Imediatamente após o veredito do julgamento em que Donald Trump foi considerado culpado, fui ler os comentários americanos sobre o caso, esperando mais calor do que luz. O que encontrei, sem surpresa, foi uma clara divisão entre duas escolas de pensamento (ou, talvez, mais precisamente, de sentimento, e não de pensamento).
Ou o veredito foi um triunfo do Estado de Direito, prova de que nenhum homem, por mais rico ou poderoso que seja, está acima da lei, ou foi uma paródia de Justiça, o uso corrupto da lei para uma vingança política. Dependendo da lealdade política, um lado estava jubilante; e o outro, zangado.
Resta saber se a população está tão bem dividida ou não. Esperamos que não, mas, dada a propensão da humanidade a separar tudo em dois e rejeitar nuances — para resumir, o maniqueísmo —, acredito que esteja. Muitas pessoas falam da explosão de um grave conflito civil — não é provável, mas também não é impossível.
Um jornal britânico popular, detestado por todos os intelectuais de bem, costumava me pedir artigos de vez em quando. Naquela época, eles estavam nadando em dinheiro, então pediam para vários escritores escreverem sobre o mesmo assunto e, em seguida, escolhiam o artigo que mais lhes conviesse. Surpreendentemente, eles pagavam a mesma coisa aos autores, quer os artigos fossem publicados quer não, e pagavam muito bem. Eu ganhava em duas horas o que muitas pessoas ganhavam em uma semana. Mas minha esperança era que o jornal encomendasse os artigos, mas não os publicasse, porque aparecer nas suas páginas não era o caminho ideal para o prestígio literário ou até mesmo jornalístico.
Embora o próprio jornal não fosse consistente, por exemplo ao bradar contra a vulgaridade nas colunas e incentivando-a em todas as outras seções, ele exigia dos seus autores uma total ausência de nuance. A locução “por um lado… e por outro” era um anátema, como cabeças de alho para o Conde Drácula. Os leitores, dizia o jornal, precisavam saber exatamente o que pensar sobre qualquer assunto, e qualquer forma de qualificar uma afirmação apenas confundiria aquelas pobres mentes. Eles não compravam o jornal para serem informados de que o mundo é complicado, mas para serem informados de como era simples. Acima de tudo, queriam alguém ou algo para detestar. O ódio é uma emoção extremamente gratificante.
‘O editor está errado’
O resultado foi que muitas vezes — nem sempre — tive que me recusar a escrever os artigos. Como instituição, eles não tinham absolutamente nenhum respeito pela verdade, apenas pela opinião do editor. Uma vez fui chamado para escrever um artigo cujo assunto agora esqueci e me perguntaram o que eu pensava sobre o tema. “Mas o editor pensa o contrário”, disse a pessoa que me pediu o texto. “O editor está errado”, respondi, o que foi recebido com um breve silêncio atordoado, como se eu tivesse dito uma heresia em uma convocação de bispos.
O sujeito se recuperou e me perguntou: “Mas você vai escrever o artigo?”. A recusa com base no fato de que eu não escreveria algo que acreditava estar errado pareceu ser uma razão surpreendentemente fraca para perder a oportunidade de ganhar um dinheiro rápido. Evidentemente, todo mundo escrevia coisas em que não acreditava o tempo todo.
A frivolidade daquilo tudo me impressionou muito. Em uma ocasião, me ligaram para perguntar se eu poderia escrever mil palavras até as 4 horas daquela tarde sobre o que me disseram ser “esse novo tratamento para o câncer”. Respondi que não por duas razões: primeiro, eu estava em uma clínica atendendo pacientes e, segundo, eu não sabia nada sobre “esse novo tratamento para o câncer”. Mais uma vez, houve um breve silêncio do outro lado da linha, enquanto meu interlocutor pensava. “Certo. Quatro e meia então?”, perguntou ele.
Cabelo rastafári verde e argolas no nariz
Com a chegada da internet e dos smartphones em especial, a prosperidade do jornal entrou em declínio, e eles não podiam mais se dar ao luxo de funcionar como antes. Além disso, os jornalistas caem em desuso nos jornais com a mesma regularidade das tendências da moda. O jornal logo percebeu que seu futuro seria on-line e que a rendição completa, em vez de parcial, à vulgaridade era o caminho a seguir. Nosso contato acabou.
Embora todo mundo zombe do jornal — claro, estou falando de intelectuais e pessoas razoáveis e de boa formação —, não estou certo de que, no fundo, elas sejam tão diferentes. São humanos; logo, amam dicotomizar e odiar.
Pouco tempo atrás, falei no painel de um grande festival literário na Inglaterra. A plateia era composta de pessoas idosas benevolentes que estão sempre à procura de criminosos comuns para perdoar em nome da sociedade, e de jovens intelectuais que afirmam a própria individualidade com cabelo rastafári verde e argolas no nariz.
O painel era formado por um pedante, um poeta e eu. O assunto era entediante, mas o público era numeroso. Embora Donald Trump não tivesse nada a ver com o assunto, ele foi mencionado pelo poeta, que estava determinado a denunciá-lo. E o fez. Isso foi recebido com aprovação universal, e achei inútil discordar.
Simplesmente não estava em questão se quem e o que se opôs a Trump é melhor do que ele, em qualquer aspecto, ou todos
A importância histórica de Donald Trump
Não que eu goste de Donald Trump. Ele é, pelo menos em público, rude, polarizador, grosseiro, sem humor, mentiroso, sem charme, narcisista e vulgar. Acho difícil encontrar qualquer virtude nele. Pessoas que sabem dessas coisas me disseram que os negócios dele são suspeitos. Um homem que acredita que a falência é um movimento inteligente para enganar os credores não é digno de confiança.
Mas a denúncia de sua figura e o ódio por ele com certeza não são reações adequadas, especialmente por parte dos intelectuais. Gostemos ou não, Trump é uma figura de alguma importância histórica. Sua presidência foi igualmente ruim, melhor ou pior que a do presidente Biden? Quais são as causas de sua notoriedade? Seria o fato de que ele é visto por milhões, embora equivocadamente, como o único que vai corrigir a injustiça sofrida por eles, e, se for isso, qual seria essa injustiça e quais são suas causas?
Mas, para aquele público de pessoas de boa formação e boa índole, a simples menção ao seu nome foi suficiente para produzir uma onda de autoproclamação moralista, meio entretida, meio raivosa, um totem em torno do qual a tribo podia se reunir. Simplesmente não estava em questão se quem e o que se opôs a Trump é melhor do que ele, em qualquer aspecto, ou todos. Acima de tudo, como aqueles editores que encomendavam as colunas do jornal para o qual eu escrevia às vezes, não há nenhuma nuance.
Theodore Dalrymple é pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor de mais de 30 livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações) estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.
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Não concordo com essas afirmações sobre Donald Trump, todos sabem que ele é o melhor da corrida presidencial, tanto pros EUA como para o Brasil e para o ocidente que está neste momento em decadência
Tomar partido, e fechar questão para um dos lados, é uma forma bastante preguiçosa de raciocinar sobre um tema. Odiar pode ser um atalho para encerrar o assunto e sinal verde para agitar a bandeira já, intimamente, comprometida.
Ou seja, então nada mudou, nunca.
Há sempre dois lados em contraste. O que existe é escamoteá-los quando convém, como Darymple mostra com seus próprios exemplos.
Ultimamente, muito por conta da Internet, onde as opiniões são dadas mais livremente e são alcançadas por um universo muito maior de pessoas, as posições pessoais tendem a ser verbalizadas; e cada qual pende para um lado. Ou até muda aparentemente de lado.
Como eu mesmo, que embora pasmo com certas ações e omissões, acreditei durante muito tempo que o PSDB fosse antípoda e adversário do PT.
Só percebi o erro com as lições teóricas de Olavo de Carvalho, e a prática encarnada por Jair Bolsonaro. Eu e muita gente, já que Bolsonaro deixou Alckmin com 5% dos votos em 2018.
Acredito que todos nós nunca mudamos de opinião. Só faltava uma luz para clarear o caminho. E essa luz foi a informação.