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Ilustração: Jozef Micic/Shutterstock
Edição 231

O inferno dos inocentes

Presos pelo 8 de janeiro que aceitaram o acordo de não persecução penal são submetidos a um curso de lavagem cerebral, trabalhos precários e multas abusivas

Cristyan Costa
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“Hitler foi um ditador de direita e esse espectro político é um dos responsáveis pelo Holocausto”; “O STF é o Poder Moderador”; “As Forças Armadas são submissas ao tribunal”; “A urna eletrônica é segura e há lisura no processo eleitoral”. Esses são alguns tópicos que uma professora paulistana de 47 anos teve de escutar durante o Curso da Democracia, oferecido a presos por causa do 8 de janeiro que assinaram o acordo de não persecução penal (ANPP) da Procuradoria-Geral da República (PGR). O ANPP é uma forma que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), encontrou para se livrar de milhares de pessoas acorrentadas a tornozeleiras eletrônicas e perturbadas diariamente por “medidas restritivas” há mais de um ano. O acordo da PGR é oferecido apenas aos detidos no Quartel-General (QG) do Exército, em Brasília, em 9 de janeiro de 2023. Quem não aceita a proposta corre o risco de ir ao julgamento em “lotes” no plenário virtual do STF e passar os próximos 17 anos na cadeia.

“Aquilo me pareceu um tremendo processo de lavagem cerebral”, resumiu a docente obrigada a escutar o palavrório dividido em quatro módulos pela Escola Superior do Ministério Público da União. A primeira fase dos estudos trata de democracia e abrange o desenvolvimento histórico e direitos fundamentais. A segunda e terceira etapas consistem na explicação de como funcionam Executivo, Legislativo e Judiciário, além de discorrer a respeito da “submissão das Forças Armadas aos Poderes Civis constituídos”. Por fim, os alunos aprendem o “conceito de golpe militar”, rememoram a “ditadura e suas violações”, entendem a importância do surgimento da Comissão da Verdade e se debruçam sobre os crimes contra o Estado Democrático de Direito. “É interessante não terem citado Cuba, Venezuela ou China na aula”, recordou a acadêmica.

Quando os “estudantes” chegam ao local das aulas, no fórum criminal especificado pela Justiça, são orientados a desligar o celular, não usar qualquer tipo de aparelho eletrônico e evitar conversas paralelas entre si. As aulas são observadas atentamente por servidores do Judiciário, que fiscalizam os manifestantes do 8 de janeiro. Segundo a professora, o clima é bastante “policialesco e intimidador”. Há inúmeros relatos de colegas dela em outros Estados que são obrigados a entregar o smartphone antes de entrar no local para acompanhar as sessões no tribunal.

As 12 horas do curso de quatro dias, que já pareciam intermináveis, somaram-se a outras medidas que prolongaram a agonia da professora. Para se livrar da tornozeleira eletrônica, teve de depositar R$ 5 mil em juízo — há casos em que a multa chega a R$ 10 mil. A quantia foi obtida com a ajuda de parentes. Divorciada, a mulher que vive com dois filhos, sendo um menor de idade, sobrevive graças à ajuda de um irmão. Em virtude do estigma de ter sido presa, mesmo sem o cometimento de algum crime, ela tem dificuldade para encontrar emprego. Um dos entraves foi o cumprimento de 150 horas de um “serviço social” previsto no ANPP. Num primeiro momento, teve de limpar banheiros de uma escola pública, mas depois conseguiu fazer serviços menos braçais e passou a desempenhar funções administrativas em uma creche. “Tudo isso sem ter feito nada de errado, pois minha intenção era me manifestar pacificamente, mas acabei admitindo uma série de coisas que não fiz nesse ANPP”, observou a mulher, em alusão aos dois crimes de menor potencial que precisou assumir no inquérito do STF: associação criminosa e incitação ao crime.

Foto: Shutterstock
Prisioneiros do medo

A situação é parecida com a de uma comerciante, de 58 anos, moradora do interior de São Paulo. Ela também desembolsou R$ 5 mil para remover a tornozeleira. A mulher se recorda do equipamento apitando na madrugada, o que tornava as noites de sono insuportáveis. “Minha companhia acabava sendo um agente que, por telefone, me orientava a fazer aquele barulho parar”, relatou, ao mencionar que recorreu a um travesseiro para abafar o som incômodo no quarto. A despeito de ainda não ter feito o curso, está cumprindo 300 horas de trabalho voluntário. Sem considerar a idade da mulher, a Justiça entregou a ela um rodo, um pano e um balde para limpar, sozinha, o piso asfáltico de uma quadra poliesportiva em uma escola pública. “Chegava em casa com dores musculares”, queixou-se a mulher.

O cansaço aumentava exponencialmente quando ouvia questionamentos de estudantes e funcionários curiosos ao perguntarem de onde ela viera. Farta do assédio, a mulher inventou uma história. “Falo que é um serviço voluntário de uma ONG”, contou. Nem mesmo a direção da escola a poupou do preconceito e da discriminação. Tempos depois, conseguiu deixar a quadra para executar atividades mais leves, como fiscal de sala de aula. “Percebi que a diretora tinha um viés mais para a esquerda”, observou a presa do 8 de janeiro. “No entanto, eles precisavam do trabalho. E deu tudo certo.”

“Aceitei o acordo para pôr fim a esse inferno e também por ter medo das condenações. A gente olha no noticiário e vê as pessoas pegando quase 20 anos de prisão”

Os esforços para sair do purgatório dos inocentes são ainda mais dramáticos para uma dona de casa que vive de bicos e da ajuda de familiares. Para ter uma ideia de sua situação financeira, ela parcelou os R$ 5 mil em 50 parcelas de R$ 100. Mesmo assim, não ter essa quantia todos os meses faz falta na hora de pagar as contas. “Paguei porque é necessário para remover a tornozeleira e eu já não aguentava mais essa situação”, desabafou a gaúcha de 40 anos que vive em uma cidade do Rio Grande do Sul. “Já removi o equipamento, graças a Deus, porém confesso que ainda sinto ele fixo em mim, sobretudo quando saio às ruas. Parece que estou sendo constantemente vigiada por estar fazendo algo fora da lei ou muito errado. Sou uma prisioneira de mim mesma. É assim que me sinto.”

Na semana, ela atua como cozinheira em uma escola a fim de se livrar do trabalho comunitário exigido no ANPP. Depois de fazer a comida, tem também de lavar a louça. Quando tem tempo livre, dedica-o ao filho e à mãe, de 76 anos, que tem problemas de saúde. “Aceitei o acordo para pôr fim a esse inferno e também por ter medo das condenações”, admitiu. “A gente olha no noticiário e vê as pessoas pegando quase 20 anos de prisão.” Segundo a mulher, a intenção dela é continuar no Brasil e reconstruir sua vida, sem deixar de lutar por um país melhor.

Ilustração: Shutterstock
Carcereiros de beca

Em fevereiro deste ano, poucos dias antes de uma manifestação convocada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro na Paulista para falar também dos presos do 8 de janeiro, 90 grupos “progressistas” lançaram um manifesto na Câmara dos Deputados por “justiça” e contra a suposta tentativa de golpe de Estado que ocorrera no início de 2023. “A reação organizada contra o inquérito no STF caracteriza a continuidade daquele golpe, pela busca da impunidade de seus comandantes”, diz um trecho do texto assinado pelos militantes de extrema esquerda, entre eles do Prerrogativas — grupo que ocupa hoje inúmeros cargos em tribunais superiores, no Ministério Público Federal e até no governo Lula, por ter ajudado o petista com argumentos jurídicos que terminaram de sepultar a Lava Jato.

Nenhum deles citou na carta as inúmeras violações de direitos humanos que ocorreram nas celas da Papuda e da Colmeia, tampouco mencionaram as vidas dilaceradas dos órfãos de pais vivos que passaram meses sem ver os familiares presos por causa de uma turba minoritária de vândalos do 8 de janeiro. O manifesto nem sequer critica as penas abusivas impostas a sexagenários doentes e jovens autistas que não tiveram acesso à ampla defesa nem ao devido processo legal. Não há uma única linha dedicada ao descaso dos ministros com as peças da defesa, que nem chegaram a ser lidas. Para os redatores da carta, as prerrogativas só valem se estiverem em risco seus signatários.

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13 comentários
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Texto duro, porém necessário. Parabéns Cristyan Costa. Desejo que Alexandre de Moraes e toda a corja que o serve tenham uma morte lenta, agonizante, dolorosa e com muito sofrimento. E isso ainda é pouco.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Este grupo ”Prerrogativas” é um bando de parasita sangue-suga, em Brasília, a procura de meios de abocanhar o dinheiro público. São uns canalhas!

  3. Emerson Luiz Degan
    Emerson Luiz Degan

    E de cortar o coração a crueldade do sistema. Gente honesta sendo tratada como bandidos.

  4. Themis Regina França Koteck
    Themis Regina França Koteck

    Parabéns pelo artigo . É de cortar o coração , ler o relato , do que estas pessoas passaram e ainda passam . Todos na maioria , provenientes da classe média , que lutam dia a dia para se sustentarem. Não foram “os ricos” , como afirmou o Presidente atual, que formaram a mulditão que expressou seu desgosto e suas dúvidas em rela çao à ultima eleição presidencial.

  5. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Hoje tenho 68 anos e faz mais de 30 que li a obra 1984 de George Orwell.
    Nunca imaginei que uma obra de ficção seria o retrato do Brasil de 2024.
    Imputar crimes, sentenças sem o devido processo legal, trabalhos forçados entre outras aberrações cometidas pelo Supremo Encarcerador do Brasil são práticas de todas as ditaduras passadas, presentes e futuras.
    Enxergar golpe em uma multidão composta de idosos, famílias, pets de estimação, vendedores ambulantes, etc é no mínimo bizarro.
    Crimes de depredação do patrimônio público ou privado devem ser punidos com os rigores da lei obedecendo ao rito jurídico.
    O povo brasileiro não irá se curvar diante da sanha de um homem que sozinho acredita que pode tudo e a si concedeu todos poderes terrestres e celestiais.
    Nossas instituições, em primeiro lugar o STF, precisam ser recompostas para garantir a legalidade e constitucionalidade, decência e a liberdade de todos.

  6. Solange Montezuma Pereira da Silva
    Solange Montezuma Pereira da Silva

    Estou muito sensibilizada com todo esse processo absurdo e abjeto por parte dessa instituição, que se transformou num tribunal de exceção .

  7. Analice de Souza Cabral
    Analice de Souza Cabral

    Me dá muita angústia só de ler as relatos. Imagino o quanto essas pessoas estão sofrendo sem merecer. Muito cruel. Deus nos proteja desses algozes.

  8. Olnei Pinto
    Olnei Pinto

    Penso que já seja divulgado todas essas matérias da Revista Oeste no exterior principalmente Europa e Estados Unidos , porque o mundo precisa saber de todas essas crueldades contra o povo de bem . Parabéns pelo texto verdadeiro e que nos comove .

  9. Leonardo Abreu
    Leonardo Abreu

    Tode lulepetiste é filhe de pute

  10. Mirian Guimarães
    Mirian Guimarães

    Parabéns pelo artigo, Crystian. Impossível não se sentir revoltada com esta situação.

  11. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Parabéns mais uma vez Cristyan Costa, essa é a imagem do Brasil que estamos vivendo. Nunca imaginei em minha vida estar assistindo a maldade e a crueldade imposta por uma corte de justiça. As vezes me distancio para preservar minha sanidade mental.

  12. RODRIGO DE SOUZA COSTA
    RODRIGO DE SOUZA COSTA

    Um dia irão pagar por todo o mal que cometeram.

  13. Gilson Herz
    Gilson Herz

    Esses canalhas do stf merecem a morte.

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