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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 225

De volta ao Estado dual

O caso Juliana Dal Piva vs. Allan dos Santos e o Estado 'Excepcionalíssimo' de Direito brasileiro

Flávio Gordon
-

“O direito de expropriação é permitido apenas contra rebeldes e
inimigos. Mas em toda revolução tem sido regra rotular oponentes
políticos como inimigos da pátria e justificar completamente
privá-los de proteção legal e propriedade.”
(Carl Schmitt, teórico nazista do Direito)

“O governo insistia em dizer que reagia contra uma ameaça revolucionária, a qual requeria medidas emergenciais de curto prazo. Assegurava constantemente o público de que, uma vez passada a crise, o império da lei e as liberdades seriam restituídos na Alemanha. Restava óbvio, porém, mesmo ao tempo em que essas vagas promessas eram feitas, que as inovações introduzidas seriam características permanentes da ditadura de Hitler.”
(Robert Gellately, Backing Hitler: Consent and Coercion in Nazi Germany)

Uma reportagem de Oeste informa que Alexandre de Moraes será o relator da ação movida pela repórter Juliana Dal Piva contra o jornalista exilado Allan dos Santos. Segundo a parte autora, o réu teria falsificado e publicado um print screen de uma suposta troca de mensagens na qual, movida por interesse político, Piva desaconselhava um colega jornalista a publicar uma matéria denunciando irregularidades cometidas por Moraes e sua polícia federal particular na prisão política de Filipe Martins, ex-assessor de Assuntos Internacionais de Jair Bolsonaro.

Numa situação normal de prevalência de um Estado de Direito, obviamente, o caso deveria ser remetido a um tribunal de primeira instância, provavelmente um juizado especial (outrora chamado “de pequenas causas”), por se tratar de avaliar um possível crime contra a honra, uma causa de baixa complexidade. Mas, como estamos num Estado Excepcionalíssimo de Direito, no qual a jurisdição se tornou ilimitada no que diz respeito a certos atores e assuntos, a coisa se passou de outro modo bem diferente.

Sendo o réu considerado “bolsonarista” ou de “extrema direita” — e, portanto, um “inimigo” do Estado, da democracia, do amor, da Amazônia e do povo brasileiro —, a autora conseguiu fazer com que o caso “subisse” direto para a Suprema Corte. A petição enviada por seus advogados chegou até o atual presidente da Corte — aquele mesmo, que se jactou de ter “derrotado o bolsonarismo”. A partir daí, por coincidência, o caso foi cair justamente no colo do magistrado mais ativo e assumido no papel de “combater a extrema direita”, um magistrado que se enxerga como estando na mesma trincheira política da autora da ação, e que, assim como ela, concebe o réu como um inimigo a ser abatido.

Sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília (1º/3/2024) | Foto: Shutterstock

O leitor que acompanha esta coluna já deve ter notado que tudo isso nos remete ao tema do “Estado dual”, conceito do jurista alemão Ernst Fraenkel, sobre o qual tratei no artigo anterior. Diante do caso Juliana Dal Piva (e STF) vs. Allan dos Santos, é necessário retomar a análise de Fraenkel sobre a corrupção nacional-socialista do Direito alemão, pois, mutatis mutandis, há semelhanças simplesmente espantosas, na esfera do Direito, entre o que se passou na Alemanha a partir de 1933 e o que tem ocorrido no Brasil desde, ao menos, 2019.

Nos anos 1930, Fraenkel era um dos maiores juristas alemães operando o Direito em plena ascensão do regime nazista. Como judeu e crítico do regime, ele começou a se ver cada vez mais ameaçado no simples exercício da profissão. A partir das dificuldades enfrentadas nos processos nos quais estava envolvido, foi desenvolvendo uma teoria para descrever adequadamente a evolução da ditadura nazista a partir do Direito. Os primeiros esboços de sua teoria, redigidos em alemão, permaneceram escondidos durante muito tempo, por motivos óbvios.

Por volta de 1938, pouco antes do Anschluss, Fraenkel conseguiu escapar da Alemanha e se exilar nos EUA. Seus rascunhos sobre o modelo nazista de Estado resultaram no livro O Estado Dual, publicado originalmente em inglês, pela Oxford University Press, em 1941. Num contexto histórico e político inteiramente distinto, a obra foi retraduzida para o alemão, com um novo prefácio do autor. Nesse prefácio, Fraenkel diz ter concebido a obra num estado de “emigração interna” (“innere Emigration“), numa atmosfera de ilegalidade e terror. Baseando-se em fontes coletadas do período nazista, especialmente em decisões judiciais das cortes locais e da Suprema Corte, bem como em impressões extraídas do dia a dia da lida profissional no meio jurídico da Berlim dos anos 1930, ele sentia uma necessidade urgente de dar sentido teórico às experiências vividas, de modo a lidar existencialmente com elas.

Livro O Estado Dual, de Ernst Fraenkel | Foto: Divulgação

Eis o que o autor escreve no prefácio à edição alemã de 1974:

“Apesar de ser judeu, foi-me permitido, devido ao meu serviço militar durante a Primeira Guerra, exercer a advocacia mesmo após 1933. A ambivalência da minha existência burguesa fez com que eu estivesse particularmente atento à contradição do regime de Hitler. Embora, legalmente falando, fosse um membro igual da ordem dos advogados, onde quer que eu fosse, estava sujeito a assédios, discriminações e humilhações que emanavam exclusivamente do staatstragende Partei [literalmente, ‘partido político sustentador do Estado’, ou seja, o partido nazista no poder]. Qualquer pessoa que não fechasse os olhos para a realidade das práticas administrativas e judiciais da ditadura de Hitler, deve ter sido afetada pelo cinismo frívolo com o qual o Estado e o [partido nazista] questionavam, para esferas inteiras da vida, a validade da ordem jurídica, ao mesmo tempo em que aplicavam, com exatidão burocrática, exatamente as mesmas disposições legais em situações que eram consideradas diferentes […] Com base nos insights sobre o funcionamento do regime de Hitler que obtive da minha prática jurídica, acreditei ter encontrado uma chave para entender o sistema de governo nacional-socialista na dualidade ou existência concomitante de um “estado normativo” (Normenstaat) que geralmente respeita suas próprias leis, e um “estado prerrogativo” (Maßnahmenstaat) que viola essas mesmas leis.”

A carta constitucional do Terceiro Reich foi o Decreto de Emergência de 28 de fevereiro de 1933, publicado um dia após o incêndio do Reichstag. Com base nesse decreto, a esfera política da vida pública alemã foi removida da jurisdição da lei geral. Tribunais administrativos e gerais ajudaram na instauração dessa condição. O princípio básico orientador da administração política não era mais a justiça, e a lei passava a ser aplicada à luz das “circunstâncias do caso individual”, visando a um determinado objetivo político.

Como mostra Fraenkel, a esfera política no Terceiro Reich não era governada nem por lei objetiva, nem por lei subjetiva, nem por garantias legais e nem, tampouco, por qualificações jurisdicionais. Não existiam regras legais que limitassem a esfera política. Esta última era regida por medidas arbitrárias (Maßnahmen), nas quais os funcionários com poder exerciam suas prerrogativas discricionárias, donde a expressão “estado prerrogativo” (Maßnahmenstaat). O poder político era o critério definidor da jurisdição e da aplicação normal ou extraordinário da lei.

O Palácio do Reichstag, sede do Parlamento alemão em Berlim, queima enquanto os bombeiros tentam apagar o fogo (27/2/1933) | Foto: Wikimedia Commons

Fraenkel mostra que o golpe de Estado nazista não consistiu propriamente nem no incêndio do Reichstag em 27 de fevereiro de 1933, nem no Decreto de Emergência de 28 de fevereiro de 1933, mas especialmente no modo como o decreto foi executado. Três atos do presidente Hindenburg entre 30 de janeiro e 24 de março de 1933 facilitaram a vida dos nacional-socialistas: a nomeação de Hitler para o posto de chanceler do Reich, a proclamação de estado civil de sítio via Decreto do Incêndio do Reichstag e a assinatura da Lei de Plenos Poderes, de 24 de março de 1933. Dois desses atos dificilmente poderiam ter sido evitados, mas o terceiro foi totalmente voluntário. A nomeação de Hitler, o líder do partido mais forte, para o posto de chanceler do Reich estava em conformidade com a Constituição de Weimar; historicamente, a proclamação de um estado civil de sítio após o incêndio no Reichstag — em lugar de um estado militar de sítio — foi o ato decisivo da carreira de Hindenburg. Foi a consequência necessária do golpe de Estado instigado (com base no Decreto do Incêndio do Reichstag) quando Hindenburg assinou a lei de 24 de março de 1933, e assim fez soar o sino para o seu próprio finados.

Munidos dos poderes requeridos por um estado de sítio, os nacional-socialistas conseguiram transformar a ditadura constitucional e supostamente temporária (ou excepcionalíssima), destinada a restaurar a ordem pública, em uma ditadura inconstitucional e permanente, dotando o Estado nazista de meios ilimitados de imposição de sua vontade política. E tudo isso aconteceu graças a uma fragilidade da própria Constituição de Weimar. Como explica Fraenkel:

“Em contraste com a lei prussiana anterior, que continha disposições apenas para a lei marcial militar, a Constituição de Weimar conferiu ao Presidente o poder de decidir se ‘as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e ordem públicas’ seriam executadas por autoridades civis ou militares. Em conjunto com o tremendo poder conferido à ‘autoridade executiva’ pelas potencialidades de emissão de decretos do art. 48 da Constituição de Weimar, a decisão sobre se os ministros nacional-socialistas ou os generais conservadores da Reichswehr deveriam ser responsáveis por restaurar a ordem pública teve implicações muito graves. O fracasso de von Papen, Hugenberg e Blomberg em perceber a importância crítica dessa questão foi decisivo para definir seus destinos políticos. Claro que é inútil especular sobre possibilidades não realizadas; no entanto, uma coisa pode ser dita com certeza: em 28 de fevereiro de 1933, o poder de combate das tropas de assalto nacional-socialistas era insignificante em comparação com o poder da polícia e das forças armadas alemães (Reichswehr). Mas, quando Hitler conseguiu adicionar ao poder das tropas de assalto o poder de decreto da lei marcial, o incêndio do Reichstag tornou-se um sólido investimento político.”

Artilharia do Reichswehr, em 1933 | Foto: Wikimedia Commons

Portanto, resta claro que o golpe de Estado nazista foi tecnicamente facilitado pela prática executiva e judicial da República de Weimar. Isso porque, muito antes da ditadura de Hitler, os tribunais alemães já haviam decidido que questões relativas à necessidade e à conveniência da lei marcial não estavam sujeitas à revisão judicial. Sob esse aspecto, a lei alemã divergia de um princípio do Direito britânico, que delegava aos tribunais constitucionais o poder e o dever de decidir sobre a existência de um estado de guerra que justificasse a aplicação da lei marcial. (Ao que parece, o Brasil atual adotou uma mescla dos dois sistemas, uma vez que o Judiciário virou também uma espécie de Poder Executivo.)

Portanto, desde 28 de fevereiro de 1933, a Alemanha achava-se sob lei marcial, justificada pela necessidade excepcional de defesa do Estado e da ordem legal. Em si mesma, a lei marcial não necessariamente entrava em conflito com o Estado de Direito civil. Tradicionalmente, a lei marcial é tida por complementar o Estado de Direito. Nas situações em que o Estado de Direito é ameaçado, a lei marcial é invocada para restaurar a ordem constitucional necessária à existência desse Estado de Direito. Mas, como explica Fraenkel, a invocação constitucional da lei marcial exige que (1) o Estado de Direito civil seja ameaçado ou infringido; (2) a lei marcial seja declarada com a intenção de restaurar o Estado de Direito na data mais próxima possível; e (3) a lei marcial permaneça em vigor apenas até que o Estado de Direito seja restaurado.

Ora, o golpe de Estado de Hitler consistiu no fato de que os nacional-socialistas, na condição de partido dominante no governo, (1) não impediram, mas ajudaram a causar (quer tenha sido via operação de falsa bandeira ou por simples omissão interessada) a violação do Estado de Direito; (2) abusaram do estado de lei marcial que haviam promovido fraudulentamente para abolir a Constituição; e (3) mantiveram um estado permanente de lei marcial, apesar de suas garantias de que, comparada ao resto do mundo, a Alemanha era um “oásis de paz”. Ou seja, na Alemanha de Hitler, o amor tinha voltado, pero no mucho

Inauguração do Reichstag na Igreja Garrison, em Potsdam. O chanceler do Reich, Adolf Hitler (à frente), o vice-chanceler, von Papen (ao lado dele), e o ministro Goebbels (atrás dele) caminham diante do Reichswehr (21/3/1933) | Foto: Wikimedia Commons

Como mostra Fraenkel, alguns nacional-socialistas ocasionalmente admitiram que o incêndio do Reichstag viera em momento oportuno e que a ditadura temporária subsequente foi uma ocasião bem-vinda para a abolição do Estado de Direito civil. Esses porta-vozes do nacional-socialismo chegaram a confessar que a ameaça do comunismo foi apenas uma desculpa para a quebra das antigas leis.

Hamel, um especialista nazista em Direito Policial e professor de Direito Constitucional na Universidade de Colônia, diz que “a luta contra o comunismo apenas deu ao Estado nacional-socialista a oportunidade de derrubar barreiras que agora devem ser consideradas sem sentido”. A mesma atitude é expressa na declaração de Hamel de que a custódia protetora não é meramente incidental à revolução, desaparecendo com o retorno às condições normais ou sendo absorvida pelo Direito Penal geral. A ficção de que a custódia protetora é um meio necessário para lidar com os inimigos do Estado há muito foi abandonada. Agora é reconhecida pelo que realmente era no início, um meio de preservar o poder absoluto do partido nacional-socialista, ou seja, de estabelecer uma ditadura absoluta. Como este autor escreve: “Se a educação, a formação de uma visão nacionalista é a tarefa adequada do Estado, os meios de educação e especialmente o meio mais eficaz, a prisão, devem estar à disposição da polícia”. Portanto, não é surpreendente que Hamel afirme que “a custódia protetora é uma característica de um Estado verdadeiramente político, que é purgado de todos os traços de liberalismo”. A partir dessas declarações, podemos concluir que o campo de concentração não é apenas um componente essencial no funcionamento do Estado nacional-socialista, mas também uma indicação do caráter duradouro de sua ditadura soberana.

Os tribunais nazificados contornavam as restrições constitucionais ao poder político estabelecidas na Constituição de Weimar, especialmente no seu artigo 48 (referente aos direitos fundamentais inalienáveis), mediante uma grande variedade de argumentos

Algumas decisões judiciais descritas por Fraenkel mostram a que ponto a ideia de “direito do inimigo” estava consolidada na cultura jurídica alemã dos anos 1930. Uma decisão de 22 de outubro de 1934, por exemplo, lidava com procedimentos de expropriação. Discutia-se se a proteção legal à propriedade, garantida pelo artigo 153 da Constituição de Weimar, fora afetada pelo Decreto de 28 de fevereiro de 1933. Ficou então decidido que “o parágrafo 1º do Decreto suspendeu a garantia constitucional da propriedade (artigo 153 da Constituição de Weimar) até novo aviso”.

Adolf Hitler caminha diante da Companhia de Honra do Reichswehr, em frente ao Palácio Imperial, em Goslar, onde foi recebido pelo líder dos agricultores do Reich, Darre, pelo chefe do Estado-Maior, Lutze, pelo ministro Goebbels e pelo líder trabalhista do Reich, Hierl (30/9/1934) | Foto: Wikimedia Commons/Scherl Picture Service Berlim S.W.

A expressão “até novo aviso”, por realçar o caráter temporário do Decreto de 28 de fevereiro de 1933, irritou alguns juristas nazistas, a exemplo do professor Huber, titular da cátedra de Direito Constitucional na Universidade de Kiel. Ele declarou que “a legislação contemporânea usou os procedimentos formais da Constituição de Weimar por razões de ordem pública e segurança (legalidade), mas isso não significa que essa legislação esteja baseada na substância da Constituição de Weimar ou que derive daí a sua legitimidade”. Ou seja, na discussão jurídica sobre se o Decreto do Incêndio do Reichstag, baseado no artigo 48 da Constituição de Weimar, suspendia aqueles direitos fundamentais que essa mesma Constituição declarava como invioláveis, os nazistas começaram a se sagrar amplamente vitoriosos.

Os tribunais nazificados contornavam as restrições constitucionais ao poder político estabelecidas na Constituição de Weimar, especialmente no seu artigo 48 (referente aos direitos fundamentais inalienáveis), mediante uma grande variedade de argumentos. Por exemplo, embora o Reichsgericht (a Suprema Corte), em uma decisão de 24 de setembro de 1935, tivesse aceitado a validade do artigo 137 (que assegurava o direito fundamental à liberdade de crença e de culto), não o interpretou como incluindo a liberdade irrestrita de associação religiosa, e decidiu autorizar a supressão de uma série de igrejas e denominações religiosas cristãs (sobretudo aquelas não alinhadas ao regime). “Concedida a validade do artigo 137” — disse o tribunal —, “sua aplicação correta não impede a supressão de uma associação religiosa se as atividades dessa associação forem incompatíveis com a ordem pública”. A decisão colocava até mesmo esse direito fundamental à disposição do poder policial, e a liberdade religiosa passava a se reduzir à categoria de direitos dependentes da discrição das autoridades do Reich.

Mas a coisa só piorou, quando direitos fundamentais deixaram de ser sequer reconhecidos. Num caso citado por Fraenkel, por exemplo, tanto o Reichsgericht quanto o Oberverwaltungsgericht (o Tribunal Superior Administrativo da Prússia) simplesmente aboliram o direito do funcionário público de examinar os seus registros oficiais. O tribunal decidiu:

“O artigo 129, seção 3, sentença da Constituição de Weimar concede ao funcionário público o direito de examinar seu registro oficial. Esta disposição está em contradição com a concepção nacional-socialista da relação entre funcionário público e Estado, e, sem legislação especial, portanto, não está mais em vigor. O princípio de liderança não admite o questionamento e a crítica das decisões de seus superiores pelo funcionário público.”

Edifício do Reichsgericht, em Leipzig, na Alemanha (entre 1925 e 1933) | Foto: Wikimedia Commons

Na aplicação do Decreto de 28 de fevereiro de 1933, a polícia já não estava mais vinculada às disposições da Constituição nem a qualquer outra lei. Em uma decisão de 31 de maio de 1935, o Supremo Tribunal da Prússia (Kammergericht) afirmou que “o Decreto Executivo Prussiano de 3 de março de 1933 não deixa dúvidas de que o parágrafo 1º do Decreto de 28 de fevereiro de 1933 remove todas as restrições federais e estaduais sobre o poder da polícia, na extensão necessária para a execução dos objetivos promulgados no decreto. A questão da adequação e necessidade não está sujeita a recurso”. Essa decisão foi uma que ajudou a determinar a jurisprudência seguida por todos os demais tribunais alemães.

Recorrendo à concepção da “autodefesa do Estado”, por exemplo, o Tribunal Superior do Trabalho (Reichsarbeitsgericht) rejeitou a ação de um funcionário da delegação comercial soviética, que havia sido demitido por um comissário nomeado pela polícia. Indeferindo a ação, o tribunal reconheceu o direito do comissário de demitir funcionários com a seguinte justificação:

“É duvidoso se o poder da polícia em condições normais permite ao Ministro do Interior da Prússia conferir a um Comissário Estatal poderes tão amplos. No entanto, mesmo que a nomeação não pudesse ser mantida sob o Decreto de 28 de fevereiro de 1933, poderia ser justificada com referência às necessidades da autodefesa do Estado […] No primeiro semestre do ano de 1933, a situação do Estado nacional-socialista não podia ser considerada segura. Enquanto a ameaça comunista durasse, o estado de insegurança continuava e necessitava da extensão dos poderes da polícia além de seus limites regulares.”

Também o caráter limitado do objeto contra o qual o Decreto havido sido concebido — o comunismo — começou a ser relativizado. Segundo Fraenkel:

“Hamel declara que essa interpretação do Decreto de 28 de fevereiro de 1933 é errônea. ‘Seria um erro’, escreve ele, ‘assumir que as autoridades estão livres das amarras liberais apenas na luta contra o comunismo. As restrições liberais não são apenas suspensas pelas leis para o combate ao comunismo; elas são abolidas sem reservas’.”

Kammergericht, em Berlim (15/3/1938) | Foto: Wikimedia Commons

Para justificar sua aplicação a igrejas, seitas, movimentos antivacina, escoteiros etc., o Supremo Tribunal da Prússia (Kammergericht) criou a teoria do “perigo comunista indireto”. Uma decisão de 8 de dezembro de 1935, da divisão criminal do Supremo Tribunal da Prússia, por exemplo, reverteu uma decisão do Tribunal Municipal de Hagen que absolvera os membros de uma organização juvenil católica. Os réus haviam participado de excursões e concursos esportivos. A acusação alegava que, ao fazê-lo, eles haviam violado uma ordenança emitida pelo presidente do Distrito, baseada no Decreto de 28 de fevereiro de 1933. A decisão declarou que o objetivo do nacional-socialismo era a concretização do ideal de “comunidade étnica” (Volksgemeinschaft) e a eliminação de todos os conflitos e tensões. Por essa razão, manifestações de diferenças religiosas, além das atividades eclesiásticas no sentido mais estrito, eram desaprovadas pelo regime. Segundo a decisão do Kammergericht: “Esse tipo de acentuação das clivagens existentes carrega em si o germe da desintegração do povo alemão. Tal desintegração só ajudará na disseminação dos objetivos comunistas”.

Ou seja, o fato de os réus se oporem diretamente ao ateísmo comunista não os livrou da condenação por “atividades comunistas indiretas”, porque, segundo o tribunal, a expressão pública de uma opinião privada pode muito facilmente servir para encorajar pessoas que acreditam ou simpatizam com o comunismo ou que são politicamente indecisas. Esse encorajamento as levará a formar e difundir a opinião de que o Estado nacional-socialista não é apoiado pela totalidade do povo.

A partir dali, todos os tribunais passaram a adotar acriticamente essa curiosa tese. Em uma decisão de 9 de setembro de 1936, o Tribunal Administrativo de Württemberg, lidando com o Trabalho Missionário da Igreja Protestante, abandonou toda a pretensão de conexão entre as ações policiais (baseadas no Decreto do Incêndio do Reichstag) e a campanha anticomunista — uma conexão que ficava cada vez mais difícil de demonstrar —, declarando de forma direta que “o decreto não foi destinado exclusivamente como proteção contra a ameaça do comunismo, mas contra qualquer perigo para a segurança pública e a ordem, independentemente de sua origem”. Essa decisão ressaltou uma interpretação que já havia sido antecipada pelo Tribunal Distrital de Berlim quando, em 1º de novembro de 1933, declarou que “todos os ataques à segurança pública e à ordem devem ser considerados como comunistas em um sentido mais amplo”. Ora, depois de testemunhar a inclusão de um empresário norte-americano num inquérito no Brasil por suposta associação ao “bolsonarismo” e “ataques” à nossa democracia, o leitor certamente não está surpreso…

* * *

Obs.: a obra de Fraenkel, publicada em 1941, só agora, na virada de 2023 para 2024, foi traduzida no Brasil por uma editora progressista. Celebrada por juristas simpáticos às ações excepcionalíssimas do STF “em defesa da democracia”, quase se poderia pensar que a descrição crítica de Fraenkel está sendo usada aqui como manual de instrução.

Obs. 2: em agosto de 2023, os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes participaram de um evento internacional organizado por Mendes e significativamente intitulado “democracia defensiva”. Na ocasião, Moraes disse abertamente ter como objetivo enfrentar o que chamou de “extrema direita”. O evento ocorreu na Alemanha.

Leia também “Um país rumo a um Estado totalitário”

7 comentários
  1. RENATO LUCIO MARTINS
    RENATO LUCIO MARTINS

    Flávio Gordon, denso e claro ao mesmo tempo. Muito bom, e o fechamento é espantosamente relacionado aos nossos dias! Parabéns .

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Muito bom, Flávio Gordon.
    Fechou com chave de ouro o texto com o arremate da observação 2.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Artigo sensacional. Parabéns. Por isso que alguns ministros que hoje estão no STF, amam, gostam tanto de mencionar a Alemanha em suas falas. A falta que um impeachment faz.

  4. Marbov
    Marbov

    O incêndio do Reichstag seria o nosso 8 de janeiro, o dia da infâmia.

  5. Emilio Sani
    Emilio Sani

    no dia 8 de Janeiro em torno das 21 horas eu já chamei o que havia ocorrido de “Incêndio do Reichstag tupiniquim”…acertei em cheio, só que aqui o chefão faz turismo internacional com a janjita e deixa o trabalho sujo para o segundo psicopata, o X..dão, que se vê agora sem saída por ter feito acordo com o demo

  6. JORGE LUIS
    JORGE LUIS

    Bah! tem cara que sabe das coisas, nós leigos, ficamos chupando o dedo, mas ainda temos a chance de aprender, é só querer, mas quem não tem essa possibilidade, faz o quê? Parabéns, Flávio Gordon, excelente texto.

  7. Mauro Maretto
    Mauro Maretto

    A observação 2 é de dar calafrios…

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