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Cena do filme Babilônia (2022) | Foto: Reprodução
Edição 227

O cinema e a permanente necessidade de mudar

O filme Babilônia mostra o drama de quem prefere permanecer acomodado em um eterno passado

Dagomir Marquezi
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Um dia, todas as pessoas que estiverem nos filmes rodados neste ano estarão mortas. E um dia todos os filmes serão retirados dos seus jazigos e todos os seus fantasmas jantarão juntos, viverão suas aventuras juntos, irão juntos para a selva ou para a guerra. Uma criança nascida daqui a 50 anos irá se deparar com a sua imagem cintilando numa tela e sentirá que o conhece, como um amigo, mesmo que você tenha dado seu último suspiro antes de ela respirar pela primeira vez. Seu tempo hoje acabou, mas passará sua eternidade com anjos e fantasmas.”
(Elinor St. John, personagem do filme Babilônia)

Fantasmas nos assombram o tempo todo. Especialmente numa era de mudanças extremamente rápidas. Eles surgem de um passado confortável quando as coisas pareciam mais certas e bem resolvidas. Hoje, se você piscar, ficará para trás. Se cochilar, não entenderá mais nada do mundo ao seu redor. Seu tempo terá acabado.

Babilônia (2022) parece um filme sobre orgias e exageros, e está repleto de excessos desde seus primeiros minutos. Dura três horas e nove minutos. É um filme sobre mudanças. E sobre a tragédia de quem não consegue se adaptar a elas. 

Foi escrito e dirigido por Damien Chazelle, um jovem cineasta que apareceu para o mundo com Whiplash (2013), um filme sobre um baterista atormentado pelo seu professor. E que depois fez La La Land (2016), uma homenagem contemporânea aos musicais, vencedor do Oscar de Melhor Filme.

É difícil acreditar, mas tudo o que acontece em Babilônia é baseado em fatos. Durante os anos 1920, não havia qualquer sistema de censura em Hollywood, e os filmes ultrapassavam limites sem maiores problemas. A vida fora das telas também não tinha freios. O dinheiro farto comprava festas que pareciam orgias romanas, com muito sexo, drogas, bebidas e jazz selvagem. 

Foto: Divulgação

Babilônia segue a carreira de três personagens típicos do cinema mudo. Jack Conrad (Brad Pitt) é o galã estabelecido, com dezenas de filmes na carreira, alcoólatra e que troca de esposa como quem troca de roupa. Nellie LaRoy (Margot Robbie) é uma atriz sexy com potencial, mas afundada na cocaína e viciada em jogo. Manny Torres (Diego Torres) representa o imigrante hispânico que começa fazendo trabalhos humilhantes (como na primeira cena), mas ganha a confiança do sistema e sobe na vida. Parece incrível, mas todos os personagens, com todos os excessos, são baseados em pessoas reais da época.

Essa loucura estava bem estabelecida nas imensas mansões ao redor de Los Angeles. A farra com champanhe e caviar parecia durar para sempre, pois, como sabemos, não há business como o show business. O cinema era mudo, com os atores dizendo coisas que o espectador lia em pequenos cartazes entre uma fala e outra. Bastava filmar, editar e colocar uma música para cobrir tudo.

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A vez do som

A indústria do cinema, acomodada nessa fórmula, leva um susto em 1927 quando é lançado The Jazz Singer (com Al Jolson), o primeiro filme sonoro. Agora era possível gravar as falas do ator, o som ambiente, os efeitos. O cinema é virado de cabeça para baixo. Tudo o que era lei deixa de ser. “Vocês não ouviram nada ainda”, diz Jolson na cena que mudaria tudo.

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Uma das melhores cenas de Babilônia mostra a primeira filmagem com som da atriz Nellie LaRoy. Filmar antes disso era um processo relativamente fácil — bastava enquadrar bem, orientar os atores e deixar a câmera rodando. Agora era preciso modular a voz do ator, não permitir qualquer ruído no estúdio, evitar que alguém entrasse de surpresa, desligar o ar-condicionado, impedir espirros, posicionar-se rigidamente no cenário. Uma cena que mostrava Nellie entrando num quarto, depositando a mala no chão e falando ao telefone teve que ser repetida muitas e muitas vezes até dar certo em meio ao desespero geral.

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O clássico Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952) trata da mesma passagem para o cinema falado. Uma atriz que fazia grande sucesso nos filmes mudos revela ter uma voz horrível e precisa ser dublada — o que determina sua decadência na aristocracia de Hollywood. Outro clássico, Sunset Boulevard (1950) mostra o enlouquecimento de uma deusa do cinema mudo, Norma Desmond (Gloria Swanson), que jamais se adaptou à era do som. “Eu sou grande”, diz ela na sua frase mais famosa. “Os filmes que ficaram pequenos.”

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O exterminador do passado

Essa negação em encarar a evolução trouxe a desgraça para muitos, em muitas áreas. Numa das cenas mais polêmicas e delirantes de Babilônia, o personagem Manny Torres está num cinema de Los Angeles assistindo a uma sessão lotada de Cantando da Chuva, já na década de 1950.

Manny chora de emoção, pois ele presenciou passo a passo e participou da épica mudança para o cinema sonoro. Numa premonição, ele “enxerga” as mudanças que estão por vir — o cinema technicolor, a tela panorâmica, o uso de computadores em Tron (1982), O Exterminador do Futuro (1984) e Avatar (2009).

Em sua alucinação, Manny foi incapaz de chegar à fase em que filmes começaram a ser inteiramente criados e produzidos por inteligência artificial. Jamais poderia imaginar que eles não precisariam mais de projetores mecânicos, salas de cinema e telões gigantes. E que cem anos depois estariam disponíveis aos montes na casa de qualquer um e em telefones portáteis através de uma coisa invisível chamada “internet”. 

Esses personagens de Babilônia jamais poderiam imaginar que um dia uma gigantesca produção como 300 (2006) pudesse ser quase toda realizada em salas com telas azuis em coordenação com computadores.

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Banheiros de pets

Babilônia e a história do cinema estão aqui presentes como um exemplo. A resistência ao avanço tecnológico pode ser uma tragédia em qualquer área da atividade humana. Impérios editoriais desabaram porque não acreditavam que a digitalização iria substituir o papel. “O papel jamais vai acabar”, diziam. Hoje, jornais impressos são vendidos nas bancas como “banheiros de pets”.

O mesmo aconteceu com tantas outras atividades humanas: bancos, comunicações, artes, educação, transportes — praticamente tudo. Tudo foi digitalizado, tudo virou aplicativo de celular, tudo passou a ser veiculado pela internet. 

O “cinema sonoro” do momento é a inteligência artificial. “Vai acabar com o mundo.” Por enquanto, só está acabando com o futuro de quem se negar a aceitar sua existência.

A opção é de cada um. Para algumas pessoas, cada novo desafio é um salto evolutivo. Outros preferem permanecer acomodados em um eterno passado habitado por anjos e fantasmas.

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@dagomir
dagomirmarquezi.com

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4 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Isso é uma evidência, a tecnologia é inerente a evolução, coisas intrínsecas

  2. Alberto Junior
    Alberto Junior

    Pelo visto, Dagomir decidiu promover uma cruzada em prol daquilo que chamam de IA. Mas não faz sentido envolver-se nessa guerra santa. Ninguém, em sã consciência (algo incapaz ao algoritmo que chamam de IA), deveria ser contra o desenvolvimento tecnológico, pois o próprio surgimento da consciência nos seres humanos está associado ao fabrico de instrumentos (fabricar é pensar, fabricação pressupõe um pensamento refletido, o início do processo de abstração conceitual – algo igualmente incapaz ao algoritmo que chamam de IA). O algoritmo, base do funcionamento do computador, opera segundo a álgebra booleana, que estabeleceu regras simples e de fácil implementação tecnológica, na qual, com apenas duas variáveis (verdadeiro e falso) e as relações entre si, formam um padrão sob medida para o funcionamento dos circuitos eletrônicos: impulsos elétricos (voltagens) diferentes representam facilmente os estados verdadeiro (1) e falso (0). Porém, se esse algoritmo proporciona operações lógicas para o funcionamento do computador do tipo que usamos no dia-a-dia, esse recurso esbarra no limite da ação consciente que ele não desfruta, o que o impossibilita de ter gosto, de fazer julgamento qualitativo, de fazer julgamento de valor, de tomar uma decisão apaixonada, de fazer um juízo estético, pois tudo isso pressupõe a capacidade de decidir a partir da impressão sensorial de um corpo e uma mente que sente e pensa. Aliás, o exemplo da solução para contornar a voz esganiçada da personagem no filme “Cantando na chuva”, é típica de uma estratégia genial que está além do que o algoritmo pode oferecer, pois trata-se de um salto criativo (eureca!) cujo tipo de conexão neural demonstra um grau de flexibilidade e adaptabilidade só possível ao sistema nervoso humano, plasticidade que permite sua reordenação constante e assim poder lidar com a incomensurabilidade de paradigmas com que frequentemente se depara e exige um pensamento inspirado, quando o critério estético, inseparável do pensamento consciente, lança mão de recursos como a intuição e a contra-intuição para alcançar o nexo improvável – combinação de emoções e sentimentos (associados a aparelhagem corporal) com o pensamento abstrato e conceitual (associado ao andar de cima da mente). Na síntese cognitiva humana entram muitos fatores inconscientes que integram o processo de julgamento, essencialmente não-algorítmico. O campo das artes visuais é repleto de situações desse tipo devido a natureza intrínseca à imaginação poética, área da criação humana cuja materialização plástica é dependente de recursos técnicos, cuja maior eficiência resulta em maiores efeitos artísticos (Walt Disney foi um entusiasta do advento do som no cinema, que colaborou para tirar o desenho animado da periferia da indústria cinematográfica). Para terminar, um exemplo prático de limitação algorítmica na informática é a utilização do modelo de implementação da cor no computador (conhecido como RGB). Apesar da fabulosa quantidade de cores geradas (mais de 16 milhões), não se compara ao processo de formação da cor por pigmentação, presente nas tintas opacas da pintura tradicional. Embora o processo de formação da cor por pigmentação seja o mais completo sistema de formação da cor no mundo físico, a simplicidade e eficiência do modelo RGB foi decisiva para sua escolha pela indústria eletrônica. Ou seja, o algoritmo é, necessariamente, sempre limitado por sua própria natureza formal, mecânica. Evidentemente, nada disso tira o poder revolucionário da informática, tecnologia que empurra a eficiência do trabalho humano para limites que ainda mal delineamos – com as devidas consequências para o bem e para o mal, que devem ser devidamente mediadas pelo julgamento consciente (não-algorítmico) humano.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Para bem ou para mal, temos que nos adaptar as modernas tecnologias.

  4. Carlos Pinto de Sampaio
    Carlos Pinto de Sampaio

    Parabéns Dagomir!!!
    Excelente analogia….

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