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Ilustração: Shutterstock
Edição 217

A inteligência artificial invade o mundo real

A IA já está mudando muito as atividades humanas. E essas mudanças estão apenas começando

Dagomir Marquezi
Rachel Díaz
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Aconteceu mais cedo do que se imaginava. A inteligência artificial (IA) saiu do gueto dos especialistas e hoje ocupa um espaço cada vez maior na vida das pessoas comuns. Aplicativos à base de IA se multiplicam e se popularizam, tornando-se no mínimo um mecanismo mais sofisticado de busca — os “novos Googles”. 

As previsões apocalípticas sobre os perigos da inteligência artificial continuam aparecendo, mas estão cada vez mais esparsas. O medo inicial está dando lugar à aceitação. O empresário Elon Musk, um dos que haviam acendido o alerta dos perigos que a IA pode representar para a humanidade, agora declara com tranquilidade que “teremos uma IA mais inteligente do que qualquer ser humano, provavelmente no final do próximo ano”. E que vai ultrapassar a inteligência coletiva dos homens em cinco anos. 

O espantalho da perda de empregos não mostrou sua cara mais feia até agora. Pelo contrário. Segundo matéria do Wall Street Journal, o J.P. Morgan, maior banco do mundo, hoje emprega mais de 2 mil experts em inteligência artificial. O banco aposta numa completa reformulação dos processos de trabalho. As pessoas estão aprendendo que, se você aprende a usar a IA, sua chance de ganhar a vida cresce. 

A inteligência artificial já está mudando muito as atividades humanas. E essas mudanças estão apenas começando. A seguir, vamos ver algumas dessas transformações em áreas profissionais específicas.

Medicina

Este é um dos campos nos quais a IA está avançando mais. A inteligência artificial permite ir além do que a medicina já foi. As principais conquistas se refletem no monitoramento dos pacientes, nos diagnósticos e no desenvolvimento de novas drogas.

Algoritmos conseguem “enxergar” o que os olhos humanos não podem ver. Num eletrocardiograma, a IA pode diagnosticar um possível infarto com mais exatidão e rapidez, fatores fundamentais para o tratamento de emergência. Em análises como dermatoscopia e colonoscopia, instrumentos de inteligência artificial conseguem detectar células potencialmente cancerosas com muito mais exatidão do que os olhos humanos. O mesmo ocorre em análises patológicas — detalhes que passavam despercebidos agora podem ser analisados com muito mais antecedência.

No Brasil, uma ferramenta desenvolvida pelo Hospital Israelita Albert Einstein e o Massachusetts Institute of Technology (MIT) agrega mais de 24 mil estudos de radiografia de tórax, que contam com 40 mil imagens de pacientes. Isso permite que clínicos gerais que atuam em regiões distantes ou que não possuem médicos radiologistas façam o diagnóstico dos pacientes. 

Além disso, em Manaus, a instituição, que é pioneira em IA desde 2016, abriu o Centro Einstein. O Centro usa os chamados modelos de linguagem grandes (LLM), à base de IA, que buscam a detecção precoce de gravidez de risco. Um dos procedimentos é a identificação de leishmaniose através de fotos dos pacientes.

Ainda entre as instituições brasileiras, a maior utilização da IA está na administração hospitalar e no melhor atendimento aos pacientes. O Hospital Sírio-Libanês conseguiu diminuir o tempo dos desconfortáveis exames de ressonância magnética. A Beneficência Portuguesa está usando dados de comparação com 200 mil biópsias para conseguir um grau de acerto de 97% na localização de tumores cerebrais. 

Outra utilização prática da IA na medicina consiste em manter um histórico de atendimento de cada paciente. Esse é um problema que nós conhecemos bem: a cada médico que consultamos, temos que repetir todos os diagnósticos e tratamentos anteriores. A cada consulta, essa memória vai ficando cada vez mais falha em seus detalhes.

A revista TechLife News publicou um artigo sobre um aplicativo à base de inteligência artificial que grava as recomendações do médico, transcreve e organiza as informações — tudo automaticamente. Dessa forma, o próximo médico ou cirurgião vai saber exatamente quais são as condições do paciente.

Claro que esses aplicativos podem cometer erros. A TechLife cita o caso de um usuário que estava com o nariz escorrendo (por causa de uma gripe), e o aplicativo de IA sugeriu que ele tinha um “vazamento de fluido cerebral”. Mas erros desse tipo são exceções, e a inteligência artificial aprende com seus erros.

Ilustração: Gerada por IA/Revista Oeste/Freepik
Educação

A educação tradicional está sendo confundida cada vez mais com a atividade de doutrinar. Não só não ensina, como espalha a ignorância.

A inteligência artificial pode ajudar muito numa renovação da educação por causa de sua objetividade não ideológica. A revista britânica The Economist citou o exemplo de um aplicativo desenvolvido no Quênia por um empreendedor local chamado Tonee Ndungu. O aplicativo se chama Somanasi (“aprenda comigo”).

É um chatbot voltado para crianças que queiram aprender o ensino básico. Ao contrário dos professores humanos, o Somanasi funciona 24 horas por dia e fica à disposição dos alunos. Adapta o método de ensino (de aritmética, por exemplo) ao interesse de cada usuário. 

Iniciativas estão sendo tomadas também no Brasil. Uma pesquisa realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul prevê que “50% das escolas do país incorporarão a inteligência artificial em suas rotinas” nos próximos cinco anos. 

Programas de IA respondem a perguntas, planejam cursos, avaliam alunos, sugerem novos caminhos de ensino, criam gráficos, se comunicam em dezenas de línguas, corrigem textos, estão permanentemente à disposição, dia e noite, sem férias ou greves.

A Universidade de San Diego, na Califórnia, deu 43 exemplos de uso de IA na educação. Alguns deles:

  • Organização de horários
  • Comunicação entre pais e professores
  • Uso de games para efeitos educativos
  • Detecção de plágio em teses e trabalhos
  • Transcrição de palestras
  • Uso de linguagem de redes sociais para coordenação de classes
  • Pesquisa acadêmica

São instrumentos que apontam para uma prática de educação tradicional. As pessoas estudarão cada vez mais de sua casa, de forma autônoma, buscando instrumentos específicos para seus interesses. A socialização poderá ocorrer (e já ocorre) de outras formas, fora da escola.

A inteligência artificial oferece os instrumentos perfeitos para essa nova fase do ensino. Claro que certas profissões (medicina, engenharia, física ou biologia, por exemplo) vão precisar de ensino presencial e orientado em laboratórios e centros educacionais. Mas a grande maioria dos campos de estudo para a formação profissional não precisa mais juntar as pessoas numa sala para aulas genéricas e impessoais.

Ilustração: Gerada por IA/Revista Oeste/Freepik
Engenharia

O site técnico Analytics Insight vai direto ao ponto: “A inteligência artificial revolucionou o cenário da engenharia, impulsionando a indústria para uma era de inovação e eficiência incomparáveis”.

O site cita seis maneiras como a IA mudou o campo da engenharia para melhor:

  1. Design e simulação inteligentes: agora os engenheiros podem testar e otimizar seus produtos e descobrir falhas antes mesmo do primeiro protótipo. A inteligência artificial “testa” os projetos ainda no computador em situações complexas, e o design do produto pode ser modificado antes que ele se materialize.
  2. Manutenção preditiva: a manutenção dos produtos é feita antes que eles quebrem. “Algoritmos de IA podem prever falhas de equipamentos e sugerir cronogramas de manutenção analisando dados de sensores em tempo real”, segundo o artigo da Analytics Insight.
  3. Sistemas autônomos: sem a inteligência artificial não haveria, por exemplo, os veículos sem condutores. A indústria dos drones também não cresceria tanto nem ofereceria produtos tão seguros.
  4. Processamento de linguagem natural (PLN) para documentação: o PLN é o “tradutor” entre a linguagem dos computadores e a linguagem humana. A IA está facilitando essa tradução, fazendo com que os processos sejam mais rápidos e os problemas sejam resolvidos mais rapidamente.
  5. Controle de qualidade e inspeção: nesse caso, a IA funciona como um inspetor automático, detectando defeitos que os olhos humanos não conseguem enxergar. Consequentemente, os problemas e recalls diminuem.
  6. Avaliação de impacto ambiental: algoritmos transformam decisões de impactos ambientais em dados concretos e objetivos. O que afasta decisões baseadas em posições demagógicas e militantes.

A inteligência artificial é usada na engenharia civil para, por exemplo, simular terremotos ou tempestades, reforçando a estrutura das construções. A engenharia de tráfego também usa a IA para otimizar o fluxo dos veículos em tempo real.

Ilustração: Gerada por IA/Revista Oeste/Freepik
Administração pública

Num país em que “administração pública” costuma ser sinônimo de cabide de empregos, a IA chega para uma profunda revolução.

Um exemplo disso é a pequena Estônia, com seu 1,3 milhão de habitantes. Sua administração, o sistema de saúde pública (e até as eleições) são movidos por aplicativos em celulares. Não há filas em repartições ou funcionários burocráticos. O país é administrado com lógica e eficiência.

Alguns dos mesmos princípios usados na engenharia podem ser aplicados na administração pública. Assim como a inteligência artificial pode simular um terremoto no projeto de um edifício, uma cidade pode ter condições extremas simuladas antes que aconteçam. É o caso da terrível tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul. Um dia, administradores poderão projetar situações como essa e ao menos prever providências para minimizar as consequências de uma catástrofe futura.

Edilberto Carlos Pontes Lima, presidente do Instituto Rui Barbosa, escreveu em um artigo no começo do ano que “a IA pode identificar áreas de risco potencial, permitindo que os Tribunais de Contas adotem medidas preventivas em vez de apenas corretivas. Isso representa uma mudança de paradigma, passando de uma abordagem reativa para uma proativa na fiscalização dos recursos públicos. No entanto, para que a IA cumpra seu potencial, é necessário investimento em tecnologia e capacitação profissional. Os servidores públicos precisam ser treinados para trabalhar com a IA, interpretando resultados e tomando decisões informadas”.

“Além disso”, segundo Edilberto Lima, “a IA pode melhorar significativamente a transparência e a responsabilidade na administração pública. Sistemas de IA podem rastrear o fluxo de recursos públicos em tempo real, oferecendo uma visão clara de como o dinheiro está sendo gasto. Isso não só auxilia na prevenção de fraudes e corrupção, mas promove a confiança pública na gestão dos recursos”.

Tráfego aéreo

Controlador de tráfego aéreo é uma profissão extremamente estressante. Uma reportagem do New York Times no fim de 2023 revelou que os controladores costumavam trabalhar bêbados ou caíam no sono em momentos de rush no Aeroporto JFK.

Já existe um consenso de que a inteligência artificial não vai substituir totalmente os controladores humanos. Mas, naturalmente, vai se tornar cada vez mais um grande auxiliar no trabalho de coordenar pousos e decolagens de aviões lotados de passageiros.

Programas à base de IA “pensam” mais rapidamente do que os humanos. Fazem previsões precoces de possíveis problemas. Podem evitar muito do terrível estresse que destrói os controladores dia após dia, num ambiente em que qualquer falha pode gerar centenas de mortes.

Mas alguns casos necessitam dos humanos. Uma matéria da revista The Week mostra um caso típico: na hora de pousar, um piloto baixa os trens de aterrissagem. Mas um defeito no painel de controle não permite que ele tenha certeza de que as rodas baixaram de verdade. O procedimento é o avião sobrevoar a pista a uma baixa altitude para que o controlador confira se o trem baixou ou não. Computadores não conseguem fazer isso — ainda.

Recursos de IA também são usados na complexa rotina de lidar com atrasos de voo e conexões. Um aplicativo chamado ConnectionSaver possibilita que passageiros saibam o que está acontecendo se, por exemplo, um voo é adiado por alguns minutos para que uma conexão chegue a tempo. Coordena o fluxo diretamente com os passageiros.

Ainda segundo a reportagem do New York Times, uma empresa como a Alaska Airlines usa um sistema de IA duas horas antes de cada voo, que processa “uma quantidade de informação que nenhum cérebro humano pode processar” — detalhes meteorológicos, possíveis fechamentos de espaço aéreo, outros aviões em trânsito. Esses cálculos a cada voo resultaram na economia de preciosos minutos de voo — e ao final de um ano a Alaska Airlines havia economizado 1,9 milhão de litros de combustível. 

Ilustração: Gerada por IA/Revista Oeste/Freepik
Atendimento ao cliente

Um bom exemplo é dado por Meagan Meyers, gerente de marketing da Service Cloud Einstein, especializada em uso de IA para atendimento ao cliente: “Você deseja devolver um par de sapatos e precisa de ajuda. Inicia um chat online com um agente, mas espera 30 minutos por uma resposta. Com a IA de atendimento ao cliente, você obtém uma resposta personalizada em segundos”.

Meyers coloca como um dos segredos da eficiência da IA no atendimento o acesso imediato aos dados do cliente. Em uma fração de segundo o bot sabe com quem está falando, onde ele reside, qual é a língua com a qual se comunica e quais são seus costumes de compra.

Além disso, o atendimento por IA pode analisar o histórico de um cliente em alta velocidade — suas compras anteriores, as reclamações que chegaram por e-mail, os possíveis elogios e os problemas enfrentados no passado. Tudo isso no tempo que um atendente humano leva para dizer “um momentinho, por favor”.

Programas de IA também analisam rapidamente o panorama de queixas de todos os clientes para que os problemas de uma empresa sejam resolvidos de uma vez por todas, e não caso a caso. 

Segundo a revista Forbes, o atendimento aos clientes é um dos dez trabalhos mais estressantes do mundo. A inteligência artificial pode fazer com que profissionais da área trabalhem em tarefas menos estressantes e sejam mais produtivos do que no contato pessoal com clientes furiosos.

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Empreendedorismo

“Sistemas como o ChatGPT, da OpenAI, o Bing, da Microsoft, e o Bard, do Google, podem ajudar em quase todas as etapas da concepção de uma startup”, escreveu Bart Ziegler para o Wall Street Journal. “Desde ter uma ideia e testá-la até realizar pesquisas de consumo e criar um plano de marketing.”

Esses sistemas facilitam tanto o planejamento da vida de um empreendedor que a parte mais difícil se torna cumprir suas metas. Basta dizer o que você pretende — e em segundos o plano aparece pronto, organizado, passo a passo.

O artigo de Ziegler para o WSJ especifica algumas dessas capacidades:

  1. Geração de ideia: um empreendedor pode perguntar para identificar os problemas que os clientes estão enfrentando em certa área de serviços. Os sistemas de IA já foram alimentados com uma vasta quantidade de informações para identificar as oportunidades que existem para ser exploradas. Um diálogo com a IA pode levar com certa facilidade à resposta que todos querem — o que está faltando no mercado e tem um grande potencial?
  2. Análise da competição: a mesma massa de informação acumulada pela IA vai orientar o empreendedor a evitar caminhos que deram errado.
  3. Teste de conceito: o empreendedor pode usar seu serviço de IA para simular um suposto cliente que vai ser sua “cobaia” virtual. 
  4. Criação de pitch: pitch é o nome dado ao momento em que o empreendedor vai oferecer sua ideia a um investidor. Pode ser um momento tenso — quais aspectos do empreendimento devem ser destacados? Qual linguagem deve ser usada? A IA pode ajudar com várias versões possíveis desse pitch para que você escolha a melhor.
  5. Divulgação da nova empresa: em alguns minutos um sistema de IA faz pesquisa de marketing, cria um logo, planeja um site e uma campanha para as redes sociais. Basta pedir o que você quer da maneira correta. E apertar o ‘Enter’.

@dagomir
dagomirmarquezi.com

Leia também “Taiwan: a ilha que sabe o que quer”

2 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O mais importante e urgente para o Brasil é colocar a IA no serviço público para tirar essa quantidade enorme de parasitas e um algoritmo para o setor financeiro seguindo as verbas, como e onde serão aplicadas, mas os algoritmos deve andar com um número muito grande de algemas

    1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
      Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

      Concordo.

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