“Há uma coisa que eu sei: nenhuma
criança nasce sabendo o que quer
que seja sobre odiarmo-nos uns
aos outros. Cada um de nós veio
ao mundo com um coração limpo.
Até que alguém pega no racismo ou
noutro preconceito e o passa para nós“
Ruby Bridges
A fotografia mostra a pequena Ruby Nell Bridges, com 6 anos, em seu novo e elegante uniforme, entrando escoltada por quatro agentes federais para estudar no jardim de infância da caucasiana William Frantz Elementary School, no dia 14 de novembro de 1960, em Nova Orleans. Até aquele dia os negros não escolhiam a escola que queriam. A imagem é histórica e se tornou uma bandeira do movimento pelos direitos civis, ainda mais popularizada com a recriação do artista Norman Rockwell em sua pintura The Problem We All Live With, de 1964, publicada originalmente pela revista Look.
Três meses antes de Bridges nascer, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou o fim da segregação racial na educação infantil em todo o país. Seis anos depois, porém, os Estados do sul ainda se recusavam a agir de acordo. Em 1957, no Estado de Arkansas, o então presidente Eisenhower precisou chamar tropas federais para escoltar nove crianças afro-americanas, matriculadas na escola Little Rock, por causa de uma multidão ensandecida reunida do lado de fora da escola. Três anos depois, foi a vez da Louisiana.
Ruby foi uma das seis crianças negras a passar em um teste para obter acesso a escolas que antes eram só para brancos. Mas duas das crianças desistiram e três foram, no mesmo dia, para uma escola diferente. Então, Bridges estava sozinha.
Nos portões da escola, manifestantes raivosamente hostis a aguardavam. A maioria — pais e filhos brancos, além de fotógrafos e repórteres — gritava insultos raciais e agitava cartazes. Uma placa dizia: “Tudo o que eu quero de Natal é uma escola branca limpa”. Uma mulher levantou um caixão em miniatura com uma boneca preta dentro.
Charles Burks, um dos policiais que a escoltavam, disse que “mesmo assim, ela não desistiu, não chorou, sequer fraquejou. Era uma pequena soldada”.
A violência física e psicológica era esperada, menos por Ruby. “Eu realmente não sabia que estava indo para uma escola branca”, disse ela, anos mais tarde. “Meus pais nunca me explicaram. Eu tropecei em multidões de pessoas e, morando aqui em Nova Orleans, acostumada ao Mardi Gras, a grande celebração que acontece na cidade todos os anos, eu realmente pensei que era isso naquele dia. Não havia necessidade de eu ter medo disso.”
Os pais de Ruby, Lucille e Abon Bridges, cresceram como meeiros (pobres fazendeiros arrendatários) no interior do Mississíppi, na era pré-direitos civis, antes de se mudarem para Nova Orleans, em 1958. Nenhum deles tinha educação formal. Frequentar a escola era um luxo. Então, eles queriam que seus filhos tivessem melhores oportunidades. No entanto, o preço por essa decisão foi alto. Lucille, que tinha sido a principal defensora de que Ruby frequentasse a escola para brancos, perdeu o emprego como doméstica. Abon, um veterano da Guerra da Coreia que trabalhava como frentista de posto de gasolina, também ficou desempregado por causa da notoriedade do caso.
A Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP) aconselhou-o a não sair e procurar trabalho, para sua própria segurança. “Isso por si só causou muita tensão”, contou Ruby, “porque eu sou a mais velha de oito, e naquele momento ele não era mais capaz de sustentar sua família”. Passaram, então, a depender da ajuda de pessoas próximas e de doações. Seus pais acabaram se separando diante das circunstâncias. “Lembro-me de escrever uma carta ao Papai Noel e pedir a ele que devolvesse o emprego do meu pai, e que ele não tinha emprego porque eu estava indo para a escola. Então acho que de alguma forma me senti um pouco culpada por isso.”
Obviamente, a vida na escola não foi fácil para a pequena Ruby. No primeiro ano, ela precisou de proteção federal todos os dias, já que uma sinistra multidão estava sempre na entrada da escola, incluindo a mulher com a boneca em um caixão. Ela também levava seu próprio almoço por medo de ser envenenada. Naquele primeiro dia de aula, 500 crianças foram retiradas da escola pelos seus pais brancos, e a equipe se recusou a dar aulas para Ruby, exceto uma professora: Barbara Henry, que tinha vindo de Boston. Henry deu aulas para a garotinha sozinha, já que ela era a única aluna da sua turma.
Bridges tinha outro aliado fora da escola: Robert Coles, um psiquiatra infantil branco que testemunhou as cenas do lado de fora da escola e se ofereceu para apoiá-la. Coles seguiu carreira estudando os efeitos da dessegregação em crianças em idade escolar. Mais tarde, descobriu-se que foi um parente dele que enviou a Bridges suas elegantes roupas escolares, que sua família nunca poderia comprar.
No final do primeiro ano, alguns pais brancos começaram a permitir que seus filhos frequentassem a William Frantz e, por insistência de Barbara Henry, Bridges finalmente foi autorizada a fazer parte de uma pequena classe com outras crianças da mesma idade. “Um garotinho então falou: ‘Minha mãe disse para eu não brincar com você porque você é uma negra’. E, no minuto em que ele disse isso, foi como se tudo se encaixasse. Todas as pequenas peças que eu estava coletando na minha mente se encaixaram, e então eu entendi: ‘Não há crianças aqui por minha causa, pela cor da minha pele. É por isso que não posso ir ao recreio. E não é Mardi Gras’. Tudo meio que se encaixou: um despertar muito rude. Costumo dizer hoje que essa foi realmente minha primeira introdução ao racismo”, lembra Ruby.
Ruby não tinha um plano de carreira quando terminou a escola. “Eu estava realmente mais focada em sair da Louisiana. Eu sabia que havia algo além daquilo a que eu estava exposta na minha comunidade.” Ela primeiro se candidatou a empregos como comissária de bordo, depois se tornou agente de viagens da American Express por 15 anos e, nesse período, viajou pelo mundo. Ao longo do caminho, casou-se com Malcolm Hall e teve quatro filhos.
Em 1995, Coles, agora professor de Harvard, publicou seu livro infantil The Story of Ruby Bridges, que a trouxe de volta aos olhos do público. As pessoas em Nova Orleans nunca tinham realmente falado sobre sua história. Bridges ajudou a promover o livro de Coles, dando palestras em escolas por todos os Estados Unidos. Logo ele se tornou um best-seller. Coles repassou a Ruby os lucros provenientes do sucesso do livro, permitindo que ela criasse, em 1999, a Ruby Bridges Foundation. Bridges também publicou vários livros, incluindo This Is Your Time, Through My Eyes e Dear Ruby, Hear Our Hearts.
Alguns anos depois, a Disney fez um filme biográfico, no qual ela atuou como consultora. “Acho que todo mundo começou a perceber que eu, Ruby Bridges, era na verdade a mesma garotinha da pintura de Norman Rockwell.”
Então, em 2005, o furacão Katrina atingiu Nova Orleans e causou danos significativos à escola. Havia planos para demoli-la. Ruby interveio: “Senti que, se alguém fosse salvar a escola, seria eu”. Ela fez uma campanha bem-sucedida para que a William Frantz Elementary School fosse inserida no Registro Nacional de Lugares Históricos, o que liberou fundos para restaurá-la e expandi-la. “Então, ela foi reaberta. As crianças estão de volta às carteiras. E estou realmente orgulhosa por ter feito parte disso.” Uma estátua de Ruby Bridges fica exposta no pátio.
As contribuições de Ruby foram amplamente reconhecidas e seus esforços jamais serão esquecidos. Graças à sua coragem e determinação, um caminho foi pavimentado para as próximas gerações em defesa de direitos civis.
Daniela Giorno é diretora de arte de Oeste e, a cada edição, seleciona uma imagem relevante na semana. São fotografias esteticamente interessantes, clássicas ou que simplesmente merecem ser vistas, revistas ou conhecidas.
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