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Elenco da série Friends | Foto: Divulgação
Edição 233

Os 30 anos de Friends

A série completa três décadas de sucesso absoluto como uma lembrança de tempos menos chatos

Dagomir Marquezi
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No início dos anos 1990, a dupla de produtores e roteiristas Marta Kauffman e David Crane, já com 16 anos de parceria, decidiu criar uma nova série cômica. Eles imaginaram uma sitcom em que um bando de colegiais faria piadas sobre a confusa vida sexual da adolescência. De vez em quando eles parariam de falar e começariam a cantar.

Kauffman e Crane pensaram melhor e acharam que não ia dar certo fazer um musical. Decidiram também que não focariam adolescentes, mas jovens adultos esticando a excitação da vida universitária. O título provisório seria Friends Like Us. Quem viveu essa fase sabe como ela é: amigos em situação economicamente precária, sem compromisso conjugal, sem filhos para criar, tendo uns aos outros para ajudar em qualquer necessidade. Uma vida de farras, festas, bares, namoros rápidos, piadas sem fim.

A dupla criou seis jovens, todos arquétipos com os quais nos identificamos de um jeito ou de outro. O roteiro do primeiro episódio trazia a descrição de cada um:

MONICA – Esperta. Cínica. Defensiva. Muito atraente. Teve que trabalhar por tudo o que tem. É chef assistente de um restaurante chique. E um desastre sentimental.

RACHEL – Mimada. Adorável. Corajosa. Aterrorizada. Melhor amiga de Monica no colegial. Não trabalhou por nada do que tem. Vivendo fora da casa da família pela primeira vez. Preparada para não fazer nada.

PHOEBE – Doce. Excêntrica. Perdida na New Age. Antiga colega de quarto de Monica. Vende prendedores de cabelo na rua e toca violão no metrô. Uma boa alma.

ROSS – Inteligente. Emocional. Romântico. Irmão de Monica. Subitamente divorciado. Encarando a vida de solteiro com fenomenal relutância. Paleontologista. Não que isso seja importante.

JOEY – Bonitão. Macho. Metido. Mora no apartamento em frente ao da Monica. Quer ser ator. Na verdade, quer ser Al Pacino. Ama as mulheres, esportes, esportes, mulheres, Nova York, mulheres e, mais que tudo, Joey. 

CHANDLER – Divertido. Seco. Observa de fora a vida de todos. E a sua própria. Trabalha em frente a um computador fazendo algo tedioso em um cubículo claustrofóbico num edifício de escritórios. Sobrevive graças ao seu senso de humor. E aos snacks.”

E então a mágica se fez com um elenco perfeito: Courteney Cox (Monica), Jennifer Aniston (Rachel), Lisa Kudrow (Phoebe), David Schwimmer (Ross), Matt LeBlanc (Joey) e Matthew Perry (Chandler). Atores jovens, bonitos, pouco conhecidos, muito engraçados. Deram liga desde o início.

David Schwimmer como Ross Geller, Courteney Cox como Monica Geller, Jennifer Aniston como Rachel Cook, Matthew Perry como Chandler Bing, Matt LeBlanc como Joey Tribbiani e Lisa Kudrow como Phoebe Buffay. Episódio: The One Where They All Turn Thirty | Foto: Reprodução/Warner Bros. Television
Dois noivos que não se conhecem

O primeiro episódio abre com os créditos: os seis tomam banho numa fonte, à noite. Dançam, fazem micagens, sorriem como se aquela fase jamais fosse acabar. Pode ter sido coincidência, mas a cena remete à mítica fonte da eterna juventude. A música-tema, I’ll Be There For You (o único sucesso da dupla The Rembrandts), traz a alegria de uma festa sem fim.

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A letra, em tradução livre, resume o espírito de Friends durante suas dez temporadas no ar:

“Então ninguém te disse
Que a vida ia ser assim
Seu emprego é uma piada, 
Você está duro, 
Sua vida amorosa está morta
É como se você estivesse 
Sempre preso na segunda marcha
Quando não for seu dia, sua semana, 
Seu mês, ou mesmo seu ano
Eu estarei lá com você 
Quando a chuva começar a cair
Eu estarei lá com você 
Como eu estive antes
Eu estarei lá com você 
Porque você estará comigo também”

O início da série é um exemplo de despretensão. Monica, Chandler, Joey e Phoebe estão reunidos no ponto de encontro favorito deles, a cafeteria Central Perk. (Friends se passa em Nova York, mas foi filmada em Los Angeles.)

Os quatro levam uma conversa sobre paqueras e sonhos. E então surge o quinto elemento: Ross, o irmão de Monica. Sempre carente e neurótico, está arrasado porque sua noiva acabou de trocá-lo por outra mulher. Ross declara que tudo o que deseja agora é se casar de novo. Nesse momento, Rachel entra no Central Perk vestida de noiva, logo depois de dispensar seu noivo no altar. Formou.

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Em quatro minutos o sexteto está formado. Rachel aceita morar com Monica (sua amiga de longos anos). E Ross vai morar no apartamento em frente, com Chandler e Joey. Phoebe, que mora em outro lugar, aparece todos os dias. A vida deles vai girar em torno desses três cenários — os dois apartamentos e a cafeteria. O sofá alaranjado do Central Perk se torna um símbolo universal de zona de conforto.

A maratona de 86 horas

Marta Kauffman e David Crane lançaram Friends no dia 22 de setembro de 1994. Optaram por um estilo arriscado: a comédia com o formato dos anos 1950, gravado em frente a uma plateia que ria em momentos coordenados. Essas risadas meio mecânicas afastaram inicialmente uma parte do público.

A própria Lisa Kudrow reclamou delas em entrevista recente. Disse que ficava irritada quando dizia uma frase não tão engraçada e a risada durava o mesmo tempo que outras melhores. “Quando você está num teatro fazendo uma comédia, as risadas duram o tempo que têm que durar”, disse Lisa. Em Friends, cada frase engraçada tinha que esperar um tempo determinado, o que tirava um pouco da espontaneidade. Os atores foram aprendendo a esticar suas frases com gestos exagerados para esperar o fim das risadas. 

As comédias de TV estavam começando a mudar para um estilo mais cinematográfico e menos teatral — e não tinham mais claque. Friends sobreviveu a essa mudança de estilo. O que não prejudicou nem um pouco seu imenso sucesso global e a fidelidade de seus fãs. 

Friends começou como um programa de TV aberta, passou para o DVD, depois para o BluRay, depois para o streaming da Netflix e agora reina no Max. Ninguém cogita tirar seus 236 episódios do ar. (O que dá um total aproximado de 5.192 minutos — uma maratona completa duraria 86 horas e meia, ou quase três dias seguidos de olho na tela.)

Papai sabe tudo

Existem duas maneiras de curtir Friends. Uma é pegar episódios esporádicos e rir das piadas. E outra é assistir a Friends como uma longa novela, observando a evolução de cada personagem.

Assistidos em ordem, podemos acompanhar Ross tentando desenvolver um relacionamento duradouro. Rachel fugindo da sua origem de menina fútil e mimada. Monica lidando com sua obsessão por controle. Phoebe transitando entre sua loucurinha hippie e a vida adulta. Chandler saindo da superficialidade das piadinhas sem fim e se transformando em pai de família. E Joey deixando de ser irresponsável na sua carreira de ator e parando de tratar as mulheres que conquista como descartáveis (ele pelo menos tenta).

O que era para ser um musical adolescente virou a série mais badalada do mundo. Atores da elite do cinema fizeram participações especiais ou até papéis fixos. Entre outros, em ordem alfabética: Alec Baldwin, Ben Stiller, Brad Pitt, Brooke Shields, Bruce Willis, Charlie Sheen, Charlton Heston, Christina Applegate, Danny DeVito, Elliott Gould, Gary Oldman, George Clooney, Greg Kinnear, Helen Hunt, Hugh Laurie, Isabella Rossellini, Jean-Claude Van Damme, Jeff Goldblum, Julia Roberts, Paul Rudd, Reese Witherspoon, Robin Williams, Sean Penn, Susan Sarandon, Tom Selleck e Winona Ryder.

A partir da criação de Marta Kauffman e David Crane, séries começaram a mostrar cada vez mais grupos fora de suas famílias. Os personagens de Friends se aventuram em romances fugazes e sexo inconsequente. Mas acabam, quase sempre, formalizando o casamento na igreja e no cartório, com padrinhos e damas de honra. Rachel, Phoebe e Monica, todas elas passaram por algum tipo de experiência com outras mulheres. Chandler e Joey descobrem que relaxam quando dormem juntos. Mas isso acontece de maneira natural. Não é uma bandeira.

Friends também criou uma escola de sitcoms. O sucesso de sua fórmula gerou How I Met Your Mother, The Big Bang Theory, The New Girl, That 70’s Show, entre outras. Antes de Friends, a norma eram séries sobre famílias, desde a pioneira Papai Sabe Tudo (1954-1960). O foco passou a ser grupos de amigos (ou de colegas, como em The Office).

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Morte aos 54

Friends teve dois momentos de crise, ambos depois de encerrada a produção. Um deles começou no período de terror que se seguiu à morte de George Floyd, em 2020. A criadora Marta Kauffman teve que se ajoelhar simbolicamente por ter escolhido seis jovens brancos para o elenco. “Admitir e aceitar a culpa não é fácil”, disse Kauffman ao jornal Los Angeles Times. “É doloroso olhar para si mesmo no espelho. Estou envergonhada por não ter percebido isso há 25 anos.”

Como sinal de arrependimento, Marta Kauffman doou US$ 4 milhões para a criação de um curso sobre “a África e os afro-americanos” na universidade onde estudou, em Boston. Doações renderam ao Black Lives Matter a compra de imóveis para os líderes do movimento, incluindo uma mansão de US$ 6 milhões no sul da Califórnia, com seis suítes, piscina, bangalô e estacionamento para 20 carros.

Rever Friends hoje, além do prazer provocado por uma ótima comédia, dá uma sensação de que vivemos num outro mundo, pré-woke

Outra crise quase permanente foi o estado de saúde de Matthew Perry, o Chandler. Matthew lutou contra a dependência de álcool e drogas por praticamente toda a série. Num episódio ele aparece inchado, no seguinte, magérrimo. Esse drama não comprometeu seu trabalho de ator, mas foi um motivo de tensão para os produtores e todo o elenco. Perry sobreviveu aos dez anos de produção da série, lançou uma dolorida autobiografia em 2022 e morreu em 28 de outubro do ano passado, de overdose do remédio ketamina. Tinha 54 anos.

Capa da autobiografia Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível, de Matthew Perry | Foto: Divulgação
O sofá alaranjado do Central Perk

Rever Friends hoje, além do prazer provocado por uma ótima comédia, dá uma sensação de que vivemos num outro mundo, pré-woke. As coisas não acontecem por obrigação ou patrulha. Logo no primeiro capítulo temos o caso de lesbianismo da noiva de Ross, Carol. Não está no roteiro por causa de afirmação de diversidade sexual, mas porque relacionamentos entre mulheres acontecem. Fazem parte da vida. 

Piadas não ofendiam ninguém, e ofendiam todo mundo ao mesmo tempo — gordos, magros, gays, héteros, intelectuais, ignorantes, homens, mulheres. Funcionavam como sempre funcionou o humor — até que chegaram as milícias woke.

Friends continua no ar. Trinta anos depois da primeira risada, ainda nos sentamos em frente ao mesmo sofá alaranjado do Central Perk. Ross, Chandler, Phoebe, Rachel, Monica e Joey continuarão lá com a gente quando a chuva começar a cair.


Agradecimentos a Daniella Gallotto

@dagomir
dagomirmarquezi.com

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2 comentários
  1. Manoela Machado
    Manoela Machado

    nao sabia que tinha sido ketamina , achei que ele tinha tido um infarto na banheira e afogado.

  2. Diana Rocha Capdeville
    Diana Rocha Capdeville

    Amo “Friends”, foi uma diversão assisti-los! De vez em quando ainda assisto algum episódio. Fiquei muito triste com a morte de Mattew, principalmente ao saber da luta que ele travou contra o vício. Outro dia li uma reportagem que afirmava que ele havia sido induzido a tomar uma dose mortal de droga, um assassinato. Não sei se é verdade. Que esteja finalmente em paz. 🙏

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