A história, no geral, é sempre parecida. Em um subúrbio dos Estados Unidos, uma criança, enquanto passa as tardes com os amigos nas ruas e nos parques, se apega a algum esporte. Fica ainda mais fácil se os pais já forem praticantes. Então, ela leva essa “brincadeira” para a escola.
Um exemplo é Katie Ledecky, de 27 anos, nascida em Bethesda (ao lado de Washington D.C.), nadadora desde os 6. Foi estimulada pela mãe, que também fazia natação. Nove anos depois, Ledecky iniciou uma trajetória olímpica em que ganhou nove medalhas de ouro, além de outras 19 em mundiais. Tornou-se a nadadora mais vitoriosa da história.
Suas façanhas resultaram do sistema americano. Nos EUA existe toda uma infraestrutura para treino e competição. Ainda que poucos cheguem tão alto como Ledecky, graças a essa cultura os EUA são a mais eficiente fábrica de campeões do mundo. Espalhados pelo país, vários jovens competem ou trazem medalhas em praticamente todas as modalidades.
“Frequentei a Little Flower School, uma escola católica, do ensino fundamental à 8ª série, a cerca de 800 metros de casa”, conta Katie, em sua biografia Just Add Water (“Apenas acrescente água”, numa tradução livre). “Eu era uma boa aluna, com talento para matemática. Minha vida era intensa. Cantei no coral da escola, aprendi a tocar piano, entrei para o time de futebol e para o time de basquete. E, claro, havia a equipe de natação.”
A combinação da vocação com a oportunidade definiu o futuro daquela menina. E de tantos outros como ela. As instalações esportivas e os equipamentos das escolas e universidades são melhores do que os dos próprios municípios.
“Nadar em nosso subúrbio verdejante era popular e extremamente competitivo”, conta Ledecky. “A liga local tinha aproximadamente 80 grupos diferentes. Quando meus pais se mudaram para Bethesda, não sabiam nada sobre a Liga de Natação do Condado de Montgomery. Mas rapidamente ficou claro para eles que a área escolhida era uma incubadora para nadadores dedicados.”
Em Paris 2024, Ledecky conseguiu grandes feitos ao se tornar tetracampeã dos 800 metros livres. Está invicta há 14 anos nessa prova. Situações como essa levaram os EUA, desde o início dos Jogos Olímpicos modernos, em 1896, a se tornarem o país que mais conquistou medalhas. Foram 2.636 até a Olimpíada de Tóquio 2020, sendo 1.061 de ouro.
“O modelo norte-americano pode ser considerado o ideal”, afirma Amir Somoggi, especialista em marketing esportivo e sócio da Sports Value. “O setor público investe em escolas públicas, em complexos esportivos de acesso gratuito ou de custo muito baixo para uma população entre 12 e 18 anos. Quando chegam à universidade, os melhores recebem bolsas, há um conjunto de atuações tanto do setor público quanto do privado.”
A geografia olímpica tem lá sua coerência. A lista dos maiores vencedores é proporcional à das economias mais fortes. Depois da já extinta União Soviética, países como Reino Unido, China, França, Itália e Alemanha ocupam as primeiras colocações. Cada um se inspirou no modelo norte-americano, com adaptações.
“Os modelos chinês e europeu também trabalham nesse sistema, mas não tanto nas universidades com bolsistas”, ressalta Somoggi. “Eles trabalham também o acesso a equipamentos públicos para a população em geral e a identificação dos talentos. O que há de similar entre países muito ricos, com produto interno bruto elevado, é a correta utilização dos recursos.”
O consultor também destaca a eficiente utilização do legado da competição em países que já foram sede de Olimpíadas: “Todos que receberam Jogos Olímpicos, como Reino Unido, China, Austrália, Japão e EUA, aproveitam o boom olímpico e evoluem”.
O caminho do atleta
No Brasil, apesar da melhora em algumas modalidades, a conquista de medalhas depende muito mais do talento excepcional dos atletas. Nomes como Rebeca Andrade e Rayssa Leal são exceções.
Assim como nos EUA, o Brasil tem a Confederação Brasileira de Desporto Universitário (CBDU), ligada ao governo federal. A norte-americana National Collegiate Athletic Association (NCAA), de caráter privado, porém, tem mais autonomia para gerir o esporte universitário, passo anterior ao da ida à Olimpíada ou da profissionalização.
“Cerca de 20 mil crianças nadaram no verão”, relatou Ledecky em seu livro. “Muitas levavam o esporte muito a sério. Michael Phelps veio de Maryland. As grandes nadadoras de longa distância Katie Hoff, Kate Ziegler e Debbie Meyer também são dessa área. Fomos designados como ‘amigos’ na Little Flower School, e minha primeira amiga mais nova da 4ª série foi a estudante pré-escolar Phoebe Bacon, que esteve comigo na equipe olímpica de natação de Tóquio 2020, nos 200 metros costas.”
A NCAA organiza as competições junto às universidades, com mais de 470 mil estudantes atletas entre 19 mil times, em 24 modalidades. Ledecky, por exemplo, prosseguiu seus estudos e sua preparação na Universidade Stanford. A sequência, iniciada na escola, passando pela universidade, até chegar ao esporte profissional, é conhecida como o athlete pathway (“caminho do atleta”).
“Isso significa que a formação não será interrompida como aqui no Brasil, quando projetos são descontinuados com frequência”, afirma Luiz Antonio Ramos Filho, mestre em gestão do esporte, em artigo no portal Gestão Desportiva. “Ou mesmo quando os atletas passam de determinada idade e simplesmente são excluídos das equipes, sem ter para onde seguir a carreira.”
Ramos Filho ressalta que, nos EUA, os alunos pagam para estudar nas universidades (inclusive públicas). O fato de não haver gratuidade, como ocorre nas faculdades públicas brasileiras, torna o esporte uma ferramenta de inclusão. “Para diminuir ou zerar esse custo, os jovens nos EUA buscam bolsas esportivas para fazer a faculdade. O modelo cria uma diversificação maior das modalidades praticadas”, observa Ramos Filho. “Caso um jovem esportista não consiga bolsa numa modalidade, poderá tentar em outra. Assim, modalidades menos populares passam a ter praticantes treinando e competindo com regularidade e apoio.”
Sem apoio, sem mídia, sem COB, sem governo
Somoggi acrescenta que, no Brasil, as leis de incentivo ajudam, mas não são suficientes para massificar a formação de atletas. A Lei de Incentivo ao Esporte, por exemplo, direciona recursos de renúncias fiscais a projetos esportivos e paradesportivos.
Já o Bolsa Atleta, criado em 2005, beneficia com verbas do governo atletas de alto rendimento. Isso não tem feito o país deslanchar como potência esportiva. O Brasil permaneceu praticamente no mesmo patamar nas últimas Olimpíadas. Foram 12 medalhas em 2000, 10 em 2004, 17 em 2008, 17 em 2012, 19 em 2016 e 21 em 2020. Mesmo um possível recorde em 2024 não será suficiente para indicar melhora efetiva.
Nem o fato de, em 2016, o Brasil ter sediado uma Olimpíada, no Rio de Janeiro, deixou o legado prometido
“O grande problema do Brasil é que o dinheiro fica perdido”, ressalta Somoggi. “Há um volume de recursos públicos, via Lei de Incentivo, patrocínio de estatais, loterias, Ministério do Esporte, mas falta um trabalho sistêmico na base para captar talentos.” Os campeões, portanto, não são produzidos pela política esportiva, mas apesar dela.
“Então o que sempre temos?”, pergunta Somoggi. “A superação. A mãe da Rebeca que pagou a passagem ou o irmão que a levou de bicicleta ao treino. Não foi o sistema que funcionou quando ela tinha 10 anos, antes de ir para o Flamengo. Na fase do atleta sem recursos, sem apoio, sem mídia, sem Comitê Olímpico Brasileiro, sem governo.” Assim, o Brasil caminha na direção oposta à de países bem-sucedidos.
Construindo a casa pelo telhado
Nem o fato de, em 2016, o Brasil ter sediado uma Olimpíada, no Rio de Janeiro, deixou o legado prometido. Em comparação com os Jogos do Rio, a Olimpíada de 2024 foi gerida melhor. Os custos chegaram a cerca de R$ 21 bilhões, ante R$ 41 bilhões do Rio. A meta do Comitê Organizador francês é criar mais de 150 mil empregos, por exemplo, com a reforma e a implantação de 5 mil instalações esportivas.
Foram assinados contratos com mais de 1,2 mil pequenas e médias empresas para estimular prestadores de serviços e negócios de pequeno porte, núcleo da economia francesa. Enquanto isso, muitas instalações olímpicas no Rio de Janeiro seguem abandonadas.
“Na França, o esporte é tratado como elemento de educação e de saúde”, diz Alberto Murray Neto, ex-atleta e árbitro da Corte Arbitral do Esporte, instância máxima da jurisdição desportiva. “O Brasil não tem essa mentalidade. Quiseram fazer obras faraônicas para a Olímpiada do Rio e não pensaram no dia seguinte. Tentaram começar a construir a casa pelo telhado.”
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As universidades aqui no Brasil deveriam seguir este modelo americano, com bolsas a atletas de destaque. Porém, foram aparelhadas, e hoje servem de manobra para “professores” militantes fazer arruaça com o dinheiro público.
Não ganhamos nem no futebol, imagina o resto.
Aff.