Pular para o conteúdo
publicidade
Força Aérea Uruguaia | Foto: Reprodução/Redes Sociais
Edição 218

A ideologia prevalece perante a tragédia

Embora o governo do Rio Grande tenha sido amplamente favorável à presença da aviação militar uruguaia, a ajuda foi rejeitada pelo governo federal do Brasil

Gustavo Segré
Javier Bonilla
-

Não é preciso muito critério para saber que, em caso de enchentes e perante a necessidade de resgate de vítimas, existem algumas coisas que nunca sobram: comida, medicamentos, voluntários e lanchas. (Agregamos drones, capazes de sobrevoar as regiões atingidas em busca de quem ainda precise de resgate: humanos ou animais.)

O Estado do Rio Grande do Sul e o Uruguai compartilham quase 1,1 mil quilômetros de fronteira. Em sua maioria fronteiras secas e — fenômeno raro no mundo — com cidades geminadas, mesmo aquelas atravessadas por um curso de água, como Artigas/Quaraí. A expressão máxima dessa geminação fica na totalmente conurbada Rivera/Santana do Livramento, sem linha divisória perceptível. 

O bilinguismo, ou “portunhol”, domina a região. A única canção de amor dedicada às mulheres uruguaias é gaúcha e se chama Castelhana. As rádios também são mistas, sejam as antigas uruguaias anglo-saxônicas que chegam ao Porto de Rio Grande, sejam as brasileiras que chegam a quase todo o interior do Uruguai. Formam gostos musicais e até cantores uruguaios adotados como brasileiros, caso notório do Gaúcho da Fronteira, nascido como Heber Artigas, em Laureles, Tacuarembó.

Bento Gonçalves casou-se com a uruguaia Cayetana. Gaspar da Silveira Martins, o último grande líder gaúcho do final do século 19, muito estimado por dom Pedro II, nasceu e morreu no Uruguai. Tão certo quanto isso, até 1924, onde os descendentes dos míticos irmãos Aparicio e Gumersindo Saraiva — líderes da Revolução Federalista de 1893 — assistiram, apenas pelo saque, ao último confronto armado no Rio Grande, gaúchos e gaúchos misturados nos levantes em ambos os lados da fronteira.

Solidariedade espontânea

O Rio Grande do Sul está no inconsciente coletivo da maioria dos uruguaios como um “bairro vizinho”…Talvez isso explique, em parte, a solidariedade espontânea. Como daqueles salva-vidas uruguaios dos balneários, que, sem ninguém perguntar, foram até Guaíba ou Eldorado do Sul para ajudar. Ou das crianças do Colégio Teresiano que produziram, apenas com lápis e papelão, um audiovisual eficaz e muito emocionante pedindo ajuda aos alagados. Ou dos jogadores do clube de futebol Nacional, que entraram em campo com uma grande placa dizendo “Fuerza Río Grande”.

Nesse contexto em que, se Rio Grande do Sul espirra, o Uruguai pega gripe, o ministro da Defesa Nacional, Armando Castaingdebat, decidiu — talvez fosse impensável não fazê-lo — colocar as Forças Armadas Uruguaias totalmente à disposição do povo e do governo gaúcho.

Armando Castaingdebat, ministro da Defensa Nacional do Uruguai | Foto: Uruguay Presidencia

Embora não sejam organizações militares volumosas ou enormemente equipadas, possuem uma vasta experiência em missões humanitárias. Pelo menos desde 1949, quando o melhor da medicina nacional se reuniu para, utilizando um C-47 da então Aeronáutica Militar e um Douglas DC-2 da Pluna, ajudar o Equador durante o terremoto de Ambato. Ou em 1970, no Peru, quando dois C-47 da Força Aérea Uruguaia, além de transportarem pessoal humanitário e de saúde, a pedido do governo local (só assim é possível), realizaram vários voos internos de solidariedade. Ou em 1972, no terremoto de Manágua. Mais tarde, em 1999, no terremoto na Armênia (Colômbia), um Hércules da FAU, além de transportar itens de socorro para a região afetada, teve que permanecer voando em território colombiano, a pedido do governo.

O voo do Hércules

Nesse contexto, e com seus helicópteros participando de Missões Operacionais de Paz na África, de 2003 até anteontem (Etiópia/Eritreia, de 2003 a 2008, e Congo, recentemente concluída), o Uruguai colocou à disposição do Rio Grande do Sul um helicóptero Bell 212. O Bell chegou no começo da tragédia à cidade de Santa Maria, com todo tipo de itens que pudessem ser necessários ao seu alcance. No mesmo momento, o ministro Armando Castaingdebat decidiu enviar também, de acordo com o governo do Rio Grande do Sul, dois drones Matrice 300 RTK junto com três barcos para resgate.

Eles foram carregados na Base Aérea nº 1 (em Carrasco) a bordo do Hércules KC 130H FAU 594 logo no início das enchentes, para partir no domingo 5 de maio, nas primeiras horas da manhã. As autorizações de voo não chegaram, nem na segunda nem na terça seguinte, quando em Brasília o representante do governo gaúcho junto ao Executivo Federal, Henrique Pires, compareceu à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Ele mesmo, no entanto, agradecendo a ajuda recebida do Uruguai, entre outros doadores, manifestou que necessitava “do apoio para que o Itamaraty pudesse liberar a entrada de barcos e dos equipamentos oferecidos pelo Ministério da Defesa do Uruguai”. Mais tarde foi autorizado o voo do Hércules, porém sem barcos nem drones e transportando apenas peças de reposição do helicóptero junto com sua tripulação de socorro.

Simultaneamente, inúmeros argumentos falsos começaram a ser sustentados na esfera federal. A primeira desculpa para rejeitar a ajuda uruguaia, totalmente imprecisa, sustentava que o Uruguai havia ignorado as necessidades do Comando Conjunto que atua nessa área e de todo o Estado. O que foi imediatamente negado pelo ministro Castaingdebat, que inclusive se ofereceu para tornar públicas as comunicações entre todos os envolvidos.

A segunda desculpa, insustentável, foi a de que, nos 282 mil quilômetros quadrados do Rio Grande do Sul, com uma infinidade de aeroportos (vários internacionais), não havia pistas adequadas para o Hércules (que consegue pousar em pistas de 650 metros de comprimento), o que foi refutado pela realidade e pelo exemplo: outros aviões de igual característica das forças de segurança brasileiras conseguiram pousar, e o mesmo aconteceu com um avião Hércules oferecido pela República Argentina.

Como se a negativa perante a ajuda do Uruguai não fosse suficiente, considerando a gravidade da tragédia, apareceu outro fato falso, quase ofensivo: argumentou-se que a Força Aérea Uruguaia voaria domesticamente no Sul do Brasil, o que nunca foi oferecido

O terceiro argumento, já beirando a manipulação (e que de certa forma poderia prejudicar as excelentes relações entre a Força Aérea Uruguaia e a Embraer), foi por meio de um comunicado oficial, do Ministério da Defesa, com informações do Comando Militar Conjunto. O comunicado afirma: “A aeronave KC-390 [da Embraer] atende às nossas necessidades de transporte, uma vez que pode pousar em pistas menores e transportar cargas maiores [note-se que até 90 dias antes a FAB utilizava o Hércules]”. Acrescentava, como justificativa para negar a ajuda oferecida, que o resto do trabalho humanitário estava sendo realizado por drones.

Embora o governo do Rio Grande tenha sido amplamente favorável à presença da aviação militar uruguaia, o fato de ter a ajuda rejeitada pelo governo federal do Brasil se transformou rapidamente em notícia, divulgada por todos os jornais da rádio e da televisão brasileiras e em diversos portais. E os comentários variaram entre a indignação e o absurdo. 

Cores políticas

Como se a negativa perante a ajuda do Uruguai não fosse suficiente, considerando a gravidade da tragédia, apareceu outro fato falso, quase ofensivo: argumentou-se que a Força Aérea Uruguaia voaria domesticamente no Sul do Brasil, o que nunca foi oferecido, até porque tudo o que tem a ver com transferência de carga em aeronaves militares é regulamentado (desde um Cessna 208 “Caravan” até um KC 390 da Embraer) pelo Sistema de Cooperação entre as Forças Aéreas Americanas (SICOFAA), bem como os voos internos de uma Força em outro país, em caso de desastre. Além do mais, isso ocorre praticamente a cada dois anos entre toda a aviação militar americana, nos exercícios humanitários de “Cooperação”. Nenhum oficial aeronáutico ignora isso. O atual governo brasileiro parece que é uma exceção.

Técnicos uruguaios vêm produzindo as unidades potabilizadoras de água (UPAs) | Foto: Divulgação

A atitude das autoridades federais brasileiras, caso persista não somente com o oferecimento do Uruguai como também de outros países amigos, poderá ser muito negativa para o povo gaúcho. A principal necessidade de quase 2 milhões dos 11 milhões de habitantes é voltar a ter água potável. Técnicos uruguaios vêm produzindo as unidades potabilizadoras de água (UPAs), um projeto do exército uruguaio com a empresa Obras Sanitarias del Estado (OSE). É um projeto adequado para abastecer populações de até 22,5 mil habitantes, sendo que cerca de 20 UPAs já foram doadas, e algumas ainda são utilizadas em Missões Operacionais de Paz. O governo uruguaio está disposto a ceder uma ou duas unidades para o governo do Rio Grande do Sul, se necessário.

Duas usinas de UPA foram oferecidas para ser embarcadas especificamente em aeronaves Hércules ou similares e utilizadas em Missões de Paz ou cenários de devastação. Já estão preparadas para o envio.

Além disso, o Ministério da Defesa informou que sua contraparte brasileira e o Comando Unificado Tacuari II aceitaram os barcos e drones (que o embaixador uruguaio, Guillermo Valles, ofereceu novamente, também à CREDN, de deputados). A dificuldade está, mais uma vez, no Itamaraty.

Guillermo Valles, embaixador do Uruguai no Brasil | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Uma amostra? A conurbação fronteiriça Rivera/Livramento (com 180 mil habitantes, free shops, vinícolas de renome internacional, porto seco etc.) carece de um aeroporto brasileiro. O Uruguai, ao oferecer o próprio aeroporto, amplamente competitivo, para se tornar binacional, demorou quase 30 anos para conseguir.

Fica a amarga sensação de que a ideologia prevalece perante a tragédia. A ajuda humanitária deveria carecer de cores políticas… só que não.

Leia também “O maior desafio de Javier Milei”

11 comentários
  1. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Excelente artigo que elucida assunto tão indigesto!

  2. Luis Ricardo Zimermann
    Luis Ricardo Zimermann

    É lamentável constatar que nosso país esteja trilhando o mesmo caminho das piores ditaduras latino-americanas.

  3. Julio Fressa
    Julio Fressa

    Segré, é uma grata surpresa vê-lo escrever na Oeste. Sou seu fã e te assisto todos os dias na JP. Creio que você é mais brasileiro que grande parte dos ditos “jornalistas” brasileiros. Coerente, simpático e altamente informativo. Abração!

  4. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Segre, o argentino mais brasileiro que muitos brasileiros.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A quadrilha petista tem a sanha de controlar tudo sob seu satélite, justamente com a finalidade de se perpetuar no poder manipulando a todos. É a estratégia deles, por isso tendem a rejeitar nobres ações como esta do Uruguai.

  6. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Vergonhoso

  7. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Quando a ideologia supera a sanidade mental o resultado nunca será diferente do que está acontecendo no Rio Grande do Sul.
    Para mim este ranço do Itamaraty tem conexão direta com a defesa do desgoverno brasileiro em relação às ditaduras, em especial as sul americanas.
    O Presidente uruguaio Luis Alberto Aparicio Alejandro Lacalle Pou já deu vários puxões de orelha publicamente no Lula que deve estar profundamente magoado com as posições defendidas pelo nosso vizinho.

  8. Marcos Heluey Molinari
    Marcos Heluey Molinari

    Só uma firula gramatical: na última frase, utilizar o verbo “carecer” pode dar a entender que a ajuda humanitária pode necessitar de cores políticas. Melhor seria utilizar “prescindir”.

  9. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tem que desmanchar esse itamati e toda diplomacia, são tudo da esquerdopatia e só vai na bala

  10. João Carlos Félix Souza
    João Carlos Félix Souza

    Lamentável. A esquerda destrói qq nação.

  11. Dario Palhares
    Dario Palhares

    É pior do que ideologia. É cegueira. Incompetência. Se não for índio, preto, mulher, quilombola, favelado, drogado, traficante e abortista, a esquerda não sabe o que fazer.

Anterior:
Lígia Maria Bergamaschi Botta, arquiteta e urbanista: ‘Porto Alegre está à deriva’
Próximo:
‘Todes’, ‘menines’ e o STF
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.