Aconteceu há muito tempo. Eu tinha 32 anos e acabara de retornar do exterior, onde trabalhara por quase cinco anos como consultor do Banco Mundial, em Washington DC, a capital dos Estados Unidos. Foi uma oportunidade excepcional. Além de uma excelente remuneração, eu tinha acesso à tecnologia mais moderna do mundo. Mas, depois de quatro invernos longe de casa, meu coração falou mais alto e tive que voltar.
Foram três os motivos do meu retorno. Primeiro, eu tinha pais idosos e não achava justo que seus últimos anos fossem vividos sem meu apoio. O segundo motivo foi a falta de adaptação a um dos aspectos da vida americana que o brasileiro compreende menos: os americanos são indivíduos relativamente autônomos, que não têm, de uma forma geral, vida social intensa como a nossa. Meus amigos e colegas de trabalho moravam longe de mim; nenhum deles ficava a menos de uma hora de carro. Meu círculo social nos Estados Unidos nunca se aproximou, em tamanho ou variedade, da minha rede de amizades no Brasil. O último fator que me fez voltar foi o clima. Mesmo em Washington DC, onde os invernos não são especialmente rigorosos, é necessário usar casaco e manter o aquecimento ligado durante longos meses. Atividades ao ar livre ficam interditadas. E eu cresci brincando na praia.
Eu me mudei para os EUA em dezembro de 1989. Em meados de 1994 já tinha ficado claro que meu futuro estava no Brasil, apesar de tudo. Comecei a preparar o retorno: enviei currículos, fiz entrevistas e acabei conseguindo uma excelente posição como gerente de tecnologia da Shell, empresa que, na época, distribuía derivados de petróleo através de uma extensa rede de postos de combustível.
Minha experiência no Banco Mundial me preparou bem para o cargo de gerente. Na Shell, tive a sorte de trabalhar com um dos melhores profissionais que já conheci, o então diretor de informática Mamdouh Mustafá. Mamdouh era inteligente, gentil, assertivo e dotado de enorme sensibilidade. Além de um líder nato, era um ser humano capaz de fazer as melhores escolhas. Tendo começado cedo na carreira — ele imigrou do Egito para o Brasil ainda criança —, Mamdouh teve a chance de se aposentar relativamente jovem, aos 50 anos. Lembro que, na ocasião, perguntei se ele pretendia continuar a carreira em outra multinacional. Afinal, ele tinha um perfil procurado por empresas fornecedoras de tecnologia. Eu conhecia vários executivos que, depois de se aposentar, foram trabalhar em fornecedores como IBM ou Microsoft, ganhando muito dinheiro.
Mas esse não era o plano de Mamdouh. Aos 50 anos ele parou de trabalhar e se mudou com a esposa para uma fazenda em São Paulo. “Nunca mais quero saber de fornecedores ou clientes”, lembro que ele me disse. “Agora quero aproveitar a vida.”
Sob a orientação de Mamdouh eu montei um time que me ajudaria a cuidar da infraestrutura de tecnologia da Shell Brasil. Éramos encarregados da escolha dos computadores e redes, e fomos os responsáveis pela introdução da internet na empresa. Eu ia frequentemente à Holanda e à Inglaterra me atualizar nos centros de pesquisa da Shell. A empresa foi uma escola. Foi ali que aprendi conceitos fundamentais de gerenciamento.
Uma de minhas funções era lidar com fornecedores. Eu recebia visitas frequentes de vendedores de todo tipo de equipamento, software e serviço. Reservei um dia só para essa tarefa. Nas terças-feiras minha agenda era preenchida apenas com representantes comerciais. Eu recebia todos, sem qualquer distinção, com a mente aberta, mesmo aqueles cujos produtos não me interessavam. Vender era o trabalho deles, trabalho que eu respeitava e apoiava na medida de minhas possibilidades.
Certo dia, depois do almoço, fui avisado de que um vendedor estava na entrada da empresa pedindo para falar comigo. Era uma quinta-feira. Eu não recebia vendedores nesse dia. Não havia reunião agendada. Pensei sobre o que fazer. A pessoa que me procurava se identificara na portaria como o representante de uma empresa pequena, que vendia serviços dos quais nós não precisávamos. Ainda assim, de vez em quando ele aparecia para falar comigo, na esperança de que, um dia, eu comprasse alguma coisa.
Mas agora ele aparecia assim, sem agenda e no dia errado. Pensei um pouco e concluí que não haveria mal em abrir uma exceção e recebê-lo.
Ele entrou no meu cubículo, me cumprimentou e se sentou na cadeira em frente à minha mesa. Trazia uma caixa nas mãos.
Trocamos amabilidades e ele ensaiou uma tentativa de venda que, como ele provavelmente já previra, não produziu nenhum resultado. O produto de sua empresa não nos interessava. Então ele passou ao assunto principal — a verdadeira razão da sua presença ali.
Ele me disse: “Estou desempregado há três meses”. Aquilo me surpreendeu, é claro — afinal, ele estava ali conversando comigo como representante comercial de uma empresa.
“Minha mulher e meus filhos não sabem”, ele continuou. “Todos os dias eu visto o terno, pego a minha pasta e saio para a rua. Fico andando por aí até a hora de voltar. Mas o dinheiro está acabando e não sei o que fazer.”
Eu ouvia em silêncio.
“Eu vim pedir ajuda, Roberto”, ele disse. Ele deveria ter entre 40 e 50 anos. Embora estivesse corretamente vestido, seu terno já tinha visto dias melhores. Imaginei alguém que sai de casa de manhã fingindo que vai trabalhar e passa o dia andando de um lado para o outro.
Imaginei o desespero de ter uma família e não ter dinheiro.
Ele abriu a caixa de papelão que tinha nas mãos. “Ganhei esses sapatos de presente.” Dentro da caixa havia um par de sapatos marrons. “Não tenho necessidade deles. Você teria interesse em comprá-los? Me ajudaria muito.”
Olhei o par de sapatos sociais, aparentemente novos, que ele segurava. Ele pedia por eles um valor equivalente, em dinheiro de hoje, a R$ 300. “Preciso do dinheiro para pagar o transporte de volta para casa”, ele disse. Como é possível alguém não ter dinheiro suficiente para voltar para casa?
Mais de três décadas se passaram desde então, mas lembro daquela cena e sinto uma sensação de asfixia.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, sem saber o que dizer. Nunca me ocorrera que uma situação assim fosse possível. Imaginei o que eu faria se estivesse no lugar dele. Passou por minha cabeça a hipótese de aquilo ser algum tipo de golpe; mas era improvável. Eu já tinha me reunido com aquele homem antes. Ele realmente trabalhava para aquela empresa, e nunca tinha feito nada que levantasse qualquer suspeita.
Eu tinha 32 anos, estava no auge do sucesso profissional, com um cargo invejado no mercado e ainda sem responsabilidade por uma família. Eu tinha sido colocado na posição de observar, do outro lado da mesa, um homem à beira do desespero.
“Não vou comprar os sapatos”, respondi. “Mas vou ajudar.”
Peguei um talão de cheques, preenchi com o valor que ele pedira pelos sapatos e estendi a ele. Ele recebeu, agradeceu e insistiu mais uma vez para que eu ficasse com os sapatos.
Depois se levantou e foi embora.
Passei o resto do dia pensando no homem de terno, pasta na mão, andando pela cidade, sentando-se em bancos de praça, visitando estranhos para tentar vender um par de sapatos, esperando o momento de voltar para casa, para sua família, para sua farsa sem esperança.
A vida me ensinaria muitas lições. Menos de um ano depois eu sairia da Shell, em condições menos que ideais. Anos mais tarde eu constituiria a minha própria família e sentiria o peso dessa responsabilidade. Passei por períodos difíceis, fiz escolhas erradas, perdi oportunidades — às vezes por circunstâncias da vida, às vezes por minha exclusiva culpa. Muitas vezes deixei que o orgulho fosse meu guia. Passei períodos desempregado, ou trabalhando em funções abaixo da minha capacidade. Também vivi momentos de sucesso, em que estive no topo do mundo. Mas jamais esqueci aquele homem. Hoje sou bem mais velho do que ele era naquele dia; acumulei conquistas, perdas e arrependimentos. Mas nunca esqueci o homem de terno que me estendia a caixa com sapatos.
O sofrimento daquele homem me fez uma pessoa melhor. Compreendi o tamanho da bênção que é ter um trabalho, um emprego, uma profissão — e alguma segurança —, e isso me tornou mais tolerante, compreensivo, generoso. Hoje repito essa lição para todos que quiserem ouvir: qualquer trabalho ruim ainda é 1 milhão de vezes melhor do que o desespero do desemprego.
Quando estou irritado e frustrado diante de uma tarefa que parece impossível; quando me aperto, cansado, na poltrona de um voo atrasado, depois de muito tempo longe de casa; ou quando sou forçado a trabalhar em ambientes ou com pessoas que não são aquelas que eu escolheria — quando eu me sinto prejudicado, injustiçado, ofendido ou ameaçado —, eu me lembro do homem da caixa de sapatos.
Leia também “A contrarrevolução”
Texto de grande força e sensibilidade. Até eu vou levar para a minha vida a imagem do homem da caixa de sapatos.
Muito bom, Motta. Me identifiquei neste contexto, assim como muitos acredito eu.
Roberto Motta, amo as histórias que você nos passa, são verdadeiras aulas de vida. Obrigado
Artigo fantástico. Grande Motta , como sempre.
Que história bonita, Motta. Parabéns pela atitude inspiradora.
Parabéns Motta, isso fez eu relembrar o passado. Aconteceu comigo isso, trabalhava em um banco como chefe de seção, quando um certo dia fui trabalhar, chegado meu chefe me chamou e disse que eu estava demitido, era época do plano Color. Meu chão caiu, fui para casa e disse para minha esposa, ela também sentiu e começou a chorar, então disse a ela, não se preocupa que de fome ninguém vai passar. Não tinha filho ainda. Já na primeira semana comecei a trabalhar de ajudante de pedreiro com meu pai. Claro que sempre fiquei procurando outras oportunidades e fazendo concursos. Depois de um ano passei e ingressei no CBMSC, segui carreira e fiquei até me aposentar. Uma coisa, não existia bolsas, apenas seguro desemprego.
muito bom Roberto Motta !! excelente artigo !!
o título do artigo me interessou, pois sou vendedor, já passei por situações semelhantes, meu primeiro trabalho em vendas foi de propaganda para rádio , uma pequena emissora de rádio, sem expressão, não vendia o suficiente para uma remuneração mínima,e digna ..
insisti por muitos anos, hoje sou representante comercial de uma empresa do segmento de soldagem e tenho resultados diferentes..
moral da história para um vendedor…, paciência e persistência, vence a resistência..
Parabéns Roberto Motta. Isso mostra que temos que ter sensibilidade e empatia. Porque não sabemos o dia de amanhã.
Roberto Motta…parabéns por esta autobiografia e por esta história do homem que queria vender os sapatos. Mesmo sendo de outra área em algumas passagens me vi e me emocionei. Pela sensibilidade exposta e pela forma da escrita. Ambas carregadas de sentimento bom e uma escrita leve, bem articulada e , de certa forma, muito sensível.
Sempre leio seus artigos e sinto sempre a falta quando naquela semana Você não aparece. Obrigado por fazer o leitor ficar feliz…
Como executivo, sei exatamente como se sente. Não controlamos todas as variáveis, vamos fazer o melhor com aquelas que controlamos.
Excelente artigo.
Tremenda lição Motta.
Parabéns Motta, pelo belo e emocianeante artigo, gostei muito.
Ótima coluna Motta. Eu sempre sigo a máxima “Fazer o bem não importando a quem”. O que fazemos hoje será refletido amanhã.
Gostei.Aprendizados na vida
Eu sei como é que é!
Excelente coluna. Sempre o admirei e agora mais ainda.
Excelente coluna. Sempre o admirei e agora mais ainda.
Parabéns pela coluna dessa semana, Roberto!
História muito forte. Me foi um soco no estômago.
Boa história. A vida tem mesmo estes altos e baixos mas, no final, perseverar acaba sendo mesmo o grande diferencial…
Sua coluna me tornou extremamente feliz pq vc disse o que sempre pensei e me achava dramática demais por pensar assim!! Sempre devemos dar graças pelas oportunidades boas ou más que a vida nos oferece pq para tudo há um propósito! Parabéns a vc pelo exemplo!! Amei !!
Muito bom ler sua coluna, Roberto. Humanidade, humildade, sensibilidade e muito mais. Valeu!