“Vivemos em uma sociedade que demoniza os cães pastores e ensina às ovelhas a arte politicamente correta de proteger os lobos que vão nos devorar.”
(Roberto Motta)
Estamos vivendo tempos completamente estapafúrdios, em que aquilo que sempre foi considerado absurdo e injusto passou a ser aceito com naturalidade como normal e justo, e o que é normal e justo passou a ser tratado descaradamente como se fosse absurdo e injusto. Essa distopia repleta de trocas de sinais não é privilégio da sociedade brasileira, antes é um fenômeno que vem se manifestando no Ocidente, na medida em que este vem aceleradamente se afastando das tradições, usos e costumes acumulados durante séculos e que permitiram o desenvolvimento do que se chama de civilização. As ideias equivocadas do progressismo estão ameaçando de morte a civilização ocidental.
É espantoso como a pauta progressista nos insta a repetir como robôs que cenouras comem coelhos, gatos adoram mergulhar em águas geladas e ideias de esquerda são corretas. Essa loucura chegou a tal ponto que é necessário dizer — o que sempre requer coragem e desperta desconfiança — que coelhos é que comem cenouras, gatos não gostam de água e a agenda do progressismo não passa de um amontoado — muito bem orquestrado e propagandeado, é verdade — de falácias que, sempre que são postas em prática, mostram-se invariavelmente fracassadas e perigosas.
Quem acompanha o noticiário do Brasil pode queixar-se de tudo, menos de tédio, porque — dia sim, outro também — toma vários sustos e depara-se com sortidas emoções. É um desfile incessante de maluquices, cada uma mais doida do que a outra, em todos os campos, na política, na economia e nos costumes. Tomemos apenas três fatos acontecidos nos últimos dias, todos relacionados à criminalidade.
O primeiro foi o assassinato do sargento da PM de Minas Gerais, Roger Dias da Cunha, de 29 anos, que deixou esposa e uma filha de cinco meses, baleado na cabeça por um criminoso com uma ficha policial repleta, mas que, beneficiado pelas leis vigentes, deixou a cadeia durante a “saidinha” de Natal e — como é comum — não retornou. Diante da comoção causada por essa situação absurda, a Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis) emitiu nota solidarizando-se com a família da vítima, mas fazendo questão de ressaltar que a Justiça, ao liberar o bandido para passar o Natal fora da prisão, agiu de acordo com a legislação (o que é verdade). Entretanto, encerrou a nota com estas palavras:
“É lamentável vincular a tragédia experimentada pelo corajoso Sargento Dias ao Juízo que concedeu benefício previsto na Lei. Afinal, o ocorrido reflete a sociedade em que atualmente vivemos, cada vez mais violenta, armada e intolerante, recheada de ataques inexplicáveis por trás das redes sociais, não enfrentando os verdadeiros motivos da violência urbana, fruto da desigualdade social, falta de oportunidades de trabalho lícito aos egressos do sistema prisional, além da falta de perspectiva de futuro para inúmeras pessoas.”
Um discurso completamente equivocado, nitidamente de esquerda e inteiramente político e, portanto, não condizente com as atribuições do Judiciário.
O segundo foi um vídeo divulgado pelo deputado federal Nikolas Ferreira no X (ex-Twitter), de uma audiência de custódia no Tribunal de Justiça de Roraima e que “viralizou” nas redes sociais, mostrando o tratamento quase carinhoso de uma juíza a um detido, em que é possível ouvir a sua ordem para que o livrassem das algemas, além de perguntar ternamente ao homem se estava com frio e mandar lhe oferecerem um café e um agasalho. Novamente, o que a magistrada fez é legal, mas, para um povo permanentemente ameaçado pela bandidagem, soou como profundamente injusto.
E, para encerrar, mais um fato espantoso. No último dia 9, o prefeito da minha amada, linda e sofrida cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro postou, também na rede X, a seguinte mensagem, marcando os perfis da Polícia Federal e do secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública:
“Atenção — recebi agora informações de que o crime organizado está pedindo dinheiro para a empreiteira responsável pelas obras do Parque Piedade aonde funcionava a antiga faculdade Gama Filho. Ameaçam paralisar as obras caso o pagamento não aconteça. Obviamente não vamos aceitar. Maiores informações com o secretário de Ordem Pública delegado @BrennoCarnevale.”
Sabe-se que o valor da obra é de R$ 65 milhões e o “pedido” foi de R$ 500 mil, feito diretamente à empreiteira. De novo, o prefeito fez o que a lei manda, mas a sensação que prevalece é de que “desencarceraram” todos os absurdos, que estão soltos por aí e passeando normalmente.
É impressionante a frequência com que fatos como os relatados passaram a ser considerados comuns em nosso país. Nosso maior problema, sem qualquer dúvida, é uma crise de criminalidade. Sim, criminalidade — e não, como a imprensa cooptada pela esquerda tenta nomear, “violência”. Como ressalta meu colega aqui em Oeste, Roberto Motta, em seu excelente livro A Construção da Maldade:
“Crime é o nosso problema mais grave. É com ele que os políticos deveriam gastar 90% do seu tempo. Não deveria haver mais recesso parlamentar, recesso do Judiciário nem qualquer feriado oficial até que parasse de morrer uma pessoa assassinada a cada dez minutos.”
Caso você ainda tenha dúvida se o Roberto está certo, é só perguntar a qualquer pessoa de bem, pobre ou rica, branca ou negra, homem ou mulher, trabalhadora ou empresária, instruída ou iletrada, do asfalto ou do morro, se ela se sente segura ao sair na rua ou, mesmo, dentro de casa. Você conhece quantos brasileiros que vivem em uma capital e que ainda não foram assaltados ou com parentes que foram vítimas de assaltos? Você sabia que o risco de um PM carioca morrer em ação é 200% maior do que o de um soldado dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial e 600% mais alto do que o de um militar na Guerra do Vietnã? Você sabia que em 2017 foram cometidos 65 mil assassinatos no Brasil, ou 31,6 crimes a cada 100 mil habitantes, e que apenas 8% de todos esses homicídios foram esclarecidos? E que muitos bandidos que os cometeram, provavelmente, já estão soltos?
O que leva certas pessoas a transgredirem leis? Desde os anos 70 do século passado a teoria econômica fornece-nos uma explicação razoável para essa importante questão, graças a importantes trabalhos desenvolvidos, principalmente na Universidade de Chicago, por Gary Becker, George Stigler, Sam Peltzman e Isaac Ehrlich. Penso que ainda tenho algum “lugar de fala” ao tratar desse assunto, pois minha dissertação de doutoramento na EPGE/FGV, na década de 1980, foi uma aplicação pioneira dessa teoria no Brasil. Em síntese, os atos criminosos podem ser encarados como escolhas em condições de incerteza, em que os criminosos potenciais avaliam o valor presente dos ganhos e dos custos esperados de seus delitos e comparam a diferença com os retornos líquidos de outras atividades, legais ou ilegais. Teoricamente, então, o aparato poderoso da teoria das escolhas pode ser aplicado também para as atividades ilegais. É a chamada teoria econômica do crime.
E é preciso ressaltar que se trata de uma guerra desigual, de um jogo vicioso, porque um dos lados é obrigado a seguir a lei, enquanto o outro, por definição, está se lixando para toda e qualquer norma de justa conduta
Para não divagar e ir direto ao que é relevante neste artigo, é suficiente dizer que, do ponto de vista da teoria econômica, o que deve ser levado em conta pelas autoridades responsáveis pela segurança para coibir o crime é, primeiro, a probabilidade de que o infrator seja descoberto e, segundo, a chance de que, uma vez descoberto, seja devidamente condenado. Ou seja, a taxa de ocorrência de determinado delito depende da probabilidade de elucidação desse delito e da punição adequada. Simples assim.
Porém, os “especialistas” em segurança pública insistem na tese de que pessoas cometem crimes porque não têm alternativas na vida, porque são exploradas, porque a renda do país é mal distribuída e, de alguns anos para cá, porque mais cidadãos de bem resolveram andar legalmente armados, já que estão “carecas” de saber que o Estado não tem sido capaz de assegurar a sua segurança. A verdade é que vivemos um caos na segurança pública, uma situação semelhante a uma guerra civil, cuja causa é essencialmente ideológica. E que esse quadro é insustentável.
E é preciso ressaltar que se trata de uma guerra desigual, de um jogo vicioso, porque um dos lados é obrigado a seguir a lei, enquanto o outro, por definição, está se lixando para toda e qualquer norma de justa conduta; um tem o seu trabalho sendo permanentemente fiscalizado, inclusive por câmeras, ao passo que o outro, além de não se sujeitar a isso, ainda conta com “especialistas”, ONGs, políticos, a velha imprensa impregnada de esquerdistas e até órgãos do Estado para defendê-lo dos malvados opressores capitalistas.
As políticas públicas, a Justiça Criminal e o próprio Judiciário como um todo passaram a ser influenciados pelas ideias da esquerda, que apontam sempre para os criminosos como vítimas de um supostamente odioso sistema capitalista que os impede de desfrutar de oportunidades para melhorar de vida.
O processo paulatino da ocupação esquerdista de todos os campos culturais, que se desenvolveu durante décadas, refletiu-se na dominação ideológica das universidades públicas, especialmente nas áreas das chamadas ciências humanas e sociais e, especificamente, nas faculdades de Direito. Daí, então, entranhou-se no Ministério Público, nas Defensorias Públicas, espargiu-se nos tribunais, nos conselhos, nas redações de jornais, nas emissoras de rádio e TV, nos palcos, nas entidades de classe e, por fim, chegou ao Legislativo, passando a determinar as leis penais. A invasão da Justiça desencadeada pela ideologia de esquerda, que vê o criminoso como uma vítima, refletiu-se nos procedimentos de aplicação da Justiça. Essa é a causa das vergonhosas taxas de criminalidade brasileiras, que produziram em 30 anos, entre outras aberrações, 1 milhão de assassinatos.
É mais do que tempo de mudar a legislação penal. Até o presidente do Senado — que muitos consideram relutante em atacar questões relevantes — reconheceu recentemente isso. Não se trata de concordar com a tese estapafúrdia de que “bandido bom é bandido morto”, porque os criminosos são seres humanos; mas também não se trata de tratá-los, como dizia Nelson Rodrigues, “a pires de leite”, como a bandidolatria vigente faz. É preciso apenas que, dentre tantos “absurdos normais”, ao menos três deles voltem a ser considerados, simplesmente, como inaceitáveis.
O primeiro atende pelo nome de progressão de regime, que dá a todo criminoso devidamente condenado à prisão o “direito” de andar nas ruas, passando para o regime semiaberto depois de cumprir uma parte muito pequena da pena que lhe foi imposta (16% para crimes não violentos e 50% no caso de violentos, se o condenado for primário) e, posteriormente, para o regime aberto, outra baita jabuticaba. Isso é justo e aceitável?
O segundo é a chamada audiência de custódia, um tête-à-tête com o juiz que deve acontecer obrigatoriamente até 24 horas depois da prisão e que na prática serve para verificar se o preso foi ou está sendo maltratado, sem menção ao crime e muito menos às vítimas e às suas famílias. No Rio de Janeiro, segundo nos conta Motta, cerca de três quintos dos presos em flagrante são soltos nessas audiências. Isso é justo e aceitável?
E o terceiro absurdo é a política de desencarceramento. É óbvio que detentos devem ser tratados com o mínimo de dignidade, mas deveria ser também gritantemente evidente que a solução é construir mais presídios e entregá-los à gestão privada, e não devolver bandidos à sociedade sem que tenham pagado pelos crimes que praticaram, com o pretexto de que as condições das penitenciárias existentes são desumanas. Isso não é justo nem aceitável.
Os brasileiros que respeitam as leis estão clamando por alterações no sistema penal. Não dá para esperar mais. É preciso “desesquerdizar” as diretrizes que vêm sendo a tônica das políticas de segurança no Brasil. Basta de banalizar o absurdo.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
Instagram: @ubiratanjorgeiorio
X (Twitter): @biraiorio
Leia também “Um ano eloquente”
Excelente artigo! Foi no alvo.
O colunista Ubiratan tá 100% coberto de razão, estamos vivendo uma política surreal, existe um paradoxo, um avesso incomensuráveis. Foram deixando o acometimento das maiores autoridades fazer um colorario dos crimes. Temos que reagir antes que seja tarde e não adianta pensar na intromissão de outros países, a questão é de soberania
Brilhante artigo!
Em dias de clássico de futebol a cidade vira uma zona de guerra, fazem de tudo, e no outro dia estão por aí como se nada tivesse ocorrido. Também sou a favor de pena de morte, para bandido condenado diversas vezes.
Mas, de nada adianta reformar código penal, enquanto tiver uma quadrilha no poder, e seu chefe na presidência. A reforma inicial é esta!
Mais um excelente artigo do Profº Iorio. Impressiontante capacidade de síntese (já que, no pequeno espaço de uma revista, não é possível aprofundar o tema). Parabéns, professor!
Um corrupto é processado, julgado e condenado por mais de 10 juízes.
A mais alta corte de justiça deste país descondena este corrupto.
Esta mesma corte através do seu puxadinho, TSE, elege este descondenado para ocupar a presidência do país.
Quando o Congresso Nacional, pisoteado e humilhado por esta mesma corte se dobra em silêncio sepulcral.
Que opções nos restam.
Qual caminho devemos seguir?
Parabéns! Incrível como o óbvio se tornou tão opaco.
Excelente e lúcido artigo sobre o absurdo da bandidolatria em que vivemos