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Ilustração: Shutterstock
Edição 242

Justiça vendida

Cinco desembargadores do TJMS envolvidos em um esquema milionário de venda de sentenças continuarão recebendo normalmente o salário enquanto aguardam a decisão do STF

Rachel Díaz
Rachel Díaz
-

Justiça
Jus·ti·ça
Substantivo feminino
Qualidade ou caráter do que é justo e direito […]

aplicação do direito e das leis; poder de fazer justiça,
poder de decidir sobre os direitos de cada um.”

Historicamente, a palavra “justiça” sempre teve um significado forte, tanto quanto foi empregada em forma de protesto diante de situações injustas. E também para lembrar a sociedade de que, em tese, temos profissionais que escolheram, como missão de vida, zelar pelo bem-estar dos cidadãos e garantir o cumprimento da lei. Nas academias de direito, boa parte dos estudantes costuma dizer que “quer fazer a diferença” no mundo.

Porém, o que acontece com o significado dessa palavra quando esses mesmos profissionais da justiça passam a quebrar o conjunto de regras que juraram proteger? 

Em 24 de outubro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Ultima Ratio, que mirou cinco desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), lobistas, advogados e servidores considerados “influentes” no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O inquérito da corporação investiga um esquema de venda de sentenças e apura possíveis crimes de lavagem de dinheiro, organização criminosa, extorsão e falsificação de documentos.

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O esquema criminoso foi descoberto a partir de mensagens colhidas no celular de Roberto Zampieri, executado com 12 tiros na porta de seu escritório em Cuiabá. Cerca de 5 mil diálogos estão sob perícia e são utilizados como base para denúncias no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e no STJ.

A corporação também teve acesso a mensagens trocadas entre uma assessora do desembargador aposentado Júlio Roberto Siqueira Cardoso, também do TJMS, com uma juíza de Aquidauana (MS). Na conversa, a servidora dá a entender que os demais funcionários do tribunal tinham conhecimento dos crimes cometidos pelos magistrados.

“Todo mundo fala desse negócio […] Por isso, todo mundo pergunta: não sei como o CNJ não pega, como a Polícia Federal não pega.”

A tese foi defendida pela Polícia Federal e ganhou força quando, durante a operação, cerca de R$ 3 milhões foram encontrados na casa do desembargador Cardoso, chefe da servidora que afirmou que os casos eram de conhecimento público no tribunal.

A investigação mostra que o esquema usava familiares de desembargadores, principalmente advogados, para negociar decisões e ocultar o dinheiro em escritórios de advocacia em Brasília. Os acordos envolviam assessores de ministros do STJ, que recebiam propina por informações privilegiadas, rascunhos de decisões e mudanças em veredictos antes da publicação. Os envolvidos pagavam até R$ 100 mil por decisão, conforme o valor dos casos.

Em um país sério, o caso do esquema de venda de sentenças seria um grande escândalo, gerando atuações rápidas e firmes por parte de governantes como forma de garantir a manutenção da credibilidade do Poder Judiciário. Mas até o momento nenhuma figura ligada ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou sobre o caso, sequer cobrou ação por parte de autoridades ou do Supremo Tribunal Federal (STF), designado para cuidar do caso em decorrência do envolvimento de servidores do STJ.

Por essas razões, não é exagero afirmar que o brasileiro não se surpreende mais com a injustiça e as ações de autobenefício cometidas por autoridades e membros do Poder Judiciário. Cuja atuação, prevista na Constituição, prevê o julgamento e a aplicação de punições em fidelidade à legislação.

O que se vê na prática é uma falsa simetria entre as punições aplicadas ao crème de la crème da magistratura e aos cidadãos comuns — principalmente quando estes se posicionam contra um espectro político específico. 

Supersalários não são suficientes

Desembargadores afastados pela Justiça: (acima) Sideni Pimentel e Vladimir Abreu; (abaixo) Alexandre Bastos, Sérgio Fernandes e Marcos Brito | Foto: Reprodução: redes sociais
Desembargadores afastados pela Justiça: Sideni Pimentel e Vladimir Abreu (acima); Alexandre Bastos, Sérgio Fernandes e Marcos Brito (abaixo) | Foto: Reprodução: redes sociais

Os processos influenciados pelo esquema no STJ envolviam disputas milionárias, como ações contra grandes bancos, disputas por imóveis e áreas rurais e outros ativos de alto valor, além de decisões em casos criminais. 

Como medida imediata, o tribunal afastou por 180 dias os cinco desembargadores que foram alvo da operação da Polícia Federal. São eles:

  • Sérgio Fernandes Martins, presidente do TJMS;
  • Vladimir Abreu da Silva;
  • Alexandre Aguiar Bastos;
  • Sideni Soncini Pimentel; 
  • Marco José de Brito Rodrigues.

Na Edição 235 de Oeste, a reportagem de capa, assinada por Loriane Comeli e Silvio Navarro, expôs as benesses do Judiciário brasileiro, tido como o mais caro do mundo. Os salários dos magistrados são bancados por 1,6% do PIB do país, o que corresponde a, aproximadamente, R$ 160 bilhões. Esse valor é usado para o pagamento de salários e aposentadorias. São “supersalários” que furam o teto constitucional.

Os cinco desembargadores afastados também usufruíam dos altos valores, com o salário-base de R$ 39.717,69, podendo ser multiplicado até cinco vezes por “vantagens pessoais” e “vantagens eventuais”. Em fevereiro, Marcos José de Brito Rodrigues recebeu quase R$ 210 mil líquidos, enquanto o presidente Sérgio Fernandes Martins recebeu cerca de R$ 135 mil em março. Em agosto, Alexandre Aguiar Bastos e Sideni Pimentel receberam R$ mais de 153 mil e R$ 125 mil, respectivamente.

Apesar dos altos salários, equivalentes a cerca de 148 vezes o atual valor do salário mínimo (R$ 1.412), os desembargadores investigados ainda buscavam mais. Segundo a PF, eles e seus filhos usaram o dinheiro ilícito para adquirir bens e forjar negócios. O filho do desembargador Vladimir Abreu da Silva, por exemplo, teria emitido notas fiscais falsas em transações de gado com Sideni Pimentel.

Suspeita-se de que os negócios simulados como compra e venda de gado serviam para esconder a origem ilícita dos recursos, com transferências de dinheiro feitas ao advogado, filho de Vladimir, antes de chegar a Sideni Pimentel. A investigação também aponta para a filha de Pimentel, que teria ocultado mais de R$ 6,8 milhões em bens, como imóveis e veículos, da Receita Federal.

O esquema de “gado fantasma” também envolve o presidente afastado do TJMS, que comprou 80 cabeças de gado de seu pai sem registros de pagamento. A PF investiga a compra de veículos de luxo, incluindo um jet ski de R$ 97 mil, pelo desembargador Alexandre Aguiar Bastos, sem declaração à Receita. Bastos também teria adquirido imóveis e um Jaguar sem transações bancárias compatíveis.

Embora o tribunal e a PF saibam da possível origem ilícita dos bens, nenhum dos itens mencionados foi apreendido. Até o fechamento desta reportagem, 13 dias depois das operações de busca e apreensão, não houve decisão judicial para bloquear bens ou valores nas contas bancárias dos envolvidos.

Dois pesos, duas medidas

Esse fato chama atenção, considerando que, poucos dias depois do 8 de janeiro, a Justiça do Distrito Federal atendeu a um pedido da Advocacia-Geral da União e bloqueou R$ 6,5 milhões de empresas e pessoas acusadas de financiar os supostos “atos antidemocráticos”. Em 20 de janeiro de 2023, esse bloqueio foi ampliado pela própria AGU para R$ 18,5 milhões e, depois, para R$ 20 milhões. 

Em abril do mesmo ano, as ações de ressarcimento incluíam 223 pessoas, três empresas, uma associação e um sindicato. Além do bloqueio de bens, a AGU elaborou pacotes de ações indenizatórias para cobrir os danos causados aos Três Poderes no incidente de janeiro. Na cobrança mais recente, em agosto, a entidade pediu R$ 56 milhões em multas aplicadas a cinco condenados.

Entre os condenados do 8 de janeiro, as altas multas e a prisão, que os impede de trabalhar, têm afetado profundamente suas famílias. Em janeiro, a mulher de um jornalista condenado pelo suposto envolvimento nos atos relatou a Oeste que as contas do marido estavam bloqueadas havia 11 meses, mesmo com a determinação do STF para que uma parte do salário do profissional fosse depositada. Esse bloqueio dificultava o sustento dela e da filha do casal, de 3 anos. Uma mãe solteira do Rio Grande do Sul, que depende de bicos e da ajuda de familiares, tem dificuldades para pagar a multa de R$ 5 mil, parcelada em 50 vezes, e sente falta desse valor no orçamento.

Em Canoas (RS), um soldador preso desde 17 de março de 2024 sem acusação formal era o principal provedor de sua família, responsável pelo pai, pela mulher e por duas filhas menores de idade. Diante da situação, assim como a mãe solteira, eles também dependem da ajuda de familiares e terceiros para se manterem. Esses são apenas três entre os inúmeros relatos da atual situação dos condenados, divulgados por Oeste.

Sem prisões no horizonte

No Brasil, os crimes de lavagem de dinheiro, organização criminosa, extorsão e falsificação de documentos, apontados pela Polícia Federal no inquérito sobre a venda de sentenças, têm penas que variam de dois a dez anos de prisão. Essas penas podem ser aumentadas conforme agravantes previstos no Código Penal. Em todos os delitos, a aplicação de prisão preventiva também é possível, caso o juiz responsável pelo caso chegue à conclusão de que existem indícios suficientes para a medida.

Durante as diligências da Polícia Federal, nenhum desembargador, familiar, servidor do Poder Judiciário ou outros citados no inquérito foram presos. Os cinco desembargadores seguem em liberdade e usam tornozeleira eletrônica.

Em paralelo, condenados pelo 8 de janeiro foram sentenciados a penas que variam de 14 a 17 anos de prisão, superando o tempo de encarceramento de crimes hediondos, como homicídio qualificado, estupro e ocultação de cadáver. Seus nomes estão inclusos em vários inquéritos sobre os atos, que permanecem em andamento. 

Um dos casos mais emblemáticos é o de Débora dos Santos, de 38 anos, que escreveu a frase “Perdeu, mané” com um batom vermelho na Estátua da Justiça, que fica em frente ao STF. Caso seja condenada, Débora, que tem dois filhos pequenos e está presa, terá de cumprir uma pena de 17 anos.

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Iraci Nagoshi, de 71 anos, foi condenada a 14 anos de prisão por “golpe de Estado”, “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” e suposta associação criminosa. Recentemente, ela obteve o direito de cumprir prisão domiciliar.

O mecânico Miguel Ritter, de 61 anos, também foi indiciado pelos mesmos “delitos” e passará 14 anos na cadeia. Relatórios da Polícia Federal indicaram que ele não cometeu nenhum crime durante a manifestação. Mas a ordem de prisão foi mantida pelo STF.

Em uma condenação recente, o ministro Alexandre de Moraes baseou duas sentenças de 12 anos de prisão por “golpe de Estado” no suposto uso de “armas brancas” pelos suspeitos: pedaços de madeira, estilingues, bolas de gude e esferas de aço. 

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Enquanto isso, na casa de dois desembargadores envolvidos no esquema de venda de sentenças, foram encontradas cerca de dez espingardas, revólveres de vários calibres, pistolas automáticas, carregadores e munições. Não há nenhuma ordem de prisão à vista.

Para alguns, o crime compensa

Além dos prejuízos financeiros e penas exorbitantes, presos do 8 de janeiro e seus familiares relataram danos psicológicos e físicos. Muitos detidos têm problemas de saúde e desenvolveram outros transtornos, como depressão, durante o encarceramento. Por causa das condições precárias na prisão e da falta de assistência médica, já foram registradas mortes entre os condenados pelos supostos crimes cometidos durante um golpe de Estado que nunca existiu.

Cleriston Pereira da Cunha, o “Clezão”, morreu durante um banho de sol na Papuda | Foto: Reprodução

O caso de maior destaque é o de Cleriston Pereira da Cunha, o “Clezão”, que morreu de mal súbito em novembro de 2023 enquanto tomava banho de sol. Sua defesa tentava, havia meses, retirá-lo da cela em razão de seu estado de saúde. Durante o tempo em que esteve preso na Papuda, Clezão emagreceu 20 quilos, comia pouco e chegou a usar cadeira de rodas. O empresário de 46 anos tinha uma decisão favorável da Procuradoria-Geral da República (PGR) pedindo sua soltura, já que, desde setembro, a PGR não via mais necessidade de mantê-lo preso.

Assim como os inquéritos sobre o 8 de janeiro, a investigação sobre o esquema de venda de sentenças será feita pelo STF. A mudança de responsabilidade do STJ para o STF aconteceu depois da manifestação da PGR, que afirmou que a Corte superior deveria assumir o caso.

Durante os seis meses de afastamento determinado pelo STJ, os desembargadores continuarão a receber seus salários sem exercer suas funções. O dinheiro público vai custear a vida luxuosa desses servidores, mesmo que eles estejam envolvidos em escândalos que afetam — ainda mais —- a credibilidade da Corte, esvaziando completamente o significado da palavra “justiça”.

O escândalo no STJ mostra que, além da insegurança jurídica gerada atualmente pelo STF, os brasileiros correm o risco de serem afetados pela justiça vendida em outros tribunais. Não há para onde fugir.

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8 comentários
  1. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Isso aqui é uma várzea

  2. Paulo César da Conceição
    Paulo César da Conceição

    Precisamos tomar as rédeas deste país, ou esses bandidos ficarão surfando nas nossas costas. São uns verdadeiros parasitas que sugam o dinheiro do povo brasileiro. A começar pelo STT, que precisa que todos os juízes precisam ser cassados, pois não representam o povo e nem a justiça de verdade.

  3. José Carlos dos Anjos Faria
    José Carlos dos Anjos Faria

    Boa noite, Brasil! 🇧🇷
    Eles estão apenas seguindo o líder da nação. Não sofrerão nenhuma punição. E se se candidatarem em qualquer eleição, serão eleitos. Como meia dúzia de ratos pingados corruptos consegue escravizar mais de 200.000.000 de brasileiros?

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O judiciário brasileiro apodreceu e está totalmente corrompido.
    Pior que isso é o custo que este poder representa para o erário público a custa do pagador de impostos.
    Mais imoral ainda é a forma como os magistrados são tratados.
    Corrompem, roubam, cometem os mais variados desvios e são premiados com aposentadoria compulsória.
    Só o Brasil premia seus criminosos.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A mais alta corte de justiça, o STF, tem atualmente componentes que vivem na base dos esquemas escusos. Avalie as instâncias inferiores… Uma zona!

  6. Brian
    Brian

    Nada para os brasileiros trabalhadores e tudo para os bandidos. Ditadura comunista desgraçada!

  7. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O caso do banestado com autoridades do Paraná foram 32 bilhões de dólares. O STJ anulou tudo. Então não é nenhuma novidade esse escândalo. E é no Brasil todo e o STF não fica atrás. Esses funcionários públicos dos três poderes são os piores bandidos que uma nação pode ter

  8. José Luís da Silva Bastos
    José Luís da Silva Bastos

    Viva a democracia relativa da roubalheira,um judiciário de homens que se sentem impunes e o povo que se exploda.

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