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CrowdStrike, empresa de segurança cibernética, causa prejuízo de milhões após apagão | Ilustração: Revista Oeste/Gerada por IA
Edição 228

A tela azul da morte

Uma falha de software atrapalhou a vida de milhões e mostrou quanto estamos dependentes da tecnologia

Dagomir Marquezi
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Às 3 da madrugada de sexta-feira, 19 de julho, George Kurtz (CEO da CrowdStrike) recebeu uma ligação do presidente da empresa, Michael Sentonas: “Temos um problema”.

Eram, na verdade, 8,5 milhões de problemas. Uma falha na atualização do Windows havia paralisado computadores ao redor do mundo. Setores vitais, como hospitais, aeroportos, transportes urbanos e administração pública, estavam parados. Profissionais de tecnologia da informação (TI) eram caçados por todas as empresas para resolver a questão. Mas não conseguiam.

As telas dos computadores ficaram azuis, com um grande emoji fazendo uma carinha triste. Essa tela é temida por técnicos em todo o mundo. Ficou conhecida como “a tela azul da morte”. A mensagem que exibe é (tecnologicamente) sinistra:

Seu PC enfrentou um problema e precisa ser reinicializado. Nós estamos coletando algumas informações de erro, e então reiniciaremos. Para mais informações sobre esse caso e possíveis acertos, visite nosso site. Se você chamar algum técnico, dê a ele a seguinte informação: Código de Parada: PROCESSO CRÍTICO MORREU.”

Tela azul da morte, apresentada no sistema operacional Windows em caso de erro grave de sistema | Foto: Shutterstock

Essa mensagem revela muito da cultura da Microsoft. No ano que vem a empresa vai completar 50 anos de existência, e eles continuam com dificuldades para falar com o usuário comum e se adaptar a novos tempos. Falta imaginação e senso comum a um sistema usado em 72% dos computadores do mundo. Falam em “nerdês”, às vezes sem muita lógica. “Para mais informações sobre esse caso e possíveis acertos, visite nosso site.” Como, se o computador “morreu”?! 

Desastre em quatro partes

A descrição que Robert McMillan, do WSJ, faz da “tela azul da morte” é assustadora: “Eles chamam isso de bricking, quando seu computador se torna tão útil quanto um tijolo. Isso aconteceu com todos os tipos de computadores ao redor do mundo. O que tornou isso tão complicado é que, para consertar o problema, você não podia simplesmente reiniciá-lo. Muitas vezes, com a tela azul da morte, você simplesmente começa tudo de novo e tudo funciona bem, mas neste caso você teve que ir fisicamente até a máquina, teve que iniciá-la de uma certa maneira, então teve que entrar cirurgicamente e remover um arquivo”.

Às 5h45 da madrugada daquela sexta, o CEO avisou ao mundo, via X/Twitter, que o sistema não havia sido contaminado por hackers. Era um problema técnico da CrowdStrike. 

A empresa deu uma explicação altamente técnica sobre o ocorrido. (Que não chegou a afetar efetivamente o Brasil.) Resumindo, podemos dizer que 1) a CrowdStrike serve como uma defesa final do sistema Windows contra ataques de hackers e vírus; 2) para ter eficiência total, a CrowdStrike funciona na parte mais vital do Windows, seu processo de inicialização; 3) como tudo mais do Windows, a CrowdStrike precisa ser atualizada constantemente; 4) a atualização do dia 19 de julho tinha um bug que causou a paralisação de todos os PCs em que chegou a ser instalada.

A senha de Bill Gates

A CrowdStrike, com sede em Austin, no Texas, não é nenhuma firma de fundo de quintal. Fundada em 2011, se especializou em segurança de alto nível de complexos sistemas empresariais. Hoje, é avaliada em US$ 73 bilhões, tem quase 8 mil funcionários e domina quase 15% do mercado global de softwares de segurança.

Seu CEO, George Kurtz, construiu a carreira fazendo o papel de hacker para empresas que queriam testar a própria segurança. A função de sua equipe era penetrar nas defesas das empresas e achar seus pontos fracos. Era competente a ponto de descobrir a senha de Bill Gates na Microsoft: “nicejobms”.

George Kurtz, CEO da CrowdStrike | Foto: Seb Daly/Flickr

A crise do dia 19 é resultado da soma de vários fatores. Os computadores da Apple não foram afetados, pois funcionam num ambiente “fechado”, onde só a Apple entra. É uma das razões de os computadores da empresa serem mais caros.

Os computadores que usam Windows são aproximadamente 72% do mercado mundial. Ao contrário da Apple, o Windows é aberto à parceria de outras empresas, como a CrowdStrike. Essa abertura se tornou obrigatória especialmente depois que burocratas da Comissão Europeia decidiram, em 2011, que a Microsoft era “monopolista” e precisava abrir seus códigos.

A conta de US$ 500 milhões

As consequências do apagão de 19 de julho se espalharam pelo mundo, segundo a revista TechLife News: “Portos de Nova York a Los Angeles e Rotterdam experimentaram paralisações temporárias, enquanto o transporte aéreo sofreu o maior golpe, com milhares de voos cancelados ou adiados”.

A cadeia de suprimentos de semicondutores, uma das mais vitais para a economia global, foi particularmente atingida pela paralisação do transporte aéreo de carga. Empresas gigantes, como Goldman Sachs, Walmart, ExxonMobil e Bank of America, foram lesadas. Foram adiados mais de 42 mil voos e cancelados 4,7 mil, segundo o site de segurança aérea FlightAware.

Uma das empresas aéreas mais afetadas foi a Delta. Na última quarta, dia 31 de julho, Ed Bastian, CEO da Delta, passou o tamanho da conta que será mandada para a CrowdStrike e a Microsoft: US$ 500 milhões pelo cancelamento de “milhares” de voos nos dias de crise. Bastian não se refere apenas aos cancelamentos de voos, mas também “às dezenas de milhões de dólares por dia em compensações e hotéis. Nós fizemos todo o possível para cuidar de nossos clientes nesse período”.

Achando o culpado

Os jornalistas de tecnoologia Jessica Mendoza e Robert McMillan, do Wall Street Journal, conversaram a respeito dessa crise no podcast The Journal. Eles fizeram um balanço preocupante das consequências de um dia difícil: 

“Pararam de funcionar 8,5 milhões de computadores ao redor do mundo. Muitos de nós acordamos nesta manhã [do dia 19] e descobrimos que perdemos o acesso ao banco móvel, talvez até mesmo ao uso de cartões de débito e crédito. Cirurgias não urgentes foram adiadas em hospitais por todo o país. Passaportes não puderam ser verificados, então IDs não puderam ser processadas. Afetou bancos, o serviço de entregas UPS, o Starbucks, a Tesla, o serviço de transporte público de Nova York. A Sky News saiu do ar. Sistemas de distribuição de bagagem nos aeroportos pararam de funcionar.”

Aeroporto Internacional de San José, na Califórnia, mostra a temida “tela azul da morte” da Microsoft | Foto: Reprodução/X

Segundo McMillan, a culpa pelo que aconteceu é definitivamente da CrowdStrike. Reflexo disso é que o preço de suas ações caiu 25% desde o dia fatal. Mas, se quiser que isso não aconteça novamente, a Microsoft vai ter que trabalhar duro para isolar os efeitos de uma pane em programas como o da CrowdStrike — que já prometeu em comunicado público que vai realizar vários testes antes de lançar uma nova atualização. 

Estamos atravessando uma era de enormes transformações tecnológicas, e a cada falha surge uma correção aperfeiçoada

O Uber e o táxi

O incidente causou prejuízo para muita gente, fez milhares de pessoas esperarem por muitas horas em saguões de aeroportos, olhando ansiosamente os monitores, que exibiam a “tela azul da morte”. Em compensação, ninguém morreu, não houve nenhuma grande catástrofe e em algumas horas o problema começou a ser resolvido.

O episódio tende a ser esquecido, e provavelmente a CrowdStrike vai recuperar com o tempo seu bom nome no mercado. Mas esse 19 de julho fez o mundo refletir um pouco sobre a dependência que temos hoje de computadores, celulares e da internet. 

É assustador? É. Motivo de pânico? Não. Estamos atravessando uma era de enormes transformações tecnológicas, e a cada falha surge uma correção aperfeiçoada. Até que surja outra falha (ou ataque), e assim a vida segue. Imaginar uma vida sem computadores e celulares é um convite a pesadelos.

Mas a tela azul serviu para ligar um alerta. Renunciar à tecnologia é um ato impensável hoje em dia. Mas é importante repensar algumas atitudes e pensar em alternativas. Temos a facilidade do Uber na tela do celular. Mas é bom saber onde fica o ponto de táxi mais próximo.

Algum dinheiro no bolso

A crise levantou uma questão que andava adormecida. O jornal britânico The Times consultou especialistas que se mostraram preocupados com o desaparecimento do papel-moeda, hoje substituído cada dia mais pelo muito mais prático dinheiro digital. 

No caso do Reino Unido, apenas 12% de todos os pagamentos realizados em 2023 foram realizados em cash. No Brasil, esse número caiu de 48% em 2019 (antes do Pix) para 22% no ano passado. Segundo a empresa de consultoria Worldplay, chegaremos aos mesmos 12% do Reino Unido em 2027. Na Noruega, apenas 4% das transações são feitas em cash. Na Austrália e na China, 7%. 

O uso de papel-moeda tem diminuído em várias partes do mundo, o que pode gerar complicações e aumentar os problemas relacionados a falhas de segurança cibernética | Foto: Shutterstock

O dinheiro digital é muito mais prático e ágil que o dinheiro de papel. Seu domínio é irreversível. Mas depende de condições tecnológicas para ser transacionado. Hardwares, softwares, servidores, computadores, celulares, internet.

Tudo fica melhor com gestos e atitudes de equilíbrio. Talvez seja o momento de a gente voltar a andar com algumas notas na carteira e outras bem guardadas em casa. Se por algum motivo a tela azul da morte voltar a nos assombrar, não estaremos tão desprevenidos.


@dagomir
dagomirmarquezi.com

Leia também “O cinema e a permanente necessidade de mudar”

3 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Ótimo conteúdo, Dagomir.

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Ainda bem que essa tela azul da morte não entra nas nossas urnas eletrônicas porque Carmen Lúcia não deixa de jeito nenhum. Qualquer falha que por ventura possa acontecer só é chamar os técnicos em IA, Chico Vigilante, Fátima Bezerra ou Vicentinho, que eles colocam a tela vermelha do PT

  3. Valdir Nogueira
    Valdir Nogueira

    Ótimo artigo. Parabéns Dagomir.

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