Os milhares de fãs sentados nas arquibancadas da T-Mobile Arena, em Las Vegas, na noite de 13 de abril, assistiram a uma cena incomum em eventos do Ultimate Fighting Championship, maior empresa de promoção de lutas de artes marciais mistas (MMA, na sigla em inglês) do mundo. Naquele dia, o lutador brasileiro Renato Moicano empolgou a plateia não apenas durante a luta, encerrada com nocaute brutal sobre o norte-americano Jalin Turner, mas também depois do combate.
Na entrevista pós-vitória, Moicano antecipou-se ao comentarista Joe Rogan, tomou-lhe o microfone das mãos e proferiu o discurso que o alçou ao patamar de celebridade no MMA: “Amo a América. Amo a Constituição. Amo a Primeira Emenda. Amo armas. Amo propriedade. Se você se preocupa com seu país, leia Ludwig von Mises e As Seis Lições”.
O discurso ecoou rapidamente — pelo inusitado e pela contundência. No Google, por exemplo, as buscas por “Renato Moicano”, “Mises” e “As Seis Lições” aumentaram em mais de 100% desde 13 de abril. O vídeo circulou no Twitter, no Instagram, no TikTok e no Facebook. Quem tentou comprar o livro sugerido pelo lutador brasileiro frustrou-se: os estoques de diversas livrarias zeraram, em razão da alta demanda.
Moicano, que alcançou o décimo lugar no ranking de peso-leve do UFC e se aproximou da disputa pelo cinturão, capitalizou os frutos da fama. Criou um podcast (o Show Me The Money) e tornou-se amigo de políticos, economistas e jornalistas, com quem conversa diariamente sobre filosofia, investimentos e história. Além disso, rompeu as barreiras do MMA.
Honra, coragem, solidariedade, justiça
Renato Carneiro, o Moicano, nasceu em 21 de maio de 1989, em Brasília. Filho de funcionários públicos, o lutador relatou ter visto na capital federal uma espécie de sociedade de classes. “Para quem está no Plano Piloto, Brasília é linda”, ressaltou. “As cidades-satélites vão lá e servem a nobreza. Quem não é político nem concursado não presta. É tratado como servo.”
As declarações de Moicano chamam atenção sobretudo em virtude de seu histórico familiar. João, o pai, é concursado no Senado Federal. Trabalha ali há décadas. Ideologicamente, alinha-se à esquerda. Defende programas de redistribuição de renda, investimentos em empresas nacionais, taxação de grandes fortunas e cobrança de impostos para o financiamento de obras públicas. Já a mãe, Maria, era funcionária da Caixa Econômica Federal.
Essas referências marcaram a infância, a adolescência e o início da vida adulta de Renato, que virou Moicano no início dos anos 2000. Naquele ano, mudou-se para o Rio de Janeiro e conheceu o jiu-jítsu, histórica arte marcial japonesa. Apaixonou-se pela luta, absorveu os princípios éticos das artes marciais — honra, coragem, solidariedade, justiça — e venceu em solo brasileiro antes de conquistar a América.
‘Menos Marx, mais Mises’
Até 2014, ano de despedida do Brasil, Moicano venceu nove de suas dez lutas profissionais. Jamais sofrera uma derrota. Esse desempenho lhe rendeu um convite do UFC, que o mantém desde aquela época entre os principais lutadores brasileiros da organização.
Do lado de fora do octógono, o país vivia em ebulição. As manifestações do Movimento Passe Livre em 2013, que levaram às ruas milhões de pessoas, despertaram no lutador o interesse por política. Esse sentimento se intensificou em 2016, quando os brasileiros tomaram gosto pela democracia e clamaram pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Na Avenida Paulista, principal artéria da cidade, manifestantes contrários à petista empunhavam cartazes com a frase “Menos Marx, mais Mises”.
Moicano viu de longe o ressurgimento da direita no Brasil, visto que já estava morando nos Estados Unidos. Contudo, a distância não o afastou dos valores liberais que floresciam em terras brasileiras. Pelo contrário. O lutador encontrou justamente em solo norte-americano o terreno fértil para plantar as sementes que lhe renderiam frutos neste mês de abril.
‘Skin in the game‘
Foi o amigo de infância e economista Gabriel Jorgensen que lhe introduziu as ideias de liberdade. Indicou livros, cursos e vídeos. A partir desse contato, Moicano conheceu diversos autores: Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Milton Friedman, Nassim Nicholas Taleb e Roberto Campos, entre outros.
Esse conhecimento teórico foi irrigado com amargas experiências práticas: Moicano descobriu que parte de seu salário no UFC sairia do seu bolso para ir para os cofres do governo. “Que palhaçada é essa?”, pensou o lutador. “Nunca havia passado pela minha cabeça esse tipo de cena. É muito fácil você querer mais imposto, quando não tem o skin in the game, quando não está envolvido. Quando entende que o dinheiro sairá de algum lugar, você muda. Alguém paga por isso.”
“Skin in the game”, expressão cunhada por Nassim Nicholas Taleb, pode ser traduzido como “pele em jogo”. Nesse contexto, seria algo como “arriscar a própria pele”. Ou, na linguagem popular, “dar a cara a tapa”. É o que Moicano faz desde 2000, quando decidiu lutar profissionalmente MMA. Também foi o que fez em 13 de abril deste ano, quando clamou por liberdade em um mundo cada vez mais refém do autoritarismo. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O senhor planejou o discurso no UFC 300?
Não. Quando comecei a lutar, não queria dinheiro. Queria apenas ser reconhecido, ter fãs. Queria ter legado. Ver as pessoas falarem que o Moicano é bom. Mas, com o tempo, percebi o seguinte: quando você ganha, as pessoas gostam de você. Quando perde, não gostam. Então, as pessoas não fazem diferença. Eu estava vencendo lutas na categoria de 66 quilos, fiquei em quarto no ranking. Precisava vencer mais uma luta para disputar o cinturão, mas perdi. Antes dessa luta, me ligavam todo dia para elogiar. Depois, acabou tudo. Me tornei a pior pessoa do mundo. Em todo lugar é assim. É da natureza humana. As pessoas querem se associar com quem ganha. A partir daí, mudei o discurso: “Moicano wants money!”. Não sei por que falei aquilo.
“Brasília é algo soviético. A arquitetura é assim. Eu achava Brasília linda, mas mudei. Vejo política em tudo”
Os lutadores do UFC conversam sobre economia, filosofia, história?
Todo dia eu chegava à academia e perguntava sobre algum conceito econômico. Os caras já xingavam. Recentemente, uns lutadores queriam criar uma lei antitruste no UFC, porque acusavam a organização de monopólio. Mas são os lutadores que assinam contrato. Eles são responsáveis. Vou defender qualquer empresa privada que seja boa, gere empregos e seja decente em suas práticas. Falo isso há alguns anos, mas a galera não gosta.
O Brasil é muito diferente dos Estados Unidos?
Nos Estados Unidos, a economia é muito aquecida. É a maior do mundo. As pessoas gastam mais. Parece-me que, no Brasil, é mais difícil empreender. Nos EUA, 30% investem na bolsa. No Brasil, são apenas 4%. Não há motivação para investir.
O senhor tem uma relação dúbia com Brasília. Por quê?
Brasília é algo soviético. A arquitetura é assim. Eu achava Brasília linda, mas mudei. Vejo política em tudo. Desço em Brasília, vejo os blocos de concreto. Não há integração. Tudo é setorizado. Isso é claramente uma cidade planejada. Alguns moram aqui, outros lá. É uma bolha. É criada para mandar um recado de que, quando você chegar lá, perceberá a imponência do local. É você contra o Estado. Você se sente um grãozinho na Esplanada. Isso é política. É simbólico. Gosto de Brasília pelo fato de ter esporte, ser arborizada. Mas a qualidade de vida lá é impulsionada pelo dinheiro federal, pelos altos salários do funcionalismo público, pelo mais alto IDH do Brasil, pela polícia mais bem paga do país. Para quem está no Plano Piloto, Brasília é linda. As cidades-satélites vão lá e servem a nobreza. Quem não é político nem concursado não presta. É tratado como servo.
Isso ocorre nos Estados Unidos?
Há pobres e ricos nos EUA. Mas, em Brasília, os caras parecem serviçais. O sujeito é tratado como servo. Existe ali uma sociedade de classes. Há a nobreza, formada por políticos e concursados, e o restante da população. Quando fui a Brasília, vi pessoas capacitadas academicamente, mas sem emprego. Queriam passar em concurso público. Tive um dissabor. Nos EUA, comecei a entender que, para ter uma democracia forte, a lei precisa ser cumprida. É a regra do jogo.
No Brasil, quais autores o influenciaram?
O filósofo Olavo de Carvalho teve muita influência nesse processo. Sei que é bastante demonizado, perseguido. Mas, se você for assistir aos vídeos dele, ler a obra dele, vai ver essa questão do inconsciente coletivo permeado de pensamento de esquerda. São “os benefícios sociais”, “a ajuda ao próximo”, “o ser humano nasce bom e a sociedade o corrompe”.
Quando ocorreu seu ‘despertar’ econômico?
Quando entendi o que era reserva de valor, o que era moeda, o que era dinheiro. Por que preferem o dólar? Por que a moeda norte-americana é melhor que a brasileira? Por que o ouro é melhor que o real? É isso. Vi que o governo imprime dinheiro sem parar. Em geral, até mesmo os cidadãos letrados não ligam os pontos. Como você quer austeridade fiscal, se o governo promete mais concursos públicos? Haverá naturalmente mais gastos, mais taxação, impostos. O déficit fiscal está aí direto. Virei aquele cara chato, né? O pregador de liberalismo. “Oh, lá vem o chatão!” Você vira um pastor dessa ideia.
Qual é a origem da sua família?
A família da minha mãe veio do Piauí, não tinha condições. Tentaram incutir na cabeça da gente que a faculdade salvaria nossa vida, que o serviço público seria a salvação. Na verdade, o que vejo hoje é que todas essas pessoas entram nessa vida de universidade e não transferem esse conhecimento para o mercado de trabalho real. Acabam se especializando em assuntos totalmente nichados, em que o mercado não vê valor.
Como você vê a atual situação do Brasil?
Como filho de funcionário público, com visão mais à esquerda, intervencionista, percebi que vejo a vida de maneira diferente. Não penso que devemos proteger os “campeões nacionais” contra os “imperialistas” — esses tipos de bordões esquerdistas. Parei de pensar assim quando cheguei aos Estados Unidos. Vi outras visões de mundo. Vivi em Brasília, onde todos nascem iguais e agem da mesma forma. As ambições são servir mais ao Estado, ajudar a deixar o Estado maior. O sintoma de Brasília é este: viver numa sociedade que pede mais imposto, mais regulação. Não abrem os olhos para a possibilidade de que, quanto menor o Estado, maiores as liberdades individuais.
Qual legado você pretende deixar para os brasileiros?
Se eu puder ensinar alguma coisa para o meu filho, será o que é dinheiro. Você tem de ensinar não só a poupar como também a investir. Cometi o erro de ganhar dinheiro primeiro, para depois investir. Precisa investir sempre, mesmo que pouco. O importante é o aprendizado. No Brasil, não se fala nisso. Por que o judeu prospera? Ele aprende a lidar com dinheiro desde pequeno. Sabe administrar comércio. Enquanto alguém normal vê uma esquina, o judeu percebe um local para abrir comércio. Quanto mais vejo isso, mais acho certa a liberdade. Tenho meus princípios. Hoje, minha ideia é mais libertária. Menos Estado, mais poder para o indivíduo. Menos imposto. Mais liberdade econômica.
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Adorei a entrevista. Parabéns ao Moicano.
Excelente matéria, não conhecia o Renato Moicano.
Tenho a mesma visão dele, do mundo paralelo de Brasília. Tenho tanta aversão que já viajei diversos locais pelo país mas nunca tive interesse em Brasília. Um oásis no meio do nada, criado justamente para a ”elite” não sofrer pressão popular.
Gostei da cabeça bem esclarecida desse esportista, só não gosto desse esporte que pratica, verdadeiro massacre do adversário. Não entendo como é permitido se briga de animais (cachorro, galo) é proibido. Considero o boxe mais disciplinado e com maior proteção aos lutadores.
Já conhecia Elon Musk que é uma personalidade mundial e um dos mais criativos empresários da atualidade.
Não conhecia Renato Carneio porque na atualidade não acompanho esportes com a mesma frequência que fazia há 30 anos.
Ganhou mais um fã pela clareza de suas ideias mesmo tendo raízes familiares progressistas que deixam ninguém progredir.
O Moicano tem razão, mas investimento de 4% é que 96% quer comer primeiro
O Moicano merece os parabéns pela lucidez de seus conceitos, apesar de ter sido criado em casa de funcionário publico
“Menos Estado… Menos imposto” é isso mesmo.
“Fix the money” e Bitcoin fixes this.
Tenha sua própria custódia.
Nunca assisti nenhuma luta de MMA, mas virei fã dele, deu uma aula num momento extremamente oportuno com Elon Musk mostrando o que está acontecendo no braziu…
Nunca poderia imaginar que um lutador de MMA desse uma aula de economia como essa ! Meus parabéns a ele e a Revista Oeste por publicar ! Resido em Brasília há 45 anos (sou carioca) e ele caracterizou corretamente o povo que aqui vive !
Parabéns pela matéria elucidante.Assuntos da hora e que podem fazer os jovens repensarem. Que a Oeste traga mais matérias assim que não sejam somente assuntos do campo político do dia-dia.