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Agricultores conduzem os seus tratores para chegarem a Roma, enquanto protestam contra as pressões sobre os preços, os impostos e a regulamentação verde, queixas partilhadas em toda a Europa, em Bolsena, na Itália | Foto: Yara NardI/Reuters
Edição 203

A revolta dos agricultores

Produtores rurais bloqueiam a agenda verde para garantir a oferta de alimentos na União Europeia

Artur Piva
Branca Nunes
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O mar de tratores estacionados em rodovias e ruas tem inundado os países da União Europeia desde o fim do ano passado. O uso dos gigantescos veículos agrícolas como instrumento de protesto foi a forma que os produtores rurais encontraram para serem vistos. E eles estão conseguindo. 

As reivindicações podem ser resumidas em duas: 1) Eles querem a manutenção dos históricos subsídios agrícolas para o setor — que hoje correspondem a cerca de 30% do orçamento aprovado pelo Parlamento Europeu para 2024. 2) Exigem o relaxamento da chamada agenda verde — ou Green Deal —, um pacote de iniciativas aprovado pelo Conselho Europeu em dezembro de 2019, que tem como principal objetivo alcançar a neutralidade climática da União Europeia até 2050. A ideia é endurecer as regras ambientais em geral, particularmente as restrições ao uso de defensivos agrícolas.

Os protestos tiveram início no fim de 2023, na Alemanha, e se espalharam até agora por outros dez países. A lista inclui França, Bélgica, Itália, Irlanda, Grécia, Portugal, Holanda, Espanha, Polônia e Romênia.

“Pedem-nos que façamos um grande esforço e que ao mesmo tempo paguemos por ele”, disse o agricultor Pierre Lebrun, em entrevista ao Euronews, durante um protesto na Bélgica. “Pedem-nos que aumentemos a área de terras não cultivadas e que façamos muitas coisas pela natureza. Não temos qualquer problema com isso, mas alguém tem de financiar. Não somos nós que temos de pagar para ter uma produção mais ecológica.”

Os manifestantes também se opõem ao livre comércio com a Ucrânia — firmado em razão da invasão russa — e ao acordo em estudo com o Mercosul, do qual fazem parte Brasil e Argentina, dois grandes exportadores de carnes e grãos. Além de reclamarem da redução pelos governos da Alemanha e da França do subsídio ao diesel usado pelos agricultores.

“Os produtores agrícolas alemães e europeus se sentem pressionados por uma agenda ambiental irracional”, afirmou o cientista político Christian Lohbauer num artigo. “Desde os holandeses punidos pelo uso de fertilizantes nitrogenados, os irlandeses obrigados a abater 200 mil cabeças de gado para reduzir gases de efeito estufa, ou os franceses e austríacos pressionados a reduzir a área agrícola para cumprir a lei de ‘restauração da natureza’.”

Lohbauer conta que o ministro da agricultura alemão, Cem Özdemir, membro do Partido Verde, propôs a criação de uma taxa sobre a carne e produtos de origem animal, argumentando que isso poderia beneficiar os agricultores para a conversão de “estábulos favoráveis aos animais”.

“Agricultores amotinados de diversos países jogaram ovos e pedras na sede do Parlamento Europeu e queimaram pneus, feno e atiraram esterco perto do imponente prédio”, conta o economista Ubiratan Jorge Iorio, colunista de Oeste, em artigo publicado nesta edição. “Eles exigem que os políticos façam mais para ajudá-los, com a redução dos impostos e dos custos crescentes provocados pelo fanatismo climático que tomou conta das cabeças obcecadas pelas loucuras da Agenda 2030 da ONU, do Fórum Econômico Mundial e de centenas de organizações não governamentais abarrotadas de recursos e caracterizadas pela certeza arrogante e autoritária.”

Agricultores com os seus tratores participam de protesto contra o aumento dos custos de energia, em Salónica, na Grécia (2/2/2024) | Foto: Giannis Papanikos/Shutterstock
Pacto irreal

Em junho de 2022, a Comissão Europeia costurou um acordo para a proposta do Pacto Ecológico Europeu. Entre outras medidas, está a obrigação de reduzir o uso de defensivos sintéticos pela metade até 2030, além de sua proibição em algumas áreas. O tema é crítico para a Europa, uma vez que a região usa cerca de 40% do seu território para a produção agrícola e ainda assim depende de outros países para abastecer a demanda interna. Como comparação, a área destinada ao agronegócio no Brasil não chega a 30% do país.

“Uma das propostas do Green Deal é diminuir determinados defensivos em x por cento, ok, isso pode ser uma boa, mas ao mesmo tempo não dizem o que vai substituir esse pesticida”, observa Lohbauer. “A consequência é a diminuição da produção de beterraba e o aumento do preço do açúcar, que na Europa é feito principalmente desse produto.”

A pressão dos agricultores surtiu efeito. Na última terça-feira, 6, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, retirou o projeto da pauta do Parlamento Europeu. Ao avisar sobre a decisão, ela declarou que a proposta se tornou um símbolo de polarização. “Somente se os nossos agricultores puderem viver da terra é que vão investir no futuro”, disse. “E só se alcançarmos juntos os nossos objetivos climáticos e ambientais é que os agricultores poderão continuar a ganhar a vida.”

O barulho dos protestos também teve reflexo nos governos da Bélgica e da Irlanda. “Precisamos garantir que os agricultores consigam obter o preço correto pelos produtos de alta qualidade que fornecem”, disse Alexander De Croo, primeiro-ministro belga. “A prioridade deve ser a implementação das regras existentes, e não a imposição de novos regulamentos adicionais”, enfatizou Leo Varadkar, premiê irlandês.

Investimento no agro

Ao todo, a Comissão Europeia reservou 53,6 bilhões de euros para serem investidos na produção rural em 2024 (quase 30% do orçamento) — mantendo um patamar semelhante desde 2014. Uma parte da verba será aplicada através de repasses diretos (dinheiro na mão dos agricultores, a fundo perdido — o que não existe no Brasil). A cifra corresponde a R$ 285 bilhões, na cotação atual. 

Somando-se a verba do Ministério da Agricultura com os valores repassados para o setor por outros ministérios, o governo brasileiro reservou R$ 30 bilhões para medidas de apoio ao agronegócio — em torno de 0,5% do orçamento federal. Em 2022, o agro gerou R$ 2,5 trilhões — o que corresponde a 25% do produto interno bruto (PIB) do país.

Na União Europeia, o agro responde por pouco mais de 3% do PIB. Foram 537 bilhões de euros em 2022 — por volta de R$ 2,8 trilhões. É quase o mesmo valor gerado pelo agronegócio brasileiro no mesmo período — embora as verbas públicas destinadas ao setor pelo governo federal brasileiro sejam um décimo das europeias.

Especialista em agronegócio e professor da Fundação Getulio Vargas e da Universidade de São Paulo, Marcos Fava Neves explica que os subsídios europeus à agropecuária ocorrem pela incapacidade de competir com os maiores fornecedores agrícolas do planeta. “A estrutura de custo da União Europeia é extremamente mais elevada”, diz. Alguns dos fatores são os preços da terra e da mão de obra, além da falta de ganhos em escala, o que faz com que a Europa historicamente subsidie os produtores de itens como grãos, laranja, carne e beterraba — esta última destinada à indústria açucareira.

Alimentos para a Europa

Com os recursos aplicados, os países-membros conseguem garantir a oferta interna de alguns alimentos estratégicos — e ainda vender parte do excedente ao mercado externo. Nesse exemplo se enquadram o trigo e as carnes bovina, suína e de frango. 

Para outros itens, contudo, o bloco não é capaz nem de abastecer o mercado nacional. Entre esses produtos se destacam o café, o suco de laranja, a soja e o milho — dois grãos fundamentais para a nutrição de aves e suínos, as principais fontes de proteína animal dos europeus. Para evitar a falta de abastecimento, resta importar de potências alimentares, como o Brasil.

“Temos a mania de querer importar esse pensamento ambiental europeu, mesmo já tendo regras claras para a proteção do meio ambiente. Portanto, isso não faz o menor sentido por aqui”

Na prática, o investimento pesado no campo resulta numa balança comercial levemente superavitária para o agro europeu. As exportações superaram em 15% as importações. Do outro lado do Atlântico, o agronegócio brasileiro consegue faturar com as exportações quase dez vezes mais do que o país gasta com as importações de produtos do agronegócio.

“Do ponto de vista comercial, não interessa ao Brasil que os europeus tenham essa quantidade enorme de subsídios”, explica Christian Lohbauer. “Mas, mais do que isso, a briga contra essa agenda verde é ainda mais interessante para nós. Temos a mania de querer importar esse pensamento ambiental europeu, mesmo já tendo regras claras para a proteção do meio ambiente. Portanto, isso não faz o menor sentido por aqui.”

“Ao pleitear erradamente a volta do protecionismo, os agricultores europeus indiretamente estão exigindo uma reviravolta nas cada vez mais absurdas exigências ambientais estipuladas pela União Europeia, com suas metas despropositadas para a redução de emissões de gases de efeito estufa”, diz Ubiratan Iorio. “A verdade é que o grande vilão em toda essa história atende pelo nome de paranoia ambientalista ou fanatismo climático lunático.”

Uma das regras do Green Deal, por exemplo, exige que os agricultores sejam obrigados a separar uma porcentagem da terra para preservação ambiental. No Brasil, isso acontece faz tempo. Dependendo do Estado, ela vai de 20% (São Paulo) a 80% (Amazonas) da propriedade. É como se o dono de uma casa com cinco cômodos precisasse manter todos eles limpos e bem arrumados, mas só pudesse usar alguns.

Agricultores da Bélgica e de outros países europeus bloqueiam uma estrada perto do Parlamento Europeu, durante protesto contra pressões sobre preços, impostos e regulamentação verde, em Bruxelas, na Bélgica (1º/2/2024) | Foto: Reuters/Yves Herman

O Brasil é hoje o país com maior quantidade de áreas preservadas do mundo. Elas ocupam cerca de 560 milhões de hectares e cobrem 66% do território nacional. Desse total, mais de 10% são unidades de conservação; quase 14%, terras indígenas; e 16,5%, as chamadas terras devolutas e não cadastradas. Outros 25,6% — ou seja, um quarto do país — estão em propriedades rurais privadas. “É como se existissem miniparques nacionais dentro de cada fazenda”, explica Evaristo de Miranda, ex-presidente da Embrapa Territorial.

Ao imporem essa agenda, os europeus querem fazer o que o Brasil já faz: ter uma agricultura verde. Não faz sentido os brasileiros quererem importar uma série de medidas que já seguem.

Leia também “Um país que funciona”

5 comentários
  1. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Excelente artigo !

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse negócio de aquecimento global e mudanças climáticas não são problemas do homem, e sim de todo sistema solar e a forma estrutural do planeta. O que cabe ao homem é despoluir seus países para a preservação da vida. Essa agenda 2030 é uma exigência da Nova Ordem Mundial, porque eles se acham donos do planeta Terra

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelente artigo. As reservas obrigatórias de preservação, variando de 20 a 80%, é algo que precisa ser mudado.

  4. Ivanildo Augusto da Silva
    Ivanildo Augusto da Silva

    As atitudes dos Europeus servem de exemplo e de inspiração para o agro brasileiro de como lutar e defender seus direitos trabalhar e produzir em paz .

  5. Célio Antônio Carvalho
    Célio Antônio Carvalho

    É isso meus caros. O Agro brasileiro é sim competente, limpo e capaz de fazer o seu papel.
    Só ninguém atrapalhar com essas tais “agendas verdes” importadas!
    Aqui é exportação a palavra correta.
    Show de produção/produtividade. Graças às parcerias Embrapa/Agricultores/Pecuaristas/Iniciativa Privada(Empresas de Pesquisas e desenvolvimento)!

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