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Ilustração: Rashevskyi Viacheslav/Shutterstock
Edição 240

O Estado quer colocar criminosos e psicopatas nas ruas

Conselho Nacional de Justiça determina o fechamento dos hospitais de custódia e estabelece prazo para os Estados se prepararem para receber os presos

Uiliam Grizafis
Uiliam Grizafis
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Agosto de 2023. Lucas Bonfim Lhamas e Aline Candalaft eram noivos e se preparavam para morar em sua casa recém-alugada. Apaixonada, Aline acreditava que se casariam e teriam filhos em breve. Naquele dia, enquanto os dois conversavam sobre a relação, Lucas pegou um rosário com crucifixo e a convidou para rezar. Depois da prece, ele sacou uma faca que havia escondido e esfaqueou a noiva até a morte. Em seguida, pegou o celular da vítima, trancou a porta e fugiu. 

Depois de três dias sem receber notícias da filha, o pai de Aline começou a mandar mensagens para o celular dela. Algumas vezes, Lucas respondeu que a noiva não estava bem. Em outras, disse que o aparelho estava com pouco sinal. Depois de muita insistência, o rapaz enviou a seguinte mensagem: “Infelizmente, Aline está morta. Ela já está morta faz bastante tempo. Sinto muito. Eu a amava, mas não teve jeito”.

O pai imediatamente acionou a polícia. Foram até a casa, arrombaram a porta, e a encontraram em estado de decomposição, com o rosário enrolado na mão. Ao investigar a vida de Lucas, a polícia descobriu que se tratava do mesmo rapaz que havia matado o próprio pai, também a facadas, em 2016. À polícia, Lucas disse que o esfaqueou porque “ouvia vozes” e “estava cumprindo uma missão”. Os agentes também descobriram que o criminoso havia sido diagnosticado com esquizofrenia aos 9 anos de idade. Condenado, o tribunal mandou Lucas para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) Professor André Teixeira Lima, em Franco da Rocha, no Estado de São Paulo. O local é conhecido como “manicômio judiciário”.

O HCTP abriga cerca de 500 detentos, grande parte com histórias semelhantes à de Lucas. Depois de matar o pai, ele foi encaminhado para o hospital por ser considerado uma pessoa com “incapacidade parcial para os atos da vida civil”. 

Em 2021, porém, o criminoso foi colocado em liberdade, sob a alegação de “evolução do paciente, indicando a desinternação e continuidade do tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps)”. O tratamento nesse outro órgão não adiantou. Lucas matou a noiva e voltou ao mesmo hospital, onde permanece até hoje. 

Foto: Erik Miheyeu/Shutterstock

De volta à liberdade 

Apesar da evidente incapacidade de viver em sociedade, Lucas pode voltar às ruas em breve — ao lado de outros psicopatas, assassinos, pedófilos e estupradores. Tudo dependerá da concretização da Resolução nº 487/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determina o fechamento de todas as 28 unidades do tipo existentes no país.

A norma atende à Reforma Psiquiátrica, criada pela Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais. A medida simplesmente veda a internação de pacientes portadores de transtornos mentais nos hospitais de custódia. 

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), essas instituições abrigam mais de 4,6 mil doentes mentais em todo o Brasil. Se o fechamento for confirmado, eles passarão a ser atendidos pelos Caps de suas cidades.

Outro que será beneficiado caso a norma seja cumprida é Luciano Gomes da Silva, conhecido como “Zé Marreta”. Ele foi posto em liberdade depois de passar 18 anos internado por ter matado a noiva, em 1993. À época da prisão, testes indicaram que Luciano tinha “deficiência mental, consistente em esquizofrenia paranoide, doença congênita, permanente e irreversível”. 

Em 2018, entretanto, a Justiça o soltou. Nas ruas, Luciano voltou a atacar. Em 2021, matou a auxiliar de limpeza Roseli Dias Bispo a marretadas, dentro de um dos trens da Linha 1-Azul do Metrô de São Paulo. Os seguranças que o detiveram disseram que Luciano alegou ter ouvido “vozes” e achou que a auxiliar de limpeza, que ia para o trabalho, o havia chamado de “mulher ou gay”.

Outro caso conhecido é o de Francisco da Costa Rocha, o “Chico Picadinho”, condenado por matar e esquartejar duas mulheres — crimes que chocaram o Brasil nas décadas de 1960 e 1970. O primeiro crime aconteceu em 1966, no Centro de São Paulo, quando ele tinha 24 anos. A vítima foi a prostituta austríaca Margareth Suida. Chico Picadinho a estrangulou e esquartejou, e foi dormir. Dez anos depois, colocado em liberdade por bom comportamento, voltou a estuprar, matar, estrangular e esquartejar uma mulher. Dessa vez a vítima foi Ângela Silva, conhecida como “Moça da Peruca”.

Picadinho fugiu então para o Rio de Janeiro, onde foi preso 28 dias depois, enquanto lia um jornal que noticiava o próprio crime. Em 2019, depois de mais de 40 anos, trocou a penitenciária pela internação num hospital de custódia. Hoje com 82 anos, pode voltar às ruas.

Ilustração: Fer Gregory/Shutterstock

Decisão do CNJ

Os militantes que são contra os hospitais de custódia alegam que essas instituições não têm estrutura adequada. Também afirmam que, uma vez nesses locais, alguns presos passam a ter prisão perpétua, o que é proibido no Brasil. Para que o fechamento ocorra, o CNJ determinou que os Estados se preparem para receber os presos.

Até o momento, a Justiça estipulou o dia 29 de novembro como data-limite para que os órgãos judiciais estaduais apresentem um plano para a interdição total dos HCTPs. O projeto deve incluir cronogramas e justificativas detalhados. Esse prazo já havia sido estendido desde a publicação da resolução, em 15 de fevereiro de 2023.

Segundo o CNJ, a extensão do prazo ofereceu mais tempo aos Estados para implantar a política antimanicomial. Cada preso deve receber um projeto terapêutico individualizado para organizar sua saída do hospital e continuar o tratamento em liberdade. No entanto, críticos a essa medida reclamam da falta de estrutura da rede de saúde para receber esses presos. Além disso, temem os riscos que eles podem causar a outras pessoas.

O SUS não é suficiente

Os gestores públicos estaduais e municipais afirmam que o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem condições de receber os criminosos em virtude das restrições orçamentárias que enfrentam. Nos hospitais de custódia, todos os presos são devidamente medicados. O custo de cada interno equivale ao de um preso comum: cerca de R$ 2 mil mensais.

Além disso, Geraldo Reple Sobrinho, vice-presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), afirma que muitos familiares não estão dispostos ou não têm condições de acolher os criminosos que eventualmente saiam dessas unidades. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) destacou, além da questão orçamentária, o fato de nem todos os municípios contarem com psiquiatras na rede SUS.

Já o secretário de Estado da Saúde de Santa Catarina, Diogo Demarchi da Silva, disse em reunião da pasta que os hospitais não querem abrir leitos de saúde mental. Segundo ele, o hospital de custódia do Estado tem cerca de 45 detentos, dos quais nove “não têm condições de ser atendidos pela rede SUS”.

Perito em psiquiatria forense, Guido Palomba considera a decisão de fechar os hospitais de custódia “esdrúxula e inexequível”. Segundo Palomba, não foram consultados médicos antes da assinatura da resolução. “Não consultaram, por exemplo, a Associação Brasileira de Psiquiatria, a Associação Médica Brasileira, ou qualquer outra entidade”, afirmou. 

De acordo com o perito, a resolução foi baseada em ideologias e extremismos. “É inexequível”, observou, ao explicar por que um juiz não ordenaria o fechamento de um hospital de custódia em nenhum lugar do mundo.

Caso essas instituições sejam fechadas, Palomba acredita que a sociedade se expõe a grave perigo. “Trata-se de pessoas de altíssima periculosidade”, disse. “Não são doentes mentais comuns.”

HCTP Professor André Teixeira Lima, em Franco da Rocha (SP) | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Hospital de Custódia de Franco da Rocha

O Hospital de Franco da Rocha está localizado numa área cercada por muito verde. A estrutura se divide em oito pavilhões, com dormitórios, refeitórios, enfermarias e áreas de lazer. Muitos internos trabalham no local, enquanto outros estudam. Alguns, por sua vez, ocupam o tempo bordando panos de prato.

Há medicamentos importados que são encontrados apenas nesse hospital — e não estão disponíveis nas redes municipais. Diferentemente do que dizem os autodenominados “defensores dos direitos humanos”, o local é mais do que adequado para receber e tratar os presos. A maioria dos internos vive em condições bem melhores que as famílias dos homens e mulheres assassinados por eles.

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