Pular para o conteúdo
publicidade
Xi Jinping, presidente da China, e Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, durante a Cúpula dos Líderes do G20, no Rio de Janeiro | Foto: Reuters/Adriano Machado
Edição 244

Realpolitik

Lula evita enxergar os fatos quando relativiza ditaduras e permite, dentro do próprio país, o estado de exceção contra seus adversários políticos

Adalberto Piotto
-

Há uma frase no mundo da diplomacia que é lapidar em definir qualquer ambiente de negociação entre chefes de governo ou de Estado: “Nações não têm amigos. Nações têm interesses”. Lula e o governo brasileiro deveriam levar isso em conta ao avaliarem o real resultado do G20, a reunião das 20 maiores economias do mundo que aconteceu recentemente no Rio de Janeiro. A narrativa de que o Brasil e Lula fizeram valer sua agenda na carta final, como querem fazer crer o governo, parte da imprensa e os analistas amigos, encontra barreiras nos fatos internos e externos.

No discurso de anfitrião, o presidente brasileiro não perdeu a oportunidade e elencou suas ambições na política externa que, além de não serem inéditas nem exclusivas, são desconectadas da vida prática. Uma improvável reforma da governança global — na ONU, sobretudo —, a taxação do super-ricos, e a mobilização contra a fome e as mudanças climáticas. Fosse o presidente um novato ou uma Greta em início de carreira, ainda tinha lá um pouco do brilho do idealismo ou do sonho que contagia. Mas a menina Greta se tornou uma adulta omissa que já não vê mais ameaças aos indígenas ou ao meio ambiente no Brasil de Lula, que coleciona recordes de queimadas e de mortes dos Yanomami. E ele próprio, o Lula de 2024, não convence ninguém, muito menos a Academia do Prêmio Nobel.

O Luiz Inácio “o cara” Lula da Silva não existe mais. O próprio Obama já voltou atrás ao dizer em seu livro de memórias que “o cara” tinha escrúpulos de “chefão do crime e corrupção bilionária”. A retificação do ex-presidente americano pode ter sido um prenúncio do que viria a ser a volta de Lula em 2023, com cabeça no passado. Lá atrás, quando convencia (convencia?) os Obamas do mundo, Lula elegeu sua sucessora, e acumulava popularidade interna acima de 80% e certo prestígio internacional. O Brasil, superfornecedor de commodities para uma China que crescia 15% ao ano, avançava na economia e parecia ter decolado como uma futura potência. A revista inglesa The Economist chegou a mostrar em sua capa o Cristo Redentor subindo em forma de foguete. Tempos depois, desmentia a si mesma com os números da tragédia de Dilma Rousseff, o PT-raiz e sem verniz que Lula agora assumiu.

Capaz da The Economist | Montagem: Revista Oeste/Reprodução

No primeiro desafio diplomático da nova gestão iniciada em 2023, depois de uma eleição barulhenta, questionada e ainda entalada na opinião pública, Lula foi reprovado. Se por ideologia barata, desconhecimento grave em geopolítica ou por soberba, o presidente brasileiro criou uma inusitada falsa equivalência, entre a Ucrânia invadida e a Rússia invasora, para justificar a guerra. Na base do “quando um não quer, dois não brigam” e tudo se resolve “com uma cervejinha numa mesa de bar”, Lula foi o Lula que o mundo empolado da diplomacia internacional e das universidades europeias fingiam não conhecer. Longe da xenofobia, estrangeiros têm um histórico de erros absurdos sobre a realidade brasileira. Não convém tê-los como intocáveis em suas projeções.

Em Israel, Lula 3 é hoje persona non grata. Diante de um bárbaro crime contra a humanidade em que terroristas do Hamas assassinaram e sequestraram civis israelenses em território de Israel, o presidente brasileiro foi incapaz de chamar inapelavelmente de terrorismo o que foi um dos mais hediondos atos do Hamas, naquele terrível 7 de outubro de 2023. No populismo de incluir a questão palestina onde só havia um repugnante ato de terror, Lula comparou as ações das Forças de Defesa de Israel em Gaza — que miravam os líderes do grupo terrorista Hamas — ao Holocausto. Milhões de judeus mortos num genocídio sem precedentes pelo regime nazista de Adolf Hitler foram, para Lula, uma comparação plausível.

Na Venezuela, até hoje, a diplomacia do governo petista e o próprio presidente brasileiro tergiversam em tratar Nicolás Maduro pelo que ele é, um ditador. E em chamar de fraude eleitoral as fraudadas eleições do país. O golpe eleitoral na sul-americana Venezuela é visto com nitidez no Hemisfério Norte por norte-americanos e europeus, mas negado pelo Palácio do Planalto, em Brasília, o que embaça a história de seriedade do Itamaraty.

Maduro esteve no Brasil em maio de 2023, onde participou de encontros com Lula | Foto: Reprodução/Agência Brasil
O governo brasileiro evita chamar Nicolás Maduro de ditador e reconhecer as fraudes eleitorais na Venezuela, comprometendo a credibilidade histórica do Itamaraty | Foto: Reprodução/Agência Brasil

Sob um currículo assim, como pretende Lula convencer o mundo a mudar a governança global? Ou a taxar super-ricos e acabar com a pobreza, se foi justamente nos governos petistas que aconteceram os maiores escândalos de corrupção da história brasileira com enriquecimento ilícito de empresários amigos e partidários? Até nas mudanças climáticas, um diplomata de segundo escalão não correrá o risco de deixar de avisar a seu chanceler que o que se fala sobre o Brasil não é o que se vê. Com muita tecnologia e competência, os agricultores brasileiros têm conseguido produzir cada vez mais em menos espaço de terra, preservando milhões de hectares de florestas. Ao mesmo tempo, tornaram-se imprescindíveis para alimentar o planeta e ambientalmente sustentáveis. Mesmo assim, são acusados de “agro fascista” pelo presidente brasileiro.

O soft power brasileiro de país verde e produtor de alimentos por excelência existe, é poderoso, mas não basta quando vem de um governo que não faz sequer a lição de casa no mínimo de coerência e respeito aos fatos que deveria demonstrar. Seja na economia, onde o governo Lula produz um déficit fiscal que vai comprometer a vida de gerações; na política interna, de relações nada republicanas com o STF e o Congresso; nos direitos humanos, ao negar aos presos políticos do dia 8 de janeiro o devido processo legal e o constitucional direito à ampla defesa; seja na seara internacional, onde Lula é indesejado ao distorcer fatos históricos e desprezar conquistas da humanidade.

No final do G20 e apesar de Janja, a primeira-dama que caiu como uma bomba no evento, a carta de Lula, depois de muita negociação, foi assinada pelos líderes dos outros 19 países presentes. Mas o que isso quer dizer de fato? Joe Biden está de saída. Macron passeia de mãos dadas com Lula na Amazônia, mas se opõe frontalmente ao único interesse brasileiro, o acordo entre Mercosul e União Europeia. Milei, que deixou clara a sua oposição aos globalismos que acabaram com o multilateralismo sério, cedeu apenas para viabilizar a venda do gás argentino de Vaca Muerta ao Brasil. Por fim, desconsiderar o pragmatismo de China, Índia e Rússia diante dos EUA de Donald Trump, que pensa muito diferente de Biden e do próprio Lula, é desaconselhável.

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, e Joe Biden, presidente dos EUA, na Cúpula do G20, no Rio de Janeiro (19/11/2024) | Foto: Reuters/Eric Lee

É a Realpolitik. Nada de prático acontece ser levá-la em conta. É o que vale, é o que manda, é o que prevalece porque baseada nos fatos. Os mesmos que Lula evita enxergar quando relativiza ditaduras e permite, dentro do próprio país, o estado de exceção contra seus adversários políticos.

Todo mundo vê o que todo mundo está fazendo. Não há mais segredos e, por isso, não adianta encenar. Sendo assim, depois do rapapé do G20, Lula deveria fazer o que ainda não fez: governar e defender os interesses do Brasil apenas sob o interesse público de todos os brasileiros.

Leia também “‘Ele não”… governa”

0 comentários
Nenhum comentário para este artigo, seja o primeiro.
Anterior:
A contrarrevolução
Próximo:
A guerra da ANTT contra a concorrência
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.