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Escultura A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, em frente ao STF, em Brasília | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 223

Um país rumo a um Estado totalitário

Os altos magistrados da República decidiram, por exemplo, que o direito constitucional ao habeas corpus não se aplica aos bolsonaristas presos nos atos institucionais alexandrinos

Flávio Gordon
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Como se sabe, o direito ao habeas corpus é assegurado pelo inciso LXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, no qual se lê: “Conceder-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Todavia, os altos magistrados da República decidiram que ele não se aplica aos bolsonaristas presos nos atos institucionais alexandrinos. O orgulhoso comunista Flávio Dino, por exemplo, acaba de se recusar a analisar o pedido de habeas corpus encaminhado pela defesa do preso político Filipe Martins, apesar de sua prisão preventiva perpétua ser flagrantemente ilegal e abusiva.

Como se sabe, a censura é expressamente proibida pela Constituição Brasileira. Em 2015, fiel a esse espírito da lei, e no contexto do julgamento sobre biografias não autorizadas, a ministra Cármen Lúcia exaltou a liberdade de imprensa e de expressão, proferindo a célebre frase “cala a boca já morreu”. Todavia, dali a sete anos, em meio à corrida eleitoral de 2022, a mesma ministra achou por bem abrir uma exceção “excepcionalíssima” para censurar uma produção audiovisual que poderia prejudicar um dos candidatos (coincidentemente, o de sua preferência).

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Como se sabe, o monitoramento das redes sociais pelo Estado brasileiro é inconstitucional. Foi, aliás, a mesma ministra Cármen Lúcia quem o recordou em fevereiro de 2022, ao julgar ilegal o projeto da Secretaria Especial de Comunicação Social do Ministério das Comunicações do governo Bolsonaro de produzir relatórios de monitoramento de atividades de parlamentares e jornalistas nas redes sociais. Dois anos depois, o STF resolveu, ele próprio, instituir um programa de monitoramento e espionagem (pois compreende a solicitação de dados privados de usuários) do que se fala sobre a Corte nas redes sociais.

Nota-se claramente que o Judiciário brasileiro virou uma criatura bifronte, que adota critérios distintos — ora conformes, ora inconformes às leis — de acordo com conveniências políticas e a identidade do sujeito ou da coisa julgada. E esse comportamento do Judiciário é um dos sintomas primordiais que indicam a caminhada de um país rumo a um Estado totalitário. Como notaram os principais estudiosos dos totalitarismos do século 20, a dissolução da ordem jurídica atinge seu ápice com a destruição da isonomia e do caráter universalmente vinculante das leis, de modo que, se algumas pessoas são aprioristicamente excluídas da comunidade legal, devido à sua pertença a uma determinada categoria estigmatizada; se elas não são mais processadas pelo que fazem, mas pelo que são, é porque se alcançou um ponto de não retorno às relações ordenadas anteriores. Daí que, muito corretamente, a construção da figura do “inimigo objetivo” — e o bolsonarismo está à beira de ocupar esse título — seja considerada um critério fundamental para se definir um regime como totalitário.

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Uma das melhores obras sobre o assunto é O Estado Dual: Uma Contribuição à Teoria da Ditadura, de Ernst Fraenkel. Advogado e cientista político alemão de origem judaica, Fraenkel foi um dos primeiros a tentar teorizar, desde dentro do sistema judiciário alemão, a natureza do Estado nazista. Já em 1937, sob pseudônimo, publicou o ensaio Das Dritte Reich als Doppelstaat (“O Terceiro Estado como Estado Dual”), onde esboçava a interpretação que seria mais tarde consagrada. No ano seguinte, fugindo do nazismo, emigrou para a Inglaterra e em seguida para os Estados Unidos, onde, em 1941, sua magnum opus saiu pela Oxford University Press.

O Estado Dual surgiu de sua experiência com o Judiciário no Terceiro Reich. Segundo Fraenkel, o sistema de governo nacional-socialista baseia-se na coexistência de duas metades, uma “normativa”, que respeita as próprias leis, e outra “prerrogativa”, que desrespeita essas mesmas leis em função das razões de Estado. Na segunda parte da obra, Fraenkel deriva essa dualidade da rejeição nacional-socialista ao direito natural. Seu argumento é que o nacional-socialismo rejeita o princípio universal de justiça, substituindo os valores fundados no direito natural por uma consideração restrita do propósito nacional. Ciente da estreita conexão entre o cristianismo e o direito natural, o autor conclui que o Terceiro Reich se move num caminho que retrocede do universal para o local, do monoteísmo para o xenoteísmo.

Livro O Estado Dual, de Ernst Fraenkel | Foto: Divulgação

A certo trecho da obra, escreve Fraenkel:

“O primeiro ato após o golpe de Estado Nacional-Socialista (ou seja, após o Decreto de 28 de fevereiro de 1933) resultou na abolição do princípio Nulla poena sine lege, até então um princípio majoritário do direito positivo alemão. A Lex van der Lubbe estabeleceu a pena de morte retroativa para um crime que, no momento de sua prática, estava sujeito apenas à prisão. Com a promulgação desse ato, o Nacional-Socialismo demonstrou de forma inequívoca que não se considerava vinculado, nem em teoria nem na prática, por esse antigo princípio do Direito Natural, que, até o golpe de Estado, havia formado um componente incontestável da concepção alemã de justiça.”

Note-se que, ao contrário do que se passou em outros regimes totalitários (sobretudo com os regimes comunistas), o Reich de Hitler não conseguiu criar uma Constituição própria. Ao longo de seus 12 anos de vida, a Constituição da República, ratificada em Weimar em 1919, permaneceu sendo a Constituição alemã. No papel, a estrutura anterior das instituições do Reich permaneceu amplamente inalterada, embora os processos de criação de leis tenham sido alterados radicalmente e a distribuição de autoridade tenha mudado tão fundamentalmente a ponto de anular completamente as disposições da Constituição.

Adolf Hitler em frente à sede do Partido Nazista, em Munique (1931) | Foto: Reprodução

Deu-se assim o surgimento do “Estado dual”. Tratava-se de um modelo de ditadura distinto do sistema soviético. O Partido Nacional-Socialista nunca produziu, por exemplo, um comitê central ou um bureau político, embora tenha vindo a desempenhar um papel cada vez mais decisivo na concepção das políticas e, à medida que a ditadura avançava, na subversão da autoridade estatal. O “Estado dual” representava a divisão entre a estrutura constitucional preexistente e um sistema de poderes administrativos e executivos extraordinários, que operavam fora ou em contradição com as normas estabelecidas.

A liberação revolucionária do poder político, sua libertação em relação às normas legais e morais tradicionais, perverte-o em pura tirania e arbítrio.

Temos aí o resquício da mentalidade totalitária do século 20, segundo a qual a política foi inteiramente militarizada — ou concebida, à moda de Carl Schmitt, como a disputa crua entre amigos e inimigos. A consequência desse primeiro passo é a militarização do próprio Direito, pela qual a lógica amigo-inimigo passa a prevalecer também no interior do Estado. Sendo toda disputa política levada à lógica do tudo ou nada existencial (“salvar a democracia”, “impedir o golpe” etc.), o poder já não repousa sobre o fundamento da lei, como na tradição liberal-burguesa vigente até a Primeira Guerra, mas na ponta da baioneta.

É justamente essa amplificação, intensificação e vitalização do político que distinguem os totalitarismos modernos do Estado constitucional característico do século 19, com sua distribuição de poderes. A liberação revolucionária do poder político, sua libertação em relação às normas legais e morais tradicionais, perverte-o em pura tirania e arbítrio. Eis por que, se estivesse vivo hoje, possivelmente Fraenkel veria no Estado brasileiro contemporâneo as raízes do modelo dual por ele descrito.

Leia também “O Islã e o comunismo”

2 comentários
  1. Joviana Cavaliere Lorentz
    Joviana Cavaliere Lorentz

    Parabéns! Afirmo que, não por acaso, nossos representantes dos diretórios acadêmicos instalados no STF, desde muito frequentavam a Alemanha, líder hoje, saibam ou não, dessa distopia jurídica. As frequentes viagens para estudos de “processo judicial” já me assombravam naquela época.

  2. João Choucair Gomes
    João Choucair Gomes

    Ler Flávio Gordon é sempre ser alertado sobre pontos reveladores na história. Esse “Estado dual” do nazismo é o que estamos vivendo hoje. A mesma tática. Até quando?

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