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Edição 240

Apaziguamento ou confronto?

Vale a pena simplesmente sobreviver, sem qualquer resquício de dignidade, como um total escravo, sem se rebelar?

Rodrigo Constantino
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“A política de apaziguamento é uma manobra estratégica, causada por pragmatismo, temor da guerra ou convicção moral, pela qual um Estado-nação aceita condições impostas por outro ou outros, em vez de resistir pela força armada. Desde a Segunda Guerra Mundial, o termo adquiriu uma conotação negativa, de fraqueza, covardia e autoilusão, devido ao fracasso da política de apaziguamento de Neville Chamberlain com Adolf Hitler.” Eis a definição da Wikipédia, que podemos aceitar aqui.

Quando se tem Hitler do outro lado, fica claro que qualquer crença no apaziguamento não passa mesmo de ilusão. Mas nem todos são Hitler, claro. Há até uma expressão, “argumentum ad Hitlerum”, que busca expor a falácia de reduzir toda discussão ao caso nazista. Em algumas situações, um acordo de paz pode ser vantajoso e impedir a destruição total de um dos lados. Se o Acordo de Munique se mostrou um grave equívoco histórico, outros tratados de paz foram mais bem-sucedidos.

Quando se tem Hitler do outro lado, fica claro que qualquer crença no apaziguamento não passa mesmo de ilusão | Foto: Wikimedia Commmons

É possível buscar na história exemplos dos dois lados. Não tenho qualquer pretensão de ser um estrategista militar, mas quero apenas suscitar reflexões sobre os limites do pragmatismo, especialmente quando do outro lado temos verdadeiros psicopatas dispostos a tudo pelo poder e suas ambições. Churchill alertou que não é possível negociar a paz quando sua cabeça está na boca do tigre. Ele também provocou os britânicos “pacifistas”: “Entre a guerra e a desonra escolheram a desonra, e terão a guerra”.

O nazismo não é, nem de perto, o único caso em que a esperança de um acordo de paz foi a grande falsária da verdade, como diria Baltasar Gracián. Israelenses acreditaram no Acordo de Oslo, apenas para Yasser Arafat seguir com sua política de fomentação do terror. Podemos regressar bastante no tempo para falar do Tratado de Lutácio, firmado entre Cartago e Roma em 241 a.C. e que encerrou a Primeira Guerra Púnica após 23 anos de conflito. Ele não impediu as outras duas guerras, a última delas fatal para os cartagineses, que foram dizimados pelos romanos mesmo depois de cederem em todas as absurdas exigências.

Políbio, a principal fonte histórica para o conflito, considerou a postura romana um ato “contrário a toda justiça” e os historiadores modernos descreveram o comportamento de Roma como uma “agressão não provocada e violação de tratado”, “descaradamente oportunista” e um “ato inescrupuloso”. Os cartagineses, afinal, renunciaram ao controle da Sardenha, pagaram altas somas de indenização e até entregaram armas, incluindo seus temidos elefantes. Nada disso parou o avanço romano. E isso durante o seu período republicano!

Isso não é uma defesa do confronto a todo custo. O professor de história militar Victor Davis Hanson, em seu livro The End of Everything, mostra que a falta de realismo também levou povos inteiros a uma guerra suicida, como no caso grego de Tebas:

“A ingenuidade coletiva pode levar à morte de pessoas vulneráveis. O mesmo aconteceu com a clássica cidade-estado grega de Tebas. Em 335 a.C., os seus líderes apostaram erradamente que a revolta contra o império macedônio de Alexandre, o Grande, teria sucesso ou, se não, pelo menos resultaria na sua rendição negociada e na continuação da sua civilização. Eles estavam fatalmente errados em ambos os aspectos.”

Victor Davis Hanson, professor de história militar, e seu livro The End of Everything | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Para Hanson, a ingenuidade, a arrogância, as avaliações erradas dos pontos fortes e fracos relativos, a perda de dissuasão, as novas tecnologias e táticas militares, as ideologias totalitárias e um recuo para a fantasia podem explicar por que é que esses acontecimentos catastróficos, normalmente raros, continuam a se repetir. Para o professor, como a natureza humana é estável, esse tipo de tragédia pode acontecer nos tempos atuais também: “Infelizmente, quanto mais as coisas mudam tecnologicamente, mais a natureza humana permanece a mesma — uma lei que se aplica até mesmo aos Estados Unidos”.

Em sua análise do caso de Tebas, Hanson aponta várias falhas mortais nas análises de seus líderes, entre elas a crença dos tebanos de que, se sozinhos ousassem desafiar Alexandre, milhares de outros gregos poderiam aderir à sua causa libertadora. Isso não aconteceu, e o imperador da Macedônia se mostrou implacável quando derrotou Tebas.

Ou seja, Tebas foi destruída por acreditar de forma ilusória em sua capacidade militar e na possibilidade de atrair aliados para o conflito, enquanto Cartago foi dizimada por acreditar num acordo de paz com Roma, entregando tudo que os romanos exigiam, inclusive suas armas. No primeiro caso, o confronto prematuro significou o fim de Tebas, enquanto no segundo caso foi o apaziguamento irresponsável que levou ao extermínio dos cartagineses. Hanson traz questões legítimas sobre o tema:

“Quando o fino verniz da civilização é arrancado por conflitos intermináveis, onde exatamente reside a moralidade? Com uma sobrevivência vergonhosa que pelo menos oferece aos fracos, às mulheres, às crianças e aos idosos algum tipo de continuação? Ou numa gloriosa resistência de princípios, apesar da fraca esperança de vitória e da probabilidade de extermínio? Em que momento de ouro uma civilização avalia as consequências da rendição ao enfrentar a derrota certa contra a glória da resistência que pode oferecer até mesmo uma pequena chance de triunfo contra probabilidades adversas?”

Não é trivial responder. A máxima de que é melhor perder de pé do que ganhar de quatro é válida se a derrota, no caso, não for sinônimo de total aniquilamento. O revolucionário mexicano Emiliano Zapata foi quem colocou este aspecto: “É melhor morrer de pé do que viver de joelhos”, um aforismo agora bastante comum entre os líderes de guerra. Mas, como argumenta Hanson, por mais nobre que seja o sentimento, esse fatalismo corajoso é muitas vezes um conselho sábio apenas para os fortes, ou pelo menos para aqueles que têm alguma confiança na vitória. Para os vulneráveis, morrer “uma vez” de pé pode significar garantir a tortura, a escravização ou o massacre dos jovens que ainda não aprenderam a andar.

Por outro lado, vale a pena simplesmente sobreviver, sem qualquer resquício de dignidade, como um total escravo, sem se rebelar? Para garantir a sobrevivência dos indefesos, o recomendável seria então aceitar se submeter aos arbítrios dos poderosos? Não há resposta certa e objetiva aqui, pois vai depender de valores subjetivos e de avaliações particulares dos riscos envolvidos. Posso falar apenas por mim: prefiro um confronto, mesmo com muitos riscos de derrota, do que ceder e me tornar um completo escravo de algum tirano qualquer. Claro que não pode ser um confronto suicida e irresponsável, mas, sim, com realismo e estratégia. Mas, via de regra, não aprecio o apaziguamento como caminho pragmático. É quase sempre uma paz ilusória e momentânea. O pacto com o Diabo costuma terminar sempre muito mal…

Emiliano Zapata, revolucionário mexicano, autor da frase: “É melhor morrer de pé do que viver de joelhos” | Foto: Wikimedia Commons

Leia também “O diálogo da morte”

2 comentários
  1. Agnes Prado Dos Santos
    Agnes Prado Dos Santos

    Penso que é sempre preferível morrer de pé. Aos que ficarem deixamos o exemplo de forçaa e talvez, até mesmo um pequeno caminho aberto.

  2. Bianca Diamante Waisberg
    Bianca Diamante Waisberg

    Excelente artigo!

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