Senilidade e poder

O presidente Lula vai completar 80 anos nas próximas eleições, e o último mês não foi nada bom para um certo presidente que tem mais ou menos a mesma idade.

Não fiquei muito impressionado com o intelecto ou a honestidade do presidente Biden, mesmo quando não havia dúvidas sobre sua senilidade, e não admiro homens que passam 50 anos dedicados exclusivamente à busca ou ao exercício de cargos e poder. Mas, quando o vejo ou o ouço perder o raciocínio do que está dizendo no meio da frase, ficar paralisado como Boris Karloff interpretando o monstro de Frankenstein, começar a vagar como um garoto perdido ou afirmar ter sido a primeira mulher negra vice-presidente dos Estados Unidos, vejo ou ouço apenas um pobre senhor. Lembro-me da oração de Moisés Maimônides, o médico, rabino e filósofo judeu do século 12 que viveu na Espanha até ser expulso por se recusar a se converter ao Islamismo: “Que eu nunca veja em um paciente nada além de um ser humano sofredor”. Se antes eu desprezava o presidente Biden, agora é isso que acho dele.

Diante das circunstâncias, não podemos deixar de nos perguntar se a determinação de Biden de se candidatar de novo às eleições foi realmente escolha própria, ou se ele estava sendo forçado por pessoas que o apoiavam — o ex-presidente Obama, por exemplo, que, diferentemente do costume de ex-presidentes americanos, decidiu permanecer em Washington, D.C. E há também a primeira-dama, conhecida em alguns setores como Lady Macbeth.

Coração duro, cultura rude

Depois do desempenho desastroso no debate com Donald Trump, Jill Biden foi falar com o marido no palco, diante da plateia, e disse que ele havia se saído muito bem. “Você respondeu a todas as perguntas”, disse ela, como se Biden fosse uma criança de 9 anos que acabou de fazer uma prova de conhecimentos gerais. Quando ela disse isso, um sorriso de prazer senil surgiu no rosto do presidente, o mesmo sorriso que eu abria quando minha professora do ensino fundamental me dava uma estrela por ter feito um bom trabalho. Quando ela se virou para o público, o sorriso desapareceu e foi substituído por um olhar de leve perplexidade. Fiquei horrorizado com ela, mas triste por ele.

Pouco tempo antes Trump havia zombado da suposta senilidade de Biden ao imitar um homem senil vagando sem saber onde estava ou o que estava fazendo. Seu público de apoiadores — ele não costuma conversar com mais ninguém — morreu de rir. Eles acharam hilário, embora não tenha sido uma performance muito boa do ponto de vista puramente teatral.

Essa zombaria não abona nem Trump nem seu público, porque só pessoas más zombam dos senis por sua senilidade. Fazer isso demonstra um coração duro e uma cultura rude, não é muito melhor do que zombar de um leproso por sua aparência ou de uma pessoa com paralisia cerebral por suas contorções físicas. E demonstra uma falta de escrúpulos e de discernimento, além de ser idiota.

Piada de mau gosto

A única coisa pela qual Biden não é responsável é a própria senilidade. Sendo assim, essa é a única coisa pela qual ele não deve ser criticado, embora seja uma questão de preocupação legítima, que deve ser abordada com tato e talvez até com pesar. Um homem senil não está apto a desempenhar funções, claro. E aqueles que o acobertam ou negam publicamente sua senilidade estão cometendo uma falha culposa no cumprimento de seu dever. Mas esse é outro assunto.

Não deveria ser necessário fazer nenhuma análise filosófica profunda para concluir que rir de pessoas senis é inaceitável

Ou Trump acreditou que Biden estava senil, ou não. Se acreditou, uma zombaria como aquela foi uma reação inadmissível. Se não acreditou, foi uma piada de mau gosto e, além do mais, um insulto tanto às pessoas que estão senis quanto a quem cuida delas, cujo sofrimento talvez seja maior do que o dos próprios senis.

O fato de a plateia ter rido muito foi assustador. Não deveria ser necessário fazer nenhuma análise filosófica profunda para concluir que rir de pessoas senis é inaceitável. Não se trata de correção política, mas de decência humana básica e, nesse caso, o presidente Trump não teve nenhuma, preferindo uma risada barata à decência. Não se satiriza alguém por ser estrábico ou por ter uma corcunda, embora nenhum deles deva ser poupado se fizer algo ruim.

Exames cognitivos anuais

Talvez eu seja um pouco sensível a esse assunto porque não estou muito longe da idade dos dois. Houve um tempo em que uma diferença de três a cinco anos teria me parecido imensa: quando era estudante do primeiro ano de medicina, por exemplo, eu me lembro de pensar que os alunos do último ano estavam eras à minha frente e que eu nunca chegaria ao nível deles. Agora, os anos tendem a se misturar, e o que considero recente, para os padrões de um jovem, na verdade aconteceu há muito tempo. Quando ando pela rua, não consigo acompanhar um jovem de 20 anos, mesmo que ele não esteja necessariamente com pressa.

Eu não gostaria que ninguém achasse que sou mentalmente incapaz em virtude de minha idade. Fico até um pouco irritado com o fato de que agora, a cada três anos, preciso mandar um atestado médico para manter minha carteira de motorista. Fico irritado, mesmo sendo capaz de entender o bom senso nisso. No momento, não tem sido muito difícil conseguir o atestado: basta declarar, por conta própria e como cidadão honesto, que não sofro de certas doenças que surgem com a idade e tornam dirigir um problema. Mas em breve vou precisar fazer um exame médico de fato.

Mesmo que eu não ocupe nenhum cargo de responsabilidade, não acho que seja incapaz de exercê-lo apenas em função da minha idade. (Tampouco se pode dizer com que idade exatamente, depois da infância e da adolescência, uma pessoa é jovem demais para exercer autoridade). O presidente Lula não deveria ser desqualificado para o cargo só porque terá 80 anos na próxima eleição, mas não acho irracional que ele seja obrigado a se submeter a exames cognitivos anuais para garantir que ainda esteja à altura da Presidência.

No entanto, há dois problemas com essa proposta. Os testes cognitivos não fornecem resultados do tipo tudo ou nada, um limite específico a partir do qual uma pessoa se torna incapaz de desempenhar uma tarefa qualquer, muito menos a Presidência de um país, e nenhum procedimento científico poderia determinar isso. Portanto, a nota de corte precisaria ser definida arbitrariamente com antecedência, e tudo o que é arbitrário dá margem a controvérsias. Em segundo lugar, as pessoas que realizam o teste teriam de ser da mais alta integridade, indiferentes ou não influenciadas por suas próprias opiniões políticas. Será que essas pessoas existem?

---

Theodore Dalrymple é pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor de mais de 30 livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações) estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.

Leia também “O rap do fascismo”