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Cartaz do filme O Grande Silêncio: Estupro no Congo | Foto: Chen Yerushalmi/Divulgação
Edição 235

Guerra de estupros

No Congo, cerca de 80% das mulheres sofreram violência sexual em meio aos conflitos na região

Eugenio Goussinsky
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A violência impera na República Democrática do Congo. Mais de cem milícias se enfrentam com bombardeios, tiros e facões. E avançam sobre populações de deslocados, em uma guerra que já matou o maior número de pessoas depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Foram mais de 6 milhões de mortos desde 1996. Mas o sofrimento naquela região africana parece esquecido pelo resto do mundo. As atenções se voltam mais para as guerras no Oriente Médio e na Europa.

Além das crianças, as maiores vítimas são as mulheres. Em uma das poucas matérias sobre o drama local, o Wall Street Journal (WSJ) relata que, nas cercanias de Goma, no leste do país, há em torno de 500 mil pessoas deslocadas — obrigadas a deixar suas casas, cidades ou vilarejos. 

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A estimativa é de que, naquela área, 80% das mulheres foram estupradas. Entre elas, meninas de 8 anos, segundo psicólogos, enfermeiros e outros que trabalham com sobreviventes de violência sexual.

Em condições precárias, elas caminham por horas em busca de plantas que possam servir como alimento. Andam pela mata densa. Cada uma das mulheres foi estuprada nesse trajeto. Algumas, três vezes.

Uma mãe foi violentada enquanto seu bebê estava deitado no chão ao lado dela, chorando. Em outra situação, dois homens armados com facas e facões empurraram uma mulher para o chão. Ela ficou por horas deitada, sem forças. Cada uma das vítimas ouviu os gritos abafados de suas amigas sendo atacadas nas proximidades.

Sem alternativa, elas precisam buscar lenha e plantas comestíveis. Vivem em um acampamento precário. Sofrem ao ver seus filhos passar fome, de dia, e frio, à noite. As pequenas rações de farinha e feijão que recebem uma vez por mês não bastam. Embrenham-se, então, em áreas remotas do Parque Nacional Virunga, do Congo. 

Pessoas em um acampamento localizado na cidade de Goma, na República Democrática do Congo (29/6/2023) | Foto: Shutterstock

O local é conhecido como um santuário de gorilas. E se tornou esconderijo dos guerrilheiros do M23, grupo tutsi que busca tomar o poder e controlar a região, rica em minérios.

“Eu vou quando meus filhos estão chorando de fome”, conta Espérance Kanyamanza. “Vou quando não temos roupas. Vou quando não temos nada.” Aos 26 anos, Espérance é mãe de quatro filhos. Foi estuprada três vezes ao longo de sete meses, até meados de 2024. Ela vive cercada de milicianos nesse pequeno assentamento que fica na fronteira com Ruanda. 

Neste momento, descreve o WSJ, a guerra entre rebeldes e o exército congolês está em um novo ápice. 

A prática do estupro como arma de guerra é rotineira. Além de trauma nas mulheres, gera efeitos intergeracionais, com crianças nascidas de estupro frequentemente enfrentando discriminação e abandono. 

Em muitas comunidades, essas crianças são vistas como “filhas do inimigo” e marginalizadas desde o nascimento. Isso cria um círculo vicioso de violência, instabilidade e desintegração social.

Crianças em um acampamento localizado na cidade de Goma, na República Democrática do Congo (29/6/2023) | Foto: Shutterstock

Espérance foi para Goma por causa de um conflito que estourou na Vila de Rugar, província de Kivu do Norte, no outono de 2022. Ela vendia cerveja de milho, tradicional na região. Então sentiu o chão tremer, por causa de morteiros que haviam atingido as cercanias. Os rebeldes tutsis do M23 atacavam.

Segundo investigadores da ONU, Ruanda enviou secretamente até 4 mil tropas e armamento avançado para dentro do Congo para dar suporte ao M23. Há cerca de cem milícias que lutam contra o grupo tutsi.

Esses milicianos são conhecidos como Wazalendo, que em suaíli significa “patriotas”. Ocupam as colinas ao redor de Goma. Muitos vivem no mesmo acampamento das mulheres. Organizações como a Human Rights Watch, a Anistia Internacional e agências da ONU registram que a violência sexual é cometida por todos os combatentes: do M23, do exército congolês e do Wazalendo.

Pelas mulheres

Carregando as filhas Cécile, de 6 anos, e Tsiara, de 1 ano, Espérance andou por dois dias até chegar a Goma. Deixou o filho Jules, de 8 anos, que na hora da fuga brincava com os amigos, e o marido, que não estava no local.

Mapa da África, com a República Democrática do Congo ao centro, com um marcador próximo à cidade de Goma, no leste | Foto: Shutterstock

Espérance é uma das mulheres que romperam o silêncio e o estigma para falar sobre o drama dos estupros ao WSJ. “Estou falando para que haja ajuda, para que a guerra acabe, e para que outras mulheres não sejam estupradas”, diz Renatha Mwamini, 28 anos, com seu filho de 6 meses, Gabriel, no colo. 

Renatha estava grávida e sabia que precisava comer para dar condições de sobrevivência ao feto. Na busca por alimento, ela foi amarrada em uma árvore por três homens armados que a estupraram.

“Muitos combatentes mal entraram na adolescência, têm 14 anos, todos são jovens, sem nenhuma consciência em relação ao respeito às mulheres, incorporam um machismo que existe no mundo todo”, afirma o antropólogo Kabengele Munanga, professor emérito da Universidade de São Paulo. “Vivem de ódio, e na guerra isso piora ainda mais. E os estupros se tornam uma prática brutal e comum.”

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Nascido no Congo, Munanga está há mais de 50 anos no Brasil. Conhece realidades locais, marcadas por brigas de grupos que, segundo ele, não são tribos, mas castas. E que lutam pelo poder em uma região crucial, que faz fronteira com nove países.

“O Congo é o coração da África. O que acontece lá reverbera”, destaca o professor. 

Há décadas Munanga acompanha à distância os conflitos. Ele se ressente da apatia da comunidade internacional em relação à gravidade da situação. Assim como o drama das mulheres, a matança no coração da África não é manchete dos principais jornais do mundo. Segundo o antropólogo, a ajuda dos EUA e de países ocidentais, com envio de dinheiro, médicos e educadores, não tem o efeito necessário.

“Desde os anos 1996, já morreram mais de 6 milhões de pessoas na guerra naquela região”, diz. “Em países de outros continentes, a morte de mil pessoas já é motivo de justa comoção. Estou falando de mais de 6 milhões que morreram de forma silenciosa, sem alarde, com a preocupação apenas de grupos de abnegados, que não conseguem dar conta do problema.”

As estradas ao redor de Goma são controladas pelo M23. O grupo avançou 15 milhas na cidade. “Mas eles estão longe de tomar o poder, a capital Kinshasa fica distante [2,4 mil quilômetros], e o presidente, eleito, tem apoio da população”, garante Munanga.

Pessoas caminhando pela estrada na cidade de Goma, no leste da República Democrática do Congo (9/3/2018) | Foto: Denys Kutsevalov/Shutterstock

Reencontro com o filho

A região é o núcleo de um conflito que, na prática, se estende desde a Independência do Congo em relação à Bélgica, em 1960. Desde então, grupos lutam pelo poder, entre eles os hutus e os tutsis, que, nos tempos de colônia, eram aliados dos belgas.

Há ainda outras etnias, como a ngbandi, do ditador Mobutu Seko (1965-1997), e luba, do atual presidente, Félix Tshisekedi, eleito em 2019. 

A área ficou ainda mais tensa depois da expulsão dos tutsis de Ruanda, em 1994, durante um genocídio de 1 milhão de pessoas. A matança só acabou quando os tutsis retomaram o poder em Ruanda, por meio da Frente Patriótica Ruandesa, comandada por seu atual presidente, Paul Kagame. O M23 surgiu nesse momento.

Paul Kagame, presidente da República de Ruanda, discursa na 77ª Assembleia Geral das Nações Unidas, na sede da ONU, em Nova York (21/9/2022) | Foto: Shutterstock

Foi quando milhões de refugiados, principalmente da etnia hutu, cruzaram a fronteira rumo ao Congo. Entre eles estavam membros do governo deposto de Ruanda e muitos dos perpetradores dos massacres de tutsis ruandeses.

A junção desses refugiados em uma região com suas próprias populações hutu e tutsi provocou uma sequência de guerras que continuam até hoje. Por duas vezes, Ruanda invadiu o Congo com o argumento de que se protegia de ataques de milícias hutu. Assim ocorreram a Primeira (1996-1997) e a Segunda Guerra do Congo (1998-2003).

O leste do país é rico em minerais como coltan, ouro e diamante. Kagame foi acusado de explorar e beneficiar-se ilegalmente desses recursos durante e após os conflitos, muitas vezes por meio de grupos rebeldes aliados.

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A atual guerra se explica em grande parte porque Kagame deseja manter uma forte influência na política do Congo. Apoia o M23 para garantir aliados e estabilidade ao longo da fronteira.

Algumas tentativas, conta o WSJ, foram feitas para proteger a população local dos crimes cometidos pelas milícias. Os EUA enviaram profissionais para educar as comunidades sobre violência sexual e fornecer suporte médico, psicológico e legal para sobreviventes. Foram gastas algumas dezenas de milhões de dólares.

Outros governos ocidentais e instituições internacionais prometeram treinamentos mais eficientes para soldados e outros combatentes, com o objetivo de impedir que o estupro seja usado como arma de guerra. Mas os esforços dos países de fora se dissiparam ou foram superados pela escala sem precedentes das necessidades locais.

Somente depois de três dias Espérance reencontrou o filho Jules e o marido. Pensava que eles tinham morrido. Todos passaram a morar em uma barraca de madeira e lona em um campo de pedras pretas. Naquele momento, ela teve um pouco de paz.

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