Diga o que quiser sobre Kamala Harris, mas ela consegue ler um teleprompter como ninguém. A vice-presidente, que se tornou candidata à Presidência, fez o discurso em que aceitou sua nomeação para as eleições presidenciais na Convenção Nacional Democrata, em Chicago, na noite de 22 de agosto, e demonstrou a elegância necessária para enfrentar 40 minutos de um discurso com roteiro rígido — e a mistura tradicional de autobiografia cor-de-rosa, chavões e ataques orientados — e continuar firme. É uma régua baixa, mas que seu sonâmbulo antecessor, o presidente Joe Biden, teve dificuldade de ultrapassar no final de sua candidatura.
Estava tudo lá. A narrativa folclórica e digna de um filme para TV de sua infância, filha de pai jamaicano e mãe indiana, cercada de familiares, amigos e vizinhos que pareciam estar sempre fazendo discursos motivacionais. “Nunca deixe que ninguém diga quem você é. Mostre a eles quem você é”, parece que sua finada mãe, Shyamala, gostava de dizer. É o tipo de baboseira que só os políticos americanos conseguem dizer sem vomitar. Cem por cento Hollywood.
A falsidade está embutida, especialmente com Kamala Harris. Estamos falando de uma figura política que, quando estava concorrendo pela primeira vez à Presidência, em 2019, criticou Joe Biden por seu histórico em questões raciais e chamou suas relações cordiais com senadores segregacionistas do Sul dos EUA de “dolorosas”. Ela também disse em 2019 que “acreditava” nas mulheres que o tinham acusado de violência sexual. Mais ou menos um ano depois, quando sua própria campanha fracassou por causa dos péssimos resultados nas pesquisas, Harris aceitou de bom grado o convite para ser sua companheira de chapa. No discurso do dia 22, ela rasgou elogios a Biden: “Seu histórico é extraordinário, como a história vai mostrar, e seu caráter é inspirador”.
O partido das elites e do setor público
Em termos de políticas, seu discurso ofereceu migalhas e intenções vagas — como esperávamos. Até o momento, em comparação, a campanha de Harris pela segurança fez o primeiro-ministro britânico Keir Starmer parecer um ideólogo imprudente. Talvez porque não queira chamar muita atenção para o fato de que ela, assim como Starmer, mudou quase todas as posições que já teve. Então Harris manteve as coisas simples e (em grande parte) incontroversas. Ela prometeu um “corte de impostos para a classe média”, um cessar-fogo em Gaza (e Israel seguro). Prometeu “gerar empregos, fazer nossa economia crescer e reduzir o custo das necessidades cotidianas, como assistência médica, moradia e mantimentos” — metas de que quase ninguém poderia discordar, mas não fez nenhuma tentativa real de explicar como seriam alcançadas. De forma mais decisiva, ela se comprometeu a proteger o direito ao aborto: a criptonita eleitoral dos republicanos desde a derrubada do caso “Roe versus Wade”.
Sinalização de virtude, triangulação, gerenciamento impessoal — é o que tem dominado a política democrata há muito tempo. Mas o identitarismo piorou muito a situação. Além de introduzir uma agenda social reacionária, a pauta woke agora exige que os eleitores fiquem extasiados com os candidatos ruins — não por causa do que defendem, mas pelo que seu sucesso eleitoral “representaria”. Foi assim com Hillary Clinton, que, acreditavam as elites democratas, poderia aproveitar uma onda de feminismo de elite “ambicioso” para chegar à Casa Branca. E o mesmo acontece com Kamala Harris. Aponte uma questão sobre a substância ou os princípios dela, e o fã-clube vai ficar olhando ao longe, murmurando “não seria ótimo se tivéssemos uma presidente negra e mulher?”. Eles desdenham os conservadores por chamá-la de “candidata DEI [diversidade, equidade, inclusão]”, ao mesmo tempo que a defendem nesses mesmos termos. Embora o discurso tenha sido um pouco mais contido desta vez, as elites democratas ainda não conseguem deixar de requentar o tipo de política identitária elitista que, nos últimos oito anos, levou cada vez mais a classe trabalhadora multirracial dos EUA para o lado republicano.
Se a ascensão de Harris representa alguma coisa, é a determinação implacável da elite democrata de se manter no poder. Primeiro, a máquina descartou Biden depois de seu desempenho humilhante no palco do debate com Trump; em seguida, começou a elogiar uma mulher que, até cinco minutos atrás, todos diziam, de forma reservada, ser um peso leve na política e um desastre como vice-presidente. Ao mesmo tempo, essa ascensão sela a mudança de longa data do partido, que deixou de ser o suposto partido dos trabalhadores e de seus sindicatos proletários para se tornar o partido das elites das costas americanas e do setor público engravatado — o “partido dos sindicatos de professores, das grandes empresas de tecnologia e das corporações”, como Ben Domenech define tão bem. A rotina do “democrata de sede de sindicato” de Biden não foi exatamente um último suspiro, mas um retorno performático e pouco convincente a um Partido Democrata que não existe há muito tempo.
A “kamalamania” é uma doença que não parece que vai se espalhar para além da classe social dos laptops
A ‘kamalamania’ é uma doença
Ainda assim, Trump continua a ser o grande unificador, pelo menos no que diz respeito aos aparelhistas democratas. Como aconteceu no decorrer de toda a Convenção Nacional Democrata deste ano, o discurso de Harris foi mais sobre a necessidade supostamente histórica de deter Trump — que, segundo ela, quer “levar nosso país de volta ao passado” — do que sobre a construção de um futuro brilhante e promissor. O entusiasmo fabricado da coroação de Harris não tem nada a ver com ela e tudo a ver com um establishment democrata que quer ser competitivo de novo, depois dos últimos dias cambaleantes de Biden na chapa.
Ouso dizer que o establishment vai cair em si quando Harris entrar em contato com um maior escrutínio público e midiático, algo que ela tem evitado de maneira consciente até agora. Os comentários sobre seu discurso têm sido surpreendentemente mornos. “Não foi um discurso político para entrar para a história”, começa uma reportagem do Guardian, com um quê de eufemismo. O primeiro debate de Harris com Trump, em setembro, será seu primeiro teste real. Mas também não será fácil para Trump, que tem se esforçado para atacar Harris sem recorrer às suas piores tendências — discorrendo sobre ela se identificar como negra ou indiana e lutando para se ater à economia e à política de imigração, onde ele é mais forte.
Se Kamala Harris conseguir uma vitória improvável em novembro, não será devido ao grande entusiasmo gerado por ela no país. A “kamalamania” é uma doença que não parece que vai se espalhar para além da classe social dos laptops. Enquanto isso, os americanos da classe trabalhadora, que lutam para colocar comida na mesa, alimentando a suspeita de que as elites liberais ainda os desprezam e a seus valores, estão ligando a TV para ver os líderes dos democratas falando sobre a “alegria” que essa figura política de carreira inexpressiva despertou. Harris pode ter sido abençoada com um oponente impopular. Mas ninguém se alimenta de vibes.
Tom Slater é editor da Spiked. Ele está no X: @Tom_Slater_
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Ou muda esse retrocesso político ou as populações do mundo vão se deteriorar