“Devemos em primeiro lugar tentar manifestar a verdade que a fé professa e a razão investiga, estabelecendo argumentos demonstrativos e prováveis, de modo que a verdade possa ser confirmada e o adversário convencido.”
(São Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, 1259-1265)
“A ciência e a religião lutam juntas uma batalha constante, perpétua, incansável contra o ceticismo e o dogmatismo, contra a descrença e a superstição. O fio condutor dessa luta vem do passado e estende-se para o futuro: em direção a Deus.”
(Max Planck, Religião e Ciência, 1938)
Em 19 de junho de 2014, em plena Copa do Mundo no Brasil, um jornalista de O Globo imaginou ter dado um furo de reportagem, ao enviar para o jornal carioca, e também para a Folha de S.Paulo, uma matéria com o título: “Felipão sobre Neymar: ‘Se tivéssemos três como ele, a Copa seria uma tranquilidade”. O sujeito acreditava ter acabado de topar com o então técnico da seleção brasileira e o craque brasileiro na ponte aérea Rio-São Paulo. No avião, o jornalista sentou-se ao lado de Felipão e puxou conversa, da qual extraiu o título da referida reportagem, que chegou a ficar no ar durante algum tempo, até ser retirada e substituída por uma nota: “Erramos: Felipão não falou com colunista”. Tratava-se, na realidade, de sósias de Felipão e de Neymar, e o jornalista não percebeu.
Pois bem. O episódio poderia ter servido de lição de humildade, baseada na percepção de que, conquanto os humanos sejamos criaturas racionais, nossa razão pode vir a nos trair, sobretudo num dia em que, pelos mais variados motivos, possa não estar muito afiada. Digo que o episódio poderia ter tido essa utilidade, mas não teve. Muito pelo contrário, eis que, dez anos depois do monstrengo jornalístico produzido pelo cochilo da razão humana, o mesmo sujeito anda por aí exaltando essa mesma razão, ostentando-a como um estandarte de guerra contra uma pretensa irracionalidade da fé religiosa. Espantoso!
Como muitos leitores já devem ter recordado, o jornalista em questão é Mario Sergio Conti. Em artigo do dia 24 de maio, publicado na Folha de S.Paulo com o título “Defender os ateus é defender a razão”, o sujeito que não foi capaz de notar a diferença entre o original e a réplica de figuras públicas tão conhecidas resolveu anunciar ao mundo uma descoberta sua: “Está firme na cadeira? Então escuta esta: deus não existe. É uma invenção compensatória. Quando falta o que comer e vestir, onde amar e trabalhar em paz, alguns compatriotas recorrem à entidade que seria capaz, se não de prover suas carências, de ao menos servir de consolo”. Sim, embora não saiba reconhecer a existência de um sósia de Felipão, Conti sabe reconhecer a inexistência de Deus. Passa da comédia pastelão à metafísica com toda a naturalidade. Imaginem a que grau de iluminação não terá chegado daqui a mais dez anos?
Do início ao fim, o artigo de Conti passa uma impressão de extemporaneidade de natureza quase cômica, como se estivéssemos diante de uma espécie de Dom Quixote, lutando contra os moinhos de vento da onipresença religiosa tal qual um ateu durante a Idade Média. Assim como demorou a discernir o falso Felipão, Conti parece ter se atrasado e perdido o bonde da história, pois já refluiu a grande onda do novo ateísmo militante surgida no início dos anos 2000, e esse seu belicismo antirreligioso soa muito cringe.
De fato, num momento em que até mesmo um tipo como o biólogo Richard Dawkins — fundador do novo ateísmo militante no início dos anos 2000 — se reconhece como um “cristão cultural”, e que mesmo um lugar insuspeito como a Finlândia experimenta um surpreendente aumento da religiosidade entre jovens, nosso cavaleiro de triste figura e ar blasé celebra a avançada secularização escandinava e profetiza:
“Um dia, Meca, o Muro das Lamentações, o Vaticano — e, aqui, o Santuário de Aparecida e o Templo de Salomão, no Brás — só atrairão admiradores do engenho humano, e não crentes no além.”
Ora, essa profecia vem sendo feita no Ocidente ao menos desde o século 18. E até agora a utopia ateísta não se concretizou. Aliás, foi justamente uma decepção com o fracasso das assim chamadas “teorias da secularização”, formuladas por pensadores como Feuerbach, Marx e Freud, os quais previram (equivocadamente, hoje se pode dizer) o fim do sentimento religioso à medida que a ciência e a técnica progredissem, que deu origem ao neoateísmo de Dawkins, Sam Harris, Christopher Hitchens e o recém-falecido Daniel Dennett, que fundaram um movimento por muitos chamados de “ateísmo fundamentalista” e até mesmo “ateísmo evangélico”.
A ingênua fé cientificista dos séculos 18 e 19, segundo a qual a ciência poria fim ao sentimento religioso da humanidade, foi manifesta, por exemplo, pelo iluminista barão D’Holbach, que escreveu O Sistema da Natureza:
“Se a ignorância sobre a natureza pariu os deuses, o conhecimento da natureza tende a destruí-los. Assim que o homem se torna esclarecido, os seus poderes aumentam, bem como os seus recursos, em paralelo ao aumento do conhecimento. As ciências, as artes e a indústria fornecem-lhe auxílio, a experiência encoraja o progresso… Quando devidamente instruído, o homem deixa de ser supersticioso.”
Essa mesma crença era partilhada pela maioria dos darwinistas sociais do século seguinte, dentre eles um dos mais famosos e infames: Adolf Hitler. Em certa ocasião, quando planejava um grande observatório e planetário na cidade de Linz (Áustria), o líder nazista explicou o projeto numa linguagem tipicamente iluminista (citado por Alan Bullock em Hitler: A Study in Tyranny):
“Milhares de turistas farão uma peregrinação ali, aos domingos. Terão acesso à grandeza do nosso universo. O frontão triangular terá este mote: ‘Os céus proclamam a glória da eternidade’. Será nossa maneira de dar aos homens um espírito religioso, de ensinar-lhes a humildade — mas sem sacerdotes. Para Ptolomeu, a Terra era o centro do mundo. Isso mudou com Copérnico. Hoje sabemos que nosso sistema solar é apenas um sistema solar entre outros muitos. O que poderíamos fazer melhor do que permitir ao maior número possível de pessoas ficar a par dessas maravilhas?… Ponde um pequeno telescópio numa vila e destruireis um mundo de superstições.”
Conti é um ateu do tipo suscetível e enfezadinho, daqueles que se ofendem profundamente ao presenciar a oração do Pai Nosso em público. Irritado com a passividade e o pacifismo da minoria de ateus brasileiros, que supostamente aceitam de cabeça baixa a horrenda opressão imposta por uma teocracia, o racionalista sazonal ataca o cerne de seu incômodo, o nervo ciático metafísico que vive a lhe infundir dores terríveis. E, claro está, não poderia deixar de palrear o clichê preferido de nove entre dez integrantes das províncias das redações: o do “Estado laico”. Nas palavras de Conti:
“Os 8% de descrentes são uma minoria pacífica e passiva. Aceita de cabeça baixa que as instituições e meios de comunicação, a cultura e as artes os discriminem e façam propaganda de crendices continuamente. Entra-se no plenário do STF e se topa com a imagem de um homem exangue, sangrando em troncos transversais. A mesma figura de mau gosto adorna o gabinete do presidente da República. É um abuso.”
Obviamente, Conti não sabe que, em vez de anátema à imagem de Jesus Cristo crucificado, o próprio conceito de laicidade é indubitavelmente uma criação cristã, que não existia antes do Cristianismo, e que, ainda hoje, não se mantém fora dessa matriz civilizacional. Para compreendê-lo, seria preciso exigir de um jornalista brasileiro que ele tivesse um horizonte de consciência histórica minimamente ampliado, o que raramente é o caso.
A fim de dimensionar o impacto da novidade que o Cristianismo trouxe ao mundo pagão, bastaria consultar a literatura greco-romana sobre o assunto. No século 2º d.C., por exemplo, o filósofo grego Celso publicou Sobre a Verdadeira Doutrina, um dos primeiros tratados formais contra o Cristianismo de que se tem notícia. Embora o texto original tenha se perdido, conhecemos algo de seu argumento através da refutação que lhe dedicou Orígenes de Alexandria na obra Contra Celso.
Para gregos e romanos do período clássico, os deuses a serem adorados eram deuses de Estado (das cidades ou das famílias), e as religiões clássicas eram, portanto, religiões políticas. Como se recusavam a adorar esses deuses estatais, e uma vez que não reconheciam a divindade do imperador, os cristãos eram tidos por antissociais e ímpios. Para escândalo de Celso e seus contemporâneos, o Deus dos cristãos era não apenas “estrangeiro” como transcendente às coisas de César. Isso era um desafio frontal à visão de mundo clássica.
No clássico A Cidade Antiga, de 1864, o célebre historiador Fustel de Coulanges descreve com maestria o significado da emergência do Cristianismo no contexto cultural pagão:
“Por toda parte, na primeira idade da humanidade, se havia concebido a divindade como pertencendo especialmente a uma raça. Os judeus acreditavam no Deus dos judeus, os atenienses na Palas ateniense, os romanos no Júpiter capitolino… No que respeita ao governo do Estado, podemos dizer que o Cristianismo o transformou em essência, precisamente porque não se ocupou dele. Nos velhos tempos, a religião e o Estado formavam um todo… Jesus Cristo ensina que o seu reino não é deste mundo. Separa a religião do governo.”
Mais de um século depois, outro grande intelectual francês, o medievalista Jacques Le Goff (um ateu em geral bastante crítico à Igreja Católica), admitiu em entrevista ao jornal argentino La Nación a origem cristã da noção de laicidade:
“Não é preciso ser um crente fervoroso para falar bem da Igreja. Também sou um partidário convicto do laicismo: princípio admirável, estabelecido pelo próprio Jesus quando disse: ‘A César o que é de César, a Deus o que é de Deus’… Aqueles que falam em obscurantismo não compreenderam nada. Essa é uma ideia falsa, legado do Século das Luzes e dos românticos. A era moderna nasceu no medievo.”
Mas a laicidade cristã não é sui generis apenas de uma perspectiva histórica e passada, senão também geográfica e contemporânea. Como observa o islamólogo Bernard Lewis em A Linguagem Política do Islã:
“Quando nós, no Ocidente, usamos as palavras ‘Islã’ e ‘islâmico’, tendemos a cometer um erro natural, pressupondo que religião tem para os muçulmanos o mesmo sentido que para o mundo ocidental, a saber: um compartimento da vida reservado a certas questões, separado, ou ao menos separável, de outros compartimentos equivalentes. Não é assim que funciona no islamismo… A distinção entre Igreja e Estado, tão profundamente enraizada na cristandade, simplesmente não existe no Islã. No árabe clássico, bem como em outros idiomas que dele herdaram o seu vocabulário político e intelectual, não há um par de termos que corresponda a espiritual e temporal, leigo e eclesiástico, ou religioso e secular… Não há aí algum equivalente à palavra ‘laicidade‘, uma expressão sem sentido no contexto islâmico.”
Com essas noções subginasianas na cabeça, Conti celebra os iluministas por, segundo ele, terem apostado na razão contra os mitos
Mas, em seguida ao faniquito anticlerical que o impede de compreender a religião católica como fundadora do princípio de laicidade que ele diz reverenciar, o entrevistador de sósias dá uma explicação para a origem da religião tão pueril, mas tão pueril, que os ateus mais inteligentes provavelmente sentiriam diante do artigo o mesmo que o filósofo ateu Michael Ruse sentiu diante do best-seller de Dawkins: “Deus, um delírio me fez ter vergonha de ser ateu”.
Reproduzindo uma versão paraguaia das já intelectualmente indigentes teorias da religião de Marx e Freud (ambas, por sua vez, oriundas de Feuerbach), diz o recém-egresso do supletivo em religião comparada: “A ideia de deus persiste porque na sociedade de consumo bilhões não consomem. As religiões cumprem nela a função de dar um alívio imaginário a quem não o tem na vida real e material”. Uau!
Com essas noções subginasianas na cabeça, Conti celebra os iluministas por, segundo ele, terem apostado na razão contra os mitos (uma interpretação que pessoas acima dos 15 anos já não deveriam repetir sem corar). Mas ele também não sabe — e há muitas coisas que ele não sabe — que, como afirma o filósofo Alfred North Whitehead em A Ciência e o Mundo Moderno, “a ciência moderna tem sua origem na teologia medieval, sobretudo na ideia da racionalidade de Deus e a consequente racionalidade da criação”.
No livro Os Primórdios da Ciência Ocidental, de 1992, o historiador da ciência David Lindberg diz que “os mestres da Idade Média criaram uma ampla tradição intelectual, sem a qual o subsequente progresso na filosofia natural teria sido inconcebível”. Uma avaliação compartilhada pelo também historiador da ciência Edward Grant:
“O que foi que tornou possível a civilização ocidental desenvolver a ciência e as ciências sociais […] de um modo que nenhuma outra civilização havia conseguido até então? Estou convencido de que a resposta está no penetrante e profundamente arraigado espírito de pesquisa que teve início na Idade Média, como consequência natural da ênfase posta na razão. Com exceção das verdades reveladas, a razão era entronizada nas universidades medievais como arbítrio decisivo para a maior parte dos debates e controvérsias intelectuais. Os estudantes, imersos em um ambiente universitário, consideravam muito natural empregar a razão para pesquisar as áreas do conhecimento que não haviam sido consideradas seriamente.”
Quando, portanto, Mario Sergio Conti diz defender a razão, só consigo pensar no que escreveu Mircea Eliade em O Sagrado e o Profano: “A maioria dos homens ‘sem religião’ partilha ainda de pseudorreligiões e mitologias degradadas”. Daí que, antes de se lançar em sua quixotesca cruzada antirreligiosa, ele devesse se certificar se o que defende é mesmo a razão ou apenas um sósia…
Leia também “O antissemitismo da extrema esquerda universitária”
Que paulada no MSC. Imagino ele lendo isso e pensando: “vou fingir que não li, assim me livro de refutar àquilo que não tem refutação” kkkkkkk
Veja como são as coisas. Li o título da matéria, a chamada e pensei que o Flávio é que fosse ateu. Nem ia ler o texto, mas de curioso acabei lendo. Que decisão acertada. Descobri o quão inteligente é o articulista e o quão ignorante eu fui ao fazer conclusões precipitadas. Ótimo texto, como todos de Oeste.
Flavio é de longe o mais inteligente articulista que já tomei conhecimento.
Na realidade, o jornalista ateu está professando a religião comunista, que não aceita concorrência das religiões tradicionais. O maior erro do último século, que a sociedade ainda comete, é não reconhecer o comunismo pelo caráter teológico, muito mais que econômico ou social.
Não entendo porque ateus e crentes travam batalhas.
Para mim é um assunto indiferente, pois em nada me incomoda saber que alguém não acredita da existência de Deus, e vice e versa, desde que não haja agressão ou desrespeito.
Aliás, nós crentes acreditamos em Deus, mas não provamos sua existência, e os ateus NÃO acreditam em Deus, e também não provam a sua inexistência.
Portanto, crentes e ateus são ambos crentes: aquele que crê que algo existe ou deixa de existir, mas não o prova.
Pra que conflito?
Tempos ultra modernos que desmoralisa os sabichões de outrora. Conti, conte o que sabe não invente
Brilhante artigo. Gostei demais.
O Professor Olavo de Carvalho certamente aprovaria.
Flavio Gordon não escreve meramente artigos, mas aulas, se destacando no cenário jornalístico, hoje transfigurado num grande prêt-à-porter de opiniões “contra ou a favor” do que quer que seja. Senti falta no texto, todavia, de citação à Santo Agostinho: “As reflexões de Santo Agostinho sobre as relações entre fé e razão deixam como legado para a Idade Média um programa intelectual que os medievais irão desenvolver. Do significado da fé e razão em Santo Agostinho passa-se à sua meta, a busca da verdade (se ela pode ser alcançada ou não) e compreensão da revelação. Chega-se então à explicitação da passagem de Gênesis 1, 26: assim como Deus é Trindade, a essência da alma é trinitária (memória, inteligência, vontade). Discorre-se, finalmente, sobre a posse da verdade”. (CUNHA, Mariana Paolozzi Sérvulo da. Santo Agostinho: Fé e Razão na Busca da Verdade. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 44, p. 415-427, 2012)
Mario Conti, como os ateus em geral, deve ser o tipo de pessoa que involuntariamente faz o sinal da cruz quando o avião entra em zona de turbulência.
Como todo ateu, deve vez ou outra ter pedido a “deus ” ou a qualquer outra entidade (porque quem não acredita em Deus acredita em qualquer coisa, como escreveu Chesterton) numa hora de aperto; ou esperando a realização de algo pretendido.
Ou seja, sempre no campo da barganha. Como ateu normalmente sabe muito pouco, Conti desconhece que a religião, exteriorizada na oração, cria um capital de graças para ser usado na hora da dificuldade, da doença, da dor física, do abatimento moral.
Não é um comércio, não é um escambo: é simplesmente uma necessidade, que não visa nenhum benefício aqui, mas visa o além, enquanto prepara o espírito para as adversidades.
Flavio Gordon,quantas sabedoria em um artigo só.
Uma beleza de texto que para mim, também funcionou como aprendizado. Obrigada.
Bravo, Flávio! Faríamos uma fortuna se comprássemos mário sergio conti (assim mesmo, com minúsculas) pelo que ele vale e o vendêssemos pelo que ele acha que vale.
Bela conclusão, Renato!