contido na URNA ELETRÔNICA e na URNA COM O VOTO IMPRESSO, para necessária AUDITORIA e eventual RECONTAGEM DOS VOTOS.

    1. R Fortes
      R Fortes

      Excelente comentário. O VOTO AUDITÁVEL deveria estar no topo da pauta do Legislativo. No entanto, seus membros se degladiam apenas por mais verbas para suprir seus interesses eleitorais, e porque não dizer em muitos casos, seus interesses pessoais, quando futuros escândalos de falcatruas os denunciarão, de novo.
      O Cangaceiro dissimulado da Câmara e sonso Omisso Pacheco do Senado seguem sendo cúmplices da destruição criminosa de nossa democracia e do estado de direito.
      Um dia a Casa cai, e com o Judiciário moralizado, vai faltar muito espaço na Papuda.

  18. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    As instituições nacionais estão sendo conduzidas, todas, por Napoleões de hospício que aplicam à margem da Constituição Federal e dos códigos de processos cível e penal tudo o que lhes vem à cabeça.
    Vivemos o pior momento desta republiqueta anunciada há 134 anos e ainda carente de proclamação.
    Não podemos dobrar nossos joelhos a estes advogados togados que se julgam acima de qualquer ordem jurídica e ditam as mais estapafúrdias medidas.
    Esta conduta tem com objetivo claro silenciar o povo que não aceita mais os desmandos que mancham nossa história colocando o país no caminho da instabilidade jurídica.

  19. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Excelente artigo. Sucinto e claríssimo. Se fosse médico, seria um exímio cirurgião: exato, extremamente preciso.

  20. Manoela Machado
    Manoela Machado

    As vezes me pergunto , pq tantos absurdos juntos , ininterruptos ?

  21. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Parabéns Cristyan Costa pela matéria. Estamos vivendo absurdos judiciários, pessoas presas e condenadas apenas por expressarem ideias, nada mais.Nossa Constituição rasgada,nosso país sem leis,a corrupção tomou o poder e de lá não sairá. O trabalho da Revista Oeste é um raio de esperança ao povo brasileiro.

    1. Cristyan Costa

      Obrigado pela leitura, cara Teresa. É um prazer saber que temos você como nossa assinante. Abraços

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