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Edição 230

De mal a pior

A República de hoje é parecida com o Estado Novo de Vargas. Tem censura, intimidações, prisões arbitrárias, exilados políticos, viola mandatos e o devido processo legal

Alexandre Garcia
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Na mesma semana em que a Folha de S.Paulo revelou um método de trabalho do Ministro Alexandre de Moraes, fez 40 anos que o PMDB, em convenção nacional, escolheu a chapa de oposição Tancredo Neves e José Sarney para a sucessão de João Figueiredo, e para concorrer com a chapa governista Paulo Maluf e Flávio Marcílio. Tancredo me contou que, a pedido de Ernesto Geisel, fora a Montevidéu convencer o então vice-presidente João Goulart a aceitar o Parlamentarismo, para poder voltar ao país e assumir a Presidência, surpreendido que fora, enquanto estava na China, com a renúncia do presidente Jânio Quadros. Já Sarney, o vice da chapa, tinha sido da UDN, partido da direita; depois ingressou no partido criado pelo movimento de 1964, a Arena, onde ficou por todo o governo militar, até a mudança de nome para PDS, de que foi presidente. No ocaso do governo militar, participou da criação da Frente Liberal, que se tornou PFL, e filiou-se ao opositor PMDB, para ser candidato a vice — e se tornar, por cinco anos, o primeiro presidente após o período militar. 

José Sarney e Tancredo Neves comemoram a vitória nas eleições de 1985 | Foto: Wikimedia Commons

Não sei se os leitores que não testemunharam isso, como eu testemunhei, vão entender. Creio que não, porque até para quem viu há dificuldade de encontrar a lógica. Saio com uma vantagem: já não me surpreendo com o que vejo. Agora vejo o relator do “Inquérito do Fim do Mundo”, como batizou o ministro Marco Aurélio, usando métodos que muitos jornalistas conhecem, a partir de reuniões de pauta. O chefe traz uma tese que precisa ser comprovada pela reportagem. Quer dizer, primeiro se tem o fato, depois se buscam depoimentos, documentos, imagens que “comprovem” o que o chefe quer comprovar. “Use a sua imaginação” para justificar desmonetização da Revista Oeste. Essas coisas vão e voltam. No dia em que nasci, o ditador Getúlio Vargas baixava um decreto-lei para ele próprio nomear o presidente do Supremo, só porque ele não gostava do próximo vice-presidente do tribunal. Nomeou José Linhares. E, quando Getúlio foi derrubado, Linhares virou presidente da República (que aproveitou para nomear tantos parentes, que o trocadilho em voga era “Os Linhares são milhares”).

Não me surpreendi, mas fiquei assustado, quando cláusulas pétreas do artigo 5º da Constituição, que não podem ser mexidas a não ser por uma nova Constituição, foram canceladas por prefeitos. É que o Supremo deu aos prefeitos o poder de cancelar os direitos de ir e vir e de reunião, durante a pandemia, sem que o STF tivesse esse poder. Já estava se alastrando o ativismo do Supremo: o de cancelar artigos — e direitos fundamentais — da Constituição. Uma espécie de novo Estado Novo. O inquérito que começou no Supremo ignorando o Ministério Público e a primeira instância já dura quase cinco anos e meio. Foi instaurado com base no artigo 43 do regimento do tribunal, que o autoriza em caso de crime dentro das próprias dependências — e não foi o caso. A Constituição que veio depois do Regimento do STF estabelece que o Ministério Público é quem promove privativamente a ação penal. O plenário, ante o fato consumado, legalizou tudo — como políticos municipais legalizam invasões de área pública já com moradores.

Sede da Procuradoria-Geral da República, centro administrativo-institucional do Ministério Público Federal, em Brasília | Foto: Wikimedia Commons

Não me surpreendo nem mesmo quando o próprio nome do país perde o significado, porque República Federativa do Brasil reduz-se a um rótulo escrito na Constituição, como muitos outros, já que na prática é uma república unitária, pois os Estados têm pouca autonomia e dependem de recursos e da boa vontade do governo federal. A tal reforma tributária vai pôr a pá de cal na federação. Aliás, se a gente for ampliar a exigência, vai achar que República também é marca de fantasia. Tanto quanto foi a marca de Nova República, nascida há 40 anos.

A Constituição hoje sofre cancelamentos seletivos, recebidos com silêncio medroso e cúmplice no Senado, na OAB, na mídia

A Nova República repete a velha em seus defeitos e tem outros, como, por exemplo, a mistura do chamado crime organizado com a política. Além disso, tivemos a Lava Jato da nossa desesperança. Sonhávamos com o fim da impunidade entre os corruptos. E agora os eleitores recebem decisões das convenções municipais com a mesma surpresa risível com que nós, jornalistas, acompanhamos a mistura improvável de gente antes antagônica, na convenção de 40 anos atrás. E ainda temos “Getúlio Vargas” como há quase 84 anos, inventando decisões acima da Constituição. Pagamos pelo pecado da passividade e desinteresse pela política. Naquele tempo de Vargas não havia Legislativo. Hoje o Congresso está ficando tão significativo quanto o rótulo de Federativa na República do Brasil, a Nova.

Getúlio Vargas e crianças na Quinta da Boa Vista, durante as comemorações da Semana da Pátria (1943) | Foto: Wikimedia Commons

Nova em quê? Está mais parecida com o Estado Novo de Vargas. Tem censura, intimidações, prisões arbitrárias, exilados políticos, viola mandatos, juiz natural, ampla defesa, devido processo legal. Legislativo e Constituição quase irrelevantes. A diferença está na impunidade premiada e nas relações do crime com a política. Pobre Lava Jato da nossa desesperança! Na Constituição cidadã está escrito que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza; que é garantida a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à propriedade, que é livre a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo; que é vedada toda e qualquer censura e que nenhuma lei conterá embaraço à plena liberdade de informação. Mas, neste novo Estado Novo, juiz pode investigar, acusar, denunciar… e julgar, ainda que seja o queixoso. A Constituição hoje sofre cancelamentos seletivos, recebidos com silêncio medroso e cúmplice no Senado, na OAB, na mídia. Começou mal e se ampliou o inquérito de março de 2019 — e o que começa mal não tem chance de acabar bem. A meta do mal é o pior.

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12 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Não podemos perder a esperança apesar da agenda 2030

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Alexandrus I, o Calvo, decretou o abandono da Lei Maior e segue com sua sanha perseguidora.
    E pior, com o silêncio absoluto de seu cúmplice Rodrigo Pacheco.
    Ambos devem ser removidos de seus cargos e serem processados, julgados e punidos para devolver a normalidade ao país.

  3. Antônio de Padua de Oliveira
    Antônio de Padua de Oliveira

    PARABÉNS AO JORNALISTA PELA MATÉRIA. GOSTARIA QUE UMA EXPRESSIVA QUANTIDADE DE BRASILEIROS E BRASILEIRAS LESSEM E ENTENDESSEM SOBRA A MESMA. MAS O DESINTERÊSSE DOS NOSSOS GOVERNANTES AO LONGO DA HISTÓRIA DESSE POBRE PAÍS, MUTILOU A CAPACIDADE DE LER, ENTENDER E PENSAR DO NOSSO POVO, EM SUA GRANDE MAIORIA. O ANALFABETISMO FUNCIONAL É INERENTE A ESTA TERRA SEM LEI, ERRONEAMENTE CHAMADA DE REPÚBLICA FEDERATIVA. NÃO HÁ SOLUÇÃO. NOSSO CAMINHO É O FRACASSO TOTAL, EM TUDO O QUE SE POSSA IMAGINAR. AFINAL, TER INTERÊSSE PELA BOA LEITURA NESTA TERRA DE NINGUÉM, SEMPRE FOI CONSIDERADO CAFONICE E BABAQUICE. O QUE INTERESSA MESMO SÃO AS BUNDAS, AS PARADAS GAYS, O FUTEBOL, E AS DROGAS, ENTRE ELAS AS NOVELAS DA GLOBO.

  4. julio bento da silva bento
    julio bento da silva bento

    O Trauma dos acéfalos!
    Os babaquinhas que ” nasceram em 90 “, mas que estão traumatizados pela ditadura militar, não enxergam a sordidez desse governo que tem um passado sujo e que justamente, os militares daquele ano de 1965 ,lutaram para não deixarem o país ficar à mercê desses terrorista assaltantes de banco hoje! Traumatizado, fico eu como a acefalia desses nojentos oportunistas preocupados pela liberação da maconha e outras drogas. Traumatizado fico eu de ver essa corja transformando jovens rapazes e moças lindas em caricaturas de tatuagem e quase anoréxicos. Traumatizado fico eu quando um cachaceiro de 9 dedos condenado, julgado e libertado pela suprema bosta dizer:” Dê 50 reais e safadeza a esses jovens e eles voltarão em você”.” Não posso ver um jovem roubar um celular e ser condenado por isso”! Traumatizado fico eu com mulheres e homens vagabundos usando bolsa família dizendo que o cartão é para pagar a cerveja de final de semana. Traumatizado fico eu vendo gente honesta ficar presa sem saber o por quê. Traumatizado fico eu em de ver tantos babacas ficarem traumatizados por serem acéfalos! Traumas do Brasil sem cultura.

  5. Edi Nastari
    Edi Nastari

    Vamos falar das soluções !Para se tornar juiz é preciso ser eleito obtendo uma maioria de cinquenta por cento dos votos dos eleitores na Comarca, sendo eleito, seu mandato deveria ser de 4 anos . Neste periodo, os eleitores avaliam sua performance, podem remove-lo por intermedio do “recall”. Os candidatos às vagas de magistrado devem preencher alguns requisitos: ter anos de prática anteriores (a definir) à sua eleição, além de ter no mínimo, Trinta e cinco anos de idade. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto ! ! Você é a favor da eleição de Juízes feita pela população?

  6. Vitor Hugo Stepansky
    Vitor Hugo Stepansky

    É como dizia Juca Chaves a respeito da ” velha imprensa” que está calada, surda e conivente

    ” SE VOCÊ PAGAR ELES ATE PUBLICAM A VERDADE “

  7. Julio Fressa
    Julio Fressa

    Excelente artigo. Alexandre, a palavra “democracia” está tão desgastada, mal usada, subvertida, que acho melhor que seja extinta da língua portuguesa no Brasil.. Não concorda comigo? Você é contra a democracia. Pisei no seu pé e você disse Ai. Você é contra a democracia. Daqui a pouco, juízes de futebol que não chamam o VAR em lances polêmicos serão acusados de ser contra a tal da democracia. País ridículo.

  8. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Esta foto da PGR simboliza Brasília. Um oásis, onde “privilegiados” tomam decisões que afetam a todos, sem contato com a realidade.

  9. Brian
    Brian

    Brilhante como sempre mestre Alexandre Garcia! Devemos agradecer humildemente pela destruição da nossa Constituição de 1988 e de todas as leis do nosso lindo Brasil ao maior covarde RODRIGO PACHECO. Os brasileiros esperam que RODRIGO PACHECO pague por seu crime de cumplicidade e não cumprimento de seu DEVER.

  10. Luiz Buonaduce Filho
    Luiz Buonaduce Filho

    Vc é mestre no jornalismo, parabéns. Me orgulho dê fazer parte da família oeste

  11. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Tchê. Acho que tenho uma parte da teoria conspiratória: os dez ministros tem medo de um ministro que é o que ameaça até eles.

    1. Emilio Sani
      Emilio Sani

      é provavel, também creio que esse ‘ministro’ tem chefe superior…pcc

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