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Ministro Alexandre de Moraes, durante sessão plenária do STF (21/8/2024) | Foto: Fellipe Sampaio/STF
Edição 239

O agente da CIA

O Estado só considera lícitos os atos que derivam das ficções criadas por ele próprio. Fora disso, é atentado à 'democracia'

J. R. Guzzo
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A realidade política no Brasil de hoje vive a situação clássica dos regimes que enlouquecem, ou estão a caminho de enlouquecer. Como ocorre nos estados clínicos de psicose, a única realidade desse tipo de regime é, justamente, o rompimento radical com a realidade. Saem os fatos. Entra a ficção oficial. Sai o raciocínio lógico. Entra o Alcorão do governo e dos seus sistemas de propaganda. O pensamento racional passa a ser um “tipo penal”, como dizem os advogados criminalistas — pode dar, e tem dado, inquérito policial, processo e cadeia. O Estado só considera lícitos os atos que derivam das ficções criadas por ele próprio. Fora disso, é atentado à “democracia”, “desinformação” e fake news, mais discurso do ódio. Assunto encerrado. Causa finita.

Escolha a sua ficção — o que não falta na atual política brasileira é variedade de miragens à disposição do público em geral, e todas elas têm força de lei. Que tal, para começar, a tentativa de golpe armado do dia 8 de janeiro de 2023, no qual as armas mais potentes eram dois estilingues? Você também pode ficar, se quiser, com as “minutas do golpe” do coronel Cid, que nem o ministro Alexandre de Moraes está conseguindo usar como prova de nada. Pode ser, como dizem os jornalistas, o “roubo de joias” do qual acusam Jair Bolsonaro até hoje, a falsificação de atestados de vacina e a própria prisão do ex-presidente — que foi anunciada várias vezes pela mídia como sendo para “esta noite”.

Depoimento para CPMI do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens do então presidente Jair Bolsonaro, em Brasília (11/7/2023) | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

E as urnas eletrônicas do TSE e de seus padroeiros no STF, então? Você é obrigado a acreditar que elas são um orgulho do Brasil perante o resto do mundo, imunes a qualquer ação humana sobre o seu funcionamento — e, mais do que tudo, atingiram um nível de perfeição tecnológico tão espetacular que a ciência mundial não pode mais, simplesmente, sugerir nenhum tipo de melhoria para elas. Essa crença é obrigatória, legalmente, no Brasil da realidade irreal. Se você duvidar dela numa palestra a embaixadores estrangeiros, por exemplo, pode ser declarado “inelegível” até o ano de 2030. Se for presidente do PL, e pedir uma recontagem dos votos, pode levar uma multa de R$ 22 mi no lombo. Se escrever no X, o ministro te pega.

A fantasia do momento, uma das mais metidas a besta da coleção toda, é que a Câmara dos Deputados está discutindo um “pacote anti-STF”. Pela cólera que despertou nos ministros, no governo Lula e na maioria da mídia, trata-se de uma ameaça tão grave quanto a insurreição dos motoboys, manicures e encanadores que tentaram dar o “golpe do 8 de janeiro”. É um atentado contra o princípio constitucional da “separação de Poderes”, dizem eles. É uma vendeta contra a coragem do STF em perdoar as multas de bilionários corruptos, viajar pelo Primeiro Mundo às custas do “empresariado” e definir batom como “substância inflamável”, para efeitos de defesa da democracia. É também uma “pressão inaceitável” contra um tribunal que mantém aberto há cinco anos e meio um inquérito policial vetado por lei, que anula seguidamente decisões do Congresso e que criou o flagrante perpétuo, o crime de acampar na porta de quartel e a prisão preventiva por tempo indeterminado.

Discussão e votação de propostas legislativas na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (9/10/2024) | Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

O Congresso, nesse Brasil em que a realidade é criminalizada, está fazendo justamente o contrário — tenta, isto sim, salvar o STF de sua corrida rumo ao suicídio. A Câmara de Deputados, através de quatro projetos, pretende colocar certos limites aos poderes absolutos, ilícitos e irracionais que o Supremo deu a si próprio, com apoio do governo Lula, das Forças Armadas e dos grandes veículos de comunicação. É um esforço, na verdade, em defesa da Constituição Federal: protege as instituições brasileiras da situação de ilegalidade que o STF criou neste país de 2018 para cá, e do regime de exceção imposto pelos ministros. Mais precisamente, defende a população de uma ditadura disfarçada de “ciência jurídica”, ou obra de “recivilização” da sociedade, como diz o ministro Luís Roberto Barroso.

O que pretendem, na realidade real, os projetos aprovados na Comissão de Justiça da Câmara? Pelos relatos, versões e análises que saem dos serviços de relações públicas do Supremo, o objetivo dos deputados é eliminar o Poder Judiciário na sua instância mais alta. É obviamente um disparate, como o “golpe do dia 8 de janeiro” ou o “atentado” contra o ministro Moraes no Aeroporto de Roma. Um dos projetos, por exemplo, prevê que decisões do Congresso Nacional não podem mais ser anuladas pelo voto de um único ministro — “monocrático”, como eles dizem e a imprensa repete. Teria de ser, no mínimo, pela maioria dos 11 ministros. O que pode haver de mais lógico, moderado e simples do que isso? Nada — mas o fim do voto do “eu sozinho” está sendo denunciado como um tiro de morte na democracia.

É esse tipo de aberração que permite ao ministro Dias Toffoli anular, sem prestar contas a ninguém, e em aberto desrespeito à lei, os R$ 10 bilhões que a J&F dos amigos de Lula se comprometeu a pagar para seus diretores saírem da cadeia pelo crime de corrupção ativa. Foi o que permitiu ao ministro Edson Fachin anular todas as condenações de Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, sem o exame de uma única e escassa prova — ele decidiu, num ato de pura vontade pessoal, que o endereço do processo estava errado, e Lula saiu da cadeia para ser colocado na Presidência da República. É o que permite ao ministro Flávio Dino proibir que as vítimas da tragédia de Sobradinho contratem e paguem advogados na Inglaterra para defender seus interesses no caso. É uma lista que não acaba mais — e tem teores de imoralidade de 100%.

Ministro Edson Fachin, ministro Alexandre de Moraes e o ministro Cristiano Zanin participam da solenidade de posse da nova direção do Tribunal Superior do Trabalho (TST), no Auditório Ministro Arnaldo Lopes Süssekind, no edifício-sede do tribunal, em Brasília (10/10/2024) | Foto: Fellipe Sampaio/STF

É claro por que os ministros do STF não querem mudar nada disso, não é mesmo? Nem eles e nem os interesses a que servem, e pelos quais são por sua vez servidos, num arco-íris que vai de Lula aos irmãos Batista, do Psol à Odebrecht. O restante das mudanças em estudo vai na mesma direção. Tratam, basicamente, de limitar os poderes ilegais que o STF atribuiu a si mesmo e que são uma afronta direta ao que está estabelecido na Constituição em vigor no Brasil. Qual é o problema em tratar dessas questões? É alguma loucura — como as que o STF tem feito há mais de cinco anos? Quem enlouqueceu foi a nossa “suprema corte”, como diz Lula. O que os deputados da oposição estão fazendo é chamar a ambulância do Samu para levar o surtado até o hospício mais próximo.

Os projetos de reforma do STF são perfeitos? É claro que não. Talvez até não sejam bons. Certamente têm de ser discutidos. Mas é justo aí que está o ovo da cobra: os ministros, as classes que não produzem e a mídia não querem, de jeito nenhum, que qualquer reforma seja sequer debatida no Congresso. Onde seria permitido falar do assunto, então? Nos eventos internacionais do Gilmarpalooza? Em Roma, sob o patrocínio da JBS, ou em Londres, sob o patrocínio da British American Tobacco? Nas reuniões do Diretório Nacional do PT? É uma farsa tamanho XXX-extra-máximo. Acusam a Câmara, a oposição de direita e “os bolsonaristas” de quererem dar um golpe de Estado “atacando” o STF. Mas se os deputados forem proibidos de discutir uma lei, qualquer lei, para que diabo serviria esse Congresso?

Deputada Caroline de Toni (PL-SC), em discussão e votação de propostas legislativas na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (9/10/2024) | Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Quem, se não os parlamentares eleitos, tem o direito de discutir mudanças no Supremo? Onde está escrito na Constituição que o STF não pode ser mudado? Onde estão listadas as leis que a Câmara e o Senado podem aprovar — e quais seriam as que não podem? E de onde vem a extraordinária ideia de que o Congresso Nacional tem de respeitar um padrão de qualidade ISO 9000 nas leis que discute? Pior que isso: quem autorizou o STF, a mídia e o Lord Protector do Brasil, seja ele Barroso ou Moraes, a decidirem que a Câmara não tem qualificação para tratar do assunto — por acharem que os eleitores brasileiros são mais desqualificados ainda? A cereja do bolo, no caso, é que o pedido para o STF julgar inconstitucionais os projetos vem justo de um deputado de circunstância — na verdade, um prontuário policial ambulante, metido em processo na Justiça por ladroagem grossa, e hoje plenamente integrado ao “projeto de país” de Lula. Quer dizer: a Câmara não tem o direito de contestar o STF, mas um deputado tem o direito de contestar a Câmara.

Ele corre o risco de virar mais um herói instantâneo dos jornalistas, que, de qualquer forma, já anunciam que o STF “tem munição” para fazer o presidente da Câmara e outros gatos gordos do pedaço correrem se esconder na toalete com medo da Justiça Penal. É assim que funciona, na prática, a “defesa da democracia” no Brasil recivilizado pelo ministro Barroso. A lei tem de ser rejeitada não pelo voto livre, depois de debate livre, por parlamentares livres. Também não vêm ao caso os seus méritos e os seus deméritos. A única coisa que se leva em conta, e se considera uma notável virtude cívica, é tocar terror nos congressistas. Foram colocados lá por uma massa de eleitores ignorantes, fascistas e incivilizados — mas não tem problema, porque o STF está aí para resolver essas coisas.

Luís Roberto Barroso, presidente do STF, em Cerimônia de Entrega do Selo Linguagem Simples 2024 (16/10/2024) | Foto: Antonio Augusto/STF

O fato é que a sociedade por cotas que governa o Brasil de 2024, como se vê neste caso, considera que o país atingiu um estágio superior de civilização por conseguir algo jamais tentado pelas melhores democracias do planeta: tem um ordenamento jurídico tão perfeito, mas tão perfeito, que o STF vai vetar uma lei antes de saber o que foi aprovado. É onde acaba por desaguar, inevitavelmente, o culto à estupidez de terno e gravata. No caso brasileiro, uma das manifestações mais extremas dessa religião é a ideia de que “decisão do STF não se discute, se cumpre”. Pois é. Na Venezuela do companheiro Nicolás Maduro a ditadura está dizendo precisamente a mesma coisa. O STF deles decidiu que a eleição não foi roubada — e, como isso é uma ordem judicial suprema, ninguém tem de ficar discutindo nada.

Nem Lula. Como disse em público o procurador-geral de Maduro, cada vez mais impaciente com a hesitação de Lula em reconhecer a honestidade da eleição na Venezuela (ele continua esperando as “atas”, quase três meses depois), o processo eleitoral lá foi exatamente igual ao daqui. No Brasil o STF-TSE apresentou números dizendo que Lula ganhou em 2022. Na Venezuela o STF-TSE local apresentou números dizendo que Maduro ganhou em 2024. E então: qual seria a diferença? Na opinião do PGR de lá, aí tem coisa — Lula, disse ele na frente de todo mundo, é um agente da CIA disfarçado de esquerdista. Só pode ser.

Leia também “O inimigo é o eleitor”

17 comentários
  1. José Rubens Medeiros
    José Rubens Medeiros

    Perfeito, Guzzo. É a cadavérica realidade jurídica do Brasil.

  2. CARLOS GUEDES
    CARLOS GUEDES

    Gostei muito da foto do Meloso (digo Barroso) na entrega do Selo Linguagem Simples publicada quase ao fim da noticia.
    Que biquinho e dedinho lindos.
    Ai… ai… Uma gracinha ….

  3. Eda Maria de Oliveira Santos
    Eda Maria de Oliveira Santos

    Se levarmos em conta o STF vivendo no mundo da ficção, invertendo a realidade: o “defunto” do Lula ( já foi defunto) deve ser mesmo ,”agente da CIA” disfarçado. Tá explicado. O Brasil é mesmo surreal.

  4. Lauro Patzer
    Lauro Patzer

    Boa pergunta. Quem deu o direito ao STF agir em causa própria e governar o país? Não há mais como concordar com o Golpe das Togas que procrastinou a Constituição.

  5. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    Me detive observando a foto do douto ministro que ilustra a matéria. A última foto, aquela do ministro que está recivilizando o Brasil. Uma foto espetacular, uma foto que mais ainda do que a cara, mostra a alma, uma alma delicada, a alma de um artista, com aquele mindinho em riste. Nero também era um grande artista, ou ao menos, pensava assim. Pena que ninguém se lembre dele pela sua sensibilidade extrema e sua arte mal compreendida.

  6. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    J. R. Guzzo sempre lembrando a Verdade em que se transformou este contorno geográfico que atende pelo nome de “Brasil”. Cabe mesmo perguntar: O Brasil ainda tem jeito? Dá para consertar? Na falta de respostas, fico com a minha: não tem mais jeito.

  7. Julio Fressa
    Julio Fressa

    O Brasil acabou. Chamem o PCC!

  8. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tem que cassar PT PSOL PSB entre outros partidos políticos e botar essa cúpula dos três poderes na cadeia e metade desses parlamentares ladrões. Quando tiver tudinho preso é que as autoridades brasileiras de verdade vão julgar esses bandidos comunistas terroristas ladrões

    1. Osmar Martins Silvestre
      Osmar Martins Silvestre

      Mas, lembrando a historinha: Quem vai botar o sino no gato?

  9. Flavio Martins Viana
    Flavio Martins Viana

    Se o pessoal do stf ler esse artigo devem pedir o boné e ir embora.

    1. Osmar Martins Silvestre
      Osmar Martins Silvestre

      Se tivessem um mínimo de hombridade, sim, fariam isso imediatamente. Aliás, já teriam feito lendo artigos anteriores do mesmo J. R. Guzzo

    2. MNJM
      MNJM

      Mestre Guzzo como sempre brilhante. A arrogância desses togados um dia cairá. A Instituição está desmoralizada graças a esse colegiado ditatorial. Se acham acima das leis. Fora.

  10. Paulo Henrique de Salles Cunha
    Paulo Henrique de Salles Cunha

    Todos os colunistas da Oeste são fantásticos! Mas o Guzzo, pelamor, é absolutamente perfeito!! Vale cada centavo da assinatura!!! Parabéns por este e todos os demais textos

  11. Maria Silvia Camacho de Castro Silva
    Maria Silvia Camacho de Castro Silva

    Grande Guzzo,deveria ser reverenciado por toda a imprensa.
    Faz uma análise perfeita da situação em que estamos metidos……

  12. Joel Luiz Oliveira Rios
    Joel Luiz Oliveira Rios

    Ou o povo brasileiro pressiona e vai às últimas consequências por uma verdadeira reforma do Judiciário, reforma política e admiistrativa, ou jamais sairemos da merda em que nos encontramos como povo e nação. Abaixo o foro por prerrogativa de função(foro especial), abaixo financiamento público de campanhas políticas(fundos eleitorais), sejam estabelecidas as candidaturas independentes a fim de acabar com a roubalheira dos donos de partidos políticos os quais são todos gatos gordos desta roubalheira institucionalizada no Brasil e sem autorização dos pagadores de impostos. Ou o povo brasileiro vai pra cima destes vagabundos políticos que criaram esta sacanagem, ou já era Brasil livre. Estes políticos precisam tomar vergonha na cara, mas não o farão deles mesmos, e sim somente se o povo brasileiro acordar e for pra cima pra valer. Ajamos assim e veremos em breve uma nova nação e um povo respeitado como deveria ser sempre.

  13. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    A história oficial brasileira fica a anos luz da história real.A farsa não se sustenta por muito tempo,um dia a casa cairá. Mais um brilhante artigo de Guzzo, onde a realidade está totalmente desconectada das mentes doentias que nos governam.A verdade aparece,sempre aparece,as vezes de forma trágica. Uma dica de um brilhante filme argentino (está ainda na Netflix)seu nome é História Oficial, uma farsa que virou tragédia.

  14. COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA
    COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA

    EXCELENTE ANALISE !!!
    REALMENTE QUEM TEM O PODER – ” O PODER EMANA DO POVO ”
    PORTANTO QUEM TEM O PODER É O POVO E NÃO MINISTROS QUE NÃO ESTÃO NESTES CARGOS POR VOTOS DO POVO, MAS POR INDICAÇÃO DE POLITICOS…POLITICOS…POLITICOS….POLITICOS DISCUTIVEIS !!!!

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