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"Estado Jagunço de Direito" | Ilustração: Walter Koyama/Cortesia Júlia Zanatta (@apropriajulia)
Edição 231

A faísca revolucionária de Paine

Quando o povo passa a acreditar que não tem mais quase nada a perder, o perigo se torna maior para o sistema

Rodrigo Constantino
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Quando se fala da Revolução Americana, a mais — ou mesmo a única — revolução bem-sucedida no mundo, não dá para deixar de lado o papel de Thomas Paine. Foi ele, com seu radicalismo, que ajudou a “incendiar” o clima de revolta com seu panfleto “Common Sense”. Nele, Paine argumenta que o governo representativo republicano é superior a uma monarquia ou a outras formas de governo baseadas na aristocracia e na hereditariedade. O panfleto mostrou-se tão influente que John Adams teria declarado: “Sem a pena do autor do ‘Common Sense’, a espada de Washington teria sido levantada em vão”.

Depois da Independência, Paine retornou à Europa, onde ofereceu uma defesa contundente da Revolução Francesa com seu livro Direitos do Homem. Mais tarde, em 1793, curiosamente, o próprio Paine foi preso pelos jacobinos e acusado de traição em razão de sua oposição aos métodos revolucionários de Robespierre e sua gangue — mais especificamente à pena de morte, ao uso em massa da guilhotina e à execução de Luís XVI. A Revolução Francesa, que encantou Paine e Thomas Jefferson, degringolou para o Terror e depois para a ditadura napoleônica.

Thomas Paine, óleo sobre tela de John Wesley Jarvis (1806-1807) | Foto: Cortesia National Gallery of Art

A lembrança é importante para reforçar que os Estados Unidos contavam com ingredientes únicos. Se Paine era o libertário radical, havia “Pais Fundadores” mais conservadores, como Benjamin Franklin e John Adams, e tal combinação produziu um efeito interessante que impediu a luta pela Independência de virar uma guerra civil ou uma tirania depois. Da Inglaterra, Edmund Burke observava tudo e representava, talvez, a melhor mistura: um liberal Whig que virou o “pai do conservadorismo” por sua prudência, mas que apoiou a Guerra da Independência dos colonos.

Os alertas de Burke em suas Reflexões sobre a Revolução em França teriam a simpatia de um John Adams, mas não de um Paine:

“Não ignoro nem os erros nem os defeitos do governo que foi deposto na França, e nem a minha natureza nem a política me levam a fazer um inventário daquilo que é um objeto natural e justo de censura. […] Será verdadeiro, entretanto, que o governo da França estava em uma situação em que não era possível fazer nenhuma reforma, a tal ponto que se tornou necessário destruir imediatamente todo o edifício e fazer tábua rasa do passado, pondo no seu lugar uma construção teórica nunca antes experimentada?”

Burke tinha receio de revoluções utópicas, mas entendeu que nos Estados Unidos havia uma luta legítima pelo resgate de valores tradicionais e das liberdades perdidas. Revoluções são perigosas, sem dúvida. Não há situação ruim que não possa piorar. Quantos franceses não devem ter sentido saudade da família real, até mesmo dos insensíveis “brioches” da rainha Maria Antonieta, enquanto os jacobinos degolavam todos em praça pública, instaurando o Terror em nome da liberdade e da fraternidade? Quantos russos não devem ter lamentado as mudanças do regime do Tsar para o bolchevique, que ceifou em poucos meses mais vidas do que aquele em décadas?

A Revolução Americana deu certo, mas parece a exceção à regra, pois vários pensadores a entendem como algo bem diferente, como uma continuação das tradições britânicas, de certa forma. O temperamento de um John Adams, o pragmatismo de um Benjamin Franklin, o embate de ideias de alto nível entre James Madison e Thomas Jefferson, tudo isso nos mostra que ali ocorreu uma coisa única, uma combinação rara de fatores que permitiu o sucesso das mudanças “radicais”, sem abandonar completamente aquilo que existia, que era o legado de uma ordem eficiente.

John Adams, pintura de Gilbert Stuart | Foto: Domínio Público

Chegamos, então, ao caso brasileiro. Será que o sistema se corrompeu a tal ponto que não há mais possibilidade de reforma interna, dentro das “quatro linhas”? Será que o sequestro de nossa democracia por bruxas e seus jagunços passou do ponto de retorno viável? Será que o aparelhamento das instituições foi absoluto e não tem mais volta? Será que a impunidade aos corruptos e àqueles que abusam do poder se tornou irreversível? É o que cada vez mais gente pensa, e esse costuma ser o caldo revolucionário num país. Quando o povo passa a acreditar que não tem mais quase nada a perder, o perigo se torna maior para o sistema.

Quase uma década depois, não resta dúvida de que os “donos do poder” dobraram a aposta. A blindagem ao ministro Alexandre de Moraes, mesmo depois de as provas de seus crimes virem à tona, demonstra bem isso

Em um artigo de 2016 sobre Paine e Burke, concluí:

“O Thomas Paine em mim quer tacar fogo no que temos, por perceber como estamos distantes de qualquer coisa que possa ser enaltecida. Mas o John Adams em mim pede prudência e cautela, pois sabe que simplesmente destruir o sistema existente não é garantia alguma de colocar algo melhor em seu lugar. Só espero que as lideranças envolvidas tenham um mínimo de consciência do que está em jogo, e não abusem a ponto de tornar inevitável a predominância do Paine em cada um de nós…”

Quase uma década depois, não resta dúvida de que os “donos do poder” dobraram a aposta. A blindagem ao ministro Alexandre de Moraes, mesmo depois de as provas de seus crimes virem à tona, demonstra bem isso. Ninguém solta a mão de ninguém. Essa elite podre usurpou nossas liberdades, destruiu nossa democracia e avança impunemente sobre nosso bolso. “Existem duas classes distintas de homens — aqueles que pagam impostos e aqueles que recebem e vivem de impostos”, disse Paine, antecipando uma luta de classes bem mais real do que aquela marxista entre capital e trabalho.

Paine sabia que a liberdade não caía do céu, não poderia ser uma licença do próprio governo: “Aqueles que esperam colher as bênçãos da liberdade devem, como os homens, sofrer a fadiga de apoiá-la”. Ele acrescentou: “A força e o poder do despotismo consistem totalmente no medo da resistência”. E, em seguida, Paine cunhou sua mais famosa frase: “O governo, mesmo em seu melhor estado, é apenas um mal necessário; em seu pior estado, é intolerável”. Ele denunciava o tipo “isentão” de sua época também: “Aquele que quer sua própria liberdade segura deve proteger mesmo o inimigo da opressão; pois, se ele violar esse dever, estabelece um precedente que chegará a si mesmo”. Quantos não aplaudiram o arbítrio supremo achando que ficaria restrito ao bolsonarismo?

Alexandre de Moraes, ministro do STF | Foto: Reprodução/STF

Para Thomas Paine, são os direitos naturais que devem ser preservados: “O fim de todas as associações políticas é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; e esses direitos são liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão”. Para chegar a esse fim é preciso ter um governo de leis, não de homens que se julgam acima das leis: “Nós repousamos uma confiança imprudente em qualquer governo, ou em qualquer homem, quando os investimos oficialmente com muito (ou com uma quantidade desnecessária de) poder discricionário”.

Era nesse contexto que Paine defendia a Guerra da Independência: “Considero a guerra da América contra a Grã-Bretanha como a guerra do país, a guerra do público ou a guerra do povo em seu próprio nome, pela segurança de seus direitos naturais e pela proteção de sua própria propriedade”. E reparem que Paine não concedia a ninguém um poder demasiado ou arbitrário: “Nenhum país pode ser chamado de livre se é governado por um poder absoluto; e não importa se é um poder real absoluto ou um poder legislativo absoluto, pois as consequências serão as mesmas para as pessoas”.

O limite para o poder do governo estaria na própria Constituição: “Uma constituição define e limita os poderes do governo que cria. Segue-se, portanto, como um resultado natural e também lógico, que o exercício governamental de qualquer poder não autorizado pela constituição é um poder assumido e, portanto, ilegal”. E ele também sabia que quem tentava ultrapassar esse limite sempre o fazia em nome de lindas causas: “As maiores tiranias são sempre perpetuadas em nome das causas mais nobres”.

Quando esse era o caso, Paine não tinha dúvida de qual era a reação legítima: “Quando todos os outros direitos são retirados, o direito de rebelião se levanta”.

No Brasil, o Dia da Constituição é comemorado em 25 de março, data da primeira Carta Constitucional do Brasil, outorgada em 1824 pelo imperador dom Pedro | Foto: Agência Senado

Leia também “Eu só quero justiça!”

12 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A tirania do sistema PT/STF/TSE sufoca a nação e seu povo.
    Que o 7 de setembro seja uma data para buscarmos nossa real independência.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Não tenha dúvidas que a quadrilha suprema está mexendo os pauzinhos de olho no Senado em 2026, contra ao que pode ser a maioria para processo de impeachment. A gangue não dá ponto sem nó.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Parabéns Constantino.

  4. Ana Kazan
    Ana Kazan

    Maravilhoso artigo, Rodrigo. A mim a esperança nos princípios, na lisura, no civismo e no verdadeiro patriotismo dos nossos mandantes, eleitos ou não, já se foi. Infelizmente, já com uma certa idade, me forço diariamente a me conformar que nossa tão díspar população nunca vai entender o que está se passando. Manipulados, carecendo compreensão dos fatos, sem condições de análise, ignorantes e orgulhosos de nossa cultura de jeitinhos e esteticismo, nao poderemos nem nos revoltar.

    1. Valesca Frois Nassif
      Valesca Frois Nassif

      Concordo totalmente. Sua análise é muito lúcida!

  5. José Pedro Scatena
    José Pedro Scatena

    Grande e inspirador Consta, que nos leva a considerações inéditas. Os donatários do poder, recebedores dos impostos, donos dos partidos políticos como se Capitanias Hereditárias fossem, são como os porcos de Orwell, dominando a Nação para seu usufruto. Amestraram seus cães das guardas armadas para proteção de seus privilégios mas, suma bobeada, deixaram espaço para o surgimento de um Robespierre alucinado com seu próprio poder usurpado, contra e acima das leis. Isso Orwell não previu. Não há mais mecanismos constitucionais para controlá-lo. Nem surgirá um Napoleão para por fim ao Terror. Chegamos ao ponto de “Aux armas citoyens? Ou milhões de gritos de indignação nas ruas serão capazes de realizar a revolução da virtude necessária? Há gargantas suficientes dispostas?

  6. OSMARI PENTEADO SANTOS
    OSMARI PENTEADO SANTOS

    Só na Oeste se lê um artigo como este!!

  7. EDUARDO SILINGARDI LOPES
    EDUARDO SILINGARDI LOPES

    SISTEMA CORRUPTO SEM VERGONHA

  8. NILSON OCTÁVIO
    NILSON OCTÁVIO

    Viva a prudência dos conservadores. Ideologias são perigosas.

  9. Elias José de Souza
    Elias José de Souza

    O Brasil só voltará a normaliade se passar pelo mesmo processo de El Salvador.

  10. Jose geraldo covre
    Jose geraldo covre

    Constantino brilhante. Minha indignaçao e tao grande que nao tenho palavas para espressar.

  11. Vitor Hugo Stepansky
    Vitor Hugo Stepansky

    “Queres conhecer o vilão dá -lhe poder na mão”. “A cadeira do poder amolda o homem da bunda para a cabeça”. A Revolução dos bichos do Orwell cabe bem no Brasil atual.
    A casta do STF se moldou ao autoritarismo e gostou. Não encontrou resistência. Entre vinhos e lagostas com mordomias mais salários nababescos faz a ditadura à brasileira.
    Dane-se a lei, a Constituição e o devido processo legal. A LEI SOU EU. Quem ousar contestar ou sequer comentar, tem que fugir para os EUA, se tornar um exilado politico ou então arriscar ser preso na Papuda.

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