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Cláudia Piovezan, promotora | Foto: Reprodução/Youtube
Edição 208

Cláudia Piovezan, promotora: ‘Nenhum projeto de poder dura para sempre’

Autora de diversos livros sobre o chamado 'Inquérito das Fake News', ela afirma que a Justiça brasileira está em frangalhos, corrompida e cega pela ideologia

Loriane Comeli
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Com profunda formação católica, a promotora Cláudia R. de Morais Piovezan tem tido bastante trabalho ultimamente. Depois de escrever o livro Sereis Como Deuses: O STF e a Subversão da Justiça, ela organizou uma coletânea de artigos sobre o tristemente célebre Inquérito nº 4.781, conhecido como “das Fake News” ou “do Fim do Mundo”. Ela também escreveu, em parceria com Ludmila Lins Grilo (juíza que teve que se refugiar nos Estados Unidos), o livro Suprema Desordem: Juristocracia e Estado de Exceção no Brasil.

Sua visão sobre a atual conjuntura brasileira ganhou uma comparação poética durante uma viagem que ela fez com o marido para a Nova Zelândia, em 2014, em que encontrou a cidade de Christchurch arrasada por uma série de terremotos. “Há tempos tenho constatado que o Brasil é uma terra arrasada moral, cultural, jurídica e politicamente”, escreveu Cláudia para o site Caderno Jurídico, em 2018. “A Justiça está em frangalhos, corrompida e cega pela ideologia.”

Nesta entrevista para Oeste, Cláudia Piovezan não encontra razões para otimismo no curto prazo: “Todo o ambiente jurídico, político e cultural foi preparado para acolher o que está acontecendo, para aceitar com naturalidade a morte da Justiça e da verdade, a desumanização do adversário ideológico ou político”. Mas existe uma esperança: “É preciso que se forme uma nova classe de estudiosos, de intelectuais e de homens e mulheres virtuosos que possam formar uma nova classe política e jurídica”.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Quais são as principais ilegalidades do ‘Inquérito das Fake News’, instaurado há cinco anos?

Conforme foi abordado na obra Inquérito do Fim do Mundo: O Apagar das Luzes do Direito Brasileiro, por diversos dos seus autores, o Inquérito nº 4.781 viola o chamado sistema acusatório, ao concentrar várias posições processuais em uma única pessoa: vítima, investigador, órgão de acusação e juiz. Viola também o direito de os advogados terem acesso aos autos e, portanto, os princípios da ampla defesa e do contraditório. Viola a titularidade da ação penal pelo Ministério Público, que é o órgão a quem a investigação é dirigida e quem pode promover a ação penal ou o arquivamento da investigação. Viola o próprio Regimento Interno do STF, que prevê a possibilidade de investigar apenas crimes praticados nas dependências do tribunal; não aponta fato determinado a ser investigado, tem escopo amplo, genérico e protraído no tempo. Viola também o devido processo legal, ao investigar pessoas sem prerrogativa de foro no STF. Viola o princípio do juiz natural, já que não houve sorteio para determinar quem seria o ministro a acompanhar as investigações. Viola os princípios da imparcialidade do juiz e do juiz natural e cria tribunal de exceção, já que tanto o ministro Dias Toffoli quanto o ministro Alexandre de Moraes se colocam como vítimas dos supostos crimes apurados nos autos e, portanto, são parciais. E também porque nosso sistema não permite que se escolha arbitrariamente juízes para casos específicos, ou seja, sem observar regras prévias de competência.

Capa do livro Inquérito do Fim do Mundo: O Apagar das Luzes do Direito Brasileiro, de Cláudia R. de Morais Piovezan | Foto: Divulgação
De lá para cá, outros dois inquéritos sigilosos foram instaurados no STF (o das ‘milícias digitais’ e o dos ‘atos antidemocráticos’) e jamais concluídos. O que esses inquéritos têm em comum?

Eles têm em comum terem como investigadas pessoas que integravam o governo Bolsonaro, apoiadores eleitores daquele governo ou críticos do comportamento judicial adotado pelos integrantes do STF. Além disso, em todos eles o objeto da investigação recai, de alguma maneira, sobre a liberdade de expressão, de opinião, de reunião, sob a justificativa de coibir supostas “notícias falsas” ou supostos atos ou manifestações contrários à “democracia”. Algumas das violações que maculam o Inquérito nº 4.781 também se repetem nesses procedimentos.

As primeiras decisões contra o 8 de janeiro partiram do ‘Inquérito dos Atos Antidemocráticos’, de 2021. Há ilegalidade nisso?

Partindo da premissa de que essa afirmação é verdadeira, o que não sei porque não acompanho o procedimento, é regra prudencial da investigação criminal, seja em sede de procedimento investigatório do MP, seja em inquérito policial, que o procedimento tenha por objetivo investigar fatos certos e determinados e que guardem alguma relação entre si. Assim, de regra, fatos novos — posteriores —, que envolvam pessoas diversas, em contextos diversos, devem ser apurados em procedimentos distintos, instaurados para apurar esses novos fatos específicos. Inclusive o Código de Processo Penal possui regras de conexão e continência de competência para determinar quais fatos ou pessoas devem ou não ser investigados em um mesmo procedimento. Cada procedimento deve ter começo, meio e fim, que pode ser ou o arquivamento ou o oferecimento de denúncia, pelo Ministério Público, dono da ação penal, verificados indícios de autoria e prova da materialidade. Isso se dá porque uma investigação criminal não pode ser instrumento de monitoração da vida de indivíduos, que se prolonga perpetuamente no tempo. 

Advogados e defensores públicos que atuam no caso denunciam dezenas de ilegalidades nessas investigações e prisões. O que é mais grave nesses casos?

Como já mencionei, o mais grave, para além das nulidades procedimentais ab initio, é o impedimento de acesso dos advogados à integralidade dos atos praticados pelos investigadores e pelo julgador, o que simplesmente impede o exercício do direito de defesa pelo investigado, já que não sabe por que está sendo investigado e tampouco quais são os elementos informativos ou probatórios produzidos contra ele.

Esse conjunto de ilegalidades perpetradas pela mais alta Corte do Judiciário demonstra uma anormalidade democrática no país?

A Constituição Federal, o documento político e jurídico que supostamente visa a preservar os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros e que tem como princípios o Estado de Direito e o regime democrático, determina, no artigo 5º [cláusula pétrea], que são direitos fundamentais do investigado em processo penal a ampla defesa e o contraditório. Portanto, se alguém que está sendo investigado, processado, está sofrendo restrições em seus direitos e invasões em sua privacidade sem a plena observância desses princípios e das regras prévias determinadas pelo legislador para dar segurança jurídica ao processo promovido pelo Estado, não se pode sustentar que isso esteja dentro da normalidade democrática do país. Basta formular a seguinte pergunta: ‘A um traficante, a um ladrão, a um estuprador, a um corrupto podem ser aplicados os mesmos métodos?’. Certamente, não. Temos visto que a eles o Estado julgador tem garantido todos os direitos e até mesmo alguns benefícios nem previstos em lei ou na Constituição.

As decisões, os próprios votos dos ministros, não têm embasamento jurídico ou legal, mas são abordagens sociológicas e ideológicas

A OAB, depois de um longo período de silêncio, começou no ano passado a se manifestar contra a violação de prerrogativas de advogados, como o vazamento de conversa sigilosa e a proibição de sustentação oral. Essa reação é suficiente?

Sou naturalmente pessimista. Acho que é tarde. Todo o ambiente jurídico, político e cultural foi preparado para acolher o que está acontecendo, para aceitar com naturalidade a morte da Justiça e da verdade, a desumanização do adversário ideológico ou político, ou, se não aceita, se omite, seja por qual motivo for. Foi isso que tentei demonstrar na apresentação do livro Inquérito do Fim do Mundo, quando abordei a obra de Eric Voegelin e o caso do nazismo na Alemanha.

Por que o Senado, com atribuição constitucional para fiscalizar o STF, não tomou e não toma qualquer medida para parar com ilegalidades do STF?

Não tenho resposta para esta pergunta. Ela foge do escopo dos meus estudos, das minhas reflexões e do meu interesse. As questões políticas deixo aos analistas e cientistas políticos.

Segundo Cláudia Piovezan, o Inquérito nº 4.781 viola o chamado sistema acusatório, ao concentrar várias posições processuais em uma única pessoa: vítima, investigador, órgão de acusação e juiz | Foto: Arquivo Pessoal
Outras decisões do STF, como o desmonte da Lava Jato, a investigação de promotores e juízes que atuaram no caso e a cruzada contra conservadores, por exemplo, levam a acreditar que a Corte age com um propósito mais político e menos jurídico?

A questão não é se eu concordo, mas o que eu vejo e o que o Brasil todo vê, mas nem todos falam. Há muito tempo se tem observado que as decisões, os próprios votos dos ministros, não têm embasamento jurídico ou legal, mas são abordagens sociológicas e ideológicas. Podem até ser baseadas em escolas e teorias de Direito mais modernas ou pós-modernas, como a Escola do Realismo Jurídico ou o neoconstitucionalismo, por exemplo, mas que pouco ou nada têm a ver com Direito e Justiça, pois são repletas de subjetivismos e contorcionismos hermenêuticos e linguísticos. Essas ideias, essas teorias, como demonstrou o procurador de Justiça Márcio Chila em seu livro Globalismo e Ativismo Judicial, moldaram as pessoas desde as universidades até alcançarem os órgãos de classe, as instituições e os tribunais, ao longo dos últimos 50 ou 60 anos, e hoje rendem seus frutos porque criaram uma hegemonia de pensamento.

Qual a solução constitucional para isso? 

Parece-me que a solução não é nem jurídica nem política; poderia acontecer no campo cultural, o que requer muito tempo, porque o povo teria de se desintoxicar das ideias que permeiam o imaginário da sociedade atualmente. Além disso, nenhum projeto de poder dura para sempre. Nesse ínterim, é preciso que se forme uma nova classe de estudiosos, de intelectuais e de homens e mulheres virtuosos que possam formar uma nova classe política e jurídica. No entanto, na história do Brasil talvez isso nunca tenha acontecido, ficamos apenas em rompantes esperançosos, como recentemente nos movimentos de 2013 e nos processos da Lava Jato, pois as oligarquias sempre reagem, se reagrupam e retomam as rédeas. Enquanto o Direito brasileiro for manejado com base em “interpretações elásticas”, com “mutações constitucionais”, visando a impor pautas ideológicas, e enquanto houver uma cumplicidade entre os chefes dos Poderes e as elites jurídica, econômica, midiática e política, não vejo solução. Ao contrário, talvez a insegurança jurídica aumente cada vez mais. Como ensina o professor Ran Hirschl em seu livro Rumo à Juristocracia: As Origens e Consequências do Novo Constitucionalismo, só se alcança esse estado de coisas por meio de um concerto entre esses atores.

Leia também “Gabriela Abdalla, psicóloga: ‘Para dependentes químicos você dá limites, não dinheiro'”

5 comentários
  1. Almicre Piovezan
    Almicre Piovezan

    Parabéns, Cláudia!

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Parabéns pelo trabalho e pela coragem, Claudia Piovezan,

  3. Luiz Fraga
    Luiz Fraga

    Tenho dito aqui reiteradas vezes: o Brasil é um projeto falido, inacabado e fracassado de País-Nação. Como disse bem a doutora, as Oligarquias (historicamente) sempre se reorganizam e reagem. O projeto de colonização portuguesa no Brasil foi nefasto. O Brasil foi colonizado para não dar certo como país independente. Somos eterna colônia agro-exportadora. E o povo que se “exploda” sempre.

  4. Marbov
    Marbov

    Claudia Piovezan teve insights de realidade que poucos tiveram em tempos de falta de laicidade juridica e politica. A justica brasileira foi corrompida pelo grupo prerrogativas que se lambuzava de dinheiro dos corruptos e convenceu os iluministros que seria bom acabar com a lavajato.

  5. Pedro do Amaral Botelho de Mesquita
    Pedro do Amaral Botelho de Mesquita

    Excelente entrevista, excelente análise. Prognóstico sombrio. Inacreditável o estado de coisas a que chegamos. O fim de qualquer vestígio de ordem democrática conseguido facilmente com o apoio maciço da maioria do Congresso, do MP, da OAB, das Universidades, da imprensa e das FFAA, apoio direto ou por conivência e/ou omissão. E a maioria do povo que é contra isso fica refém, não tem como lutar contra todos esses. Etienne de La Boètie em seu “Discurso da Servidão Voluntária” (sec.XVI) afirmou que para acabar com a tirania basta deixar de alimentá-la, como uma fogueira. Esse o nosso problema: muito apoio, muita gente pondo lenha pra sustentar esse fogo tirânico.

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