Um dia você sonha que teve uma doença e vai ser operado ou operada por um robô. Como é esse robô do sonho? Pensa naquele ser mecânico de voz metálica dizendo algo do tipo “o paciente não necessita de anestesia, beep-beep, anestesia é desperdício de recursos, não tem registro”?
Décadas de preconceitos antitecnológicos nos levaram a esse medo irracional (com uma ajuda do filme Prometheus). Mas robôs cirurgiões — orientados por médicos humanos — estão fazendo o maior sucesso nos hospitais. E não pense apenas nos estabelecimentos de ponta, os mais caros e exclusivos do mundo. Robôs já estão atendendo até no SUS.
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Cirurgias fazem parte da experiência humana desde a antiguidade e muitas vezes eram realizadas por barbeiros com suas navalhas enferrujadas. A partir do século 18, a prática começou a ter um amparo mais científico com o conhecimento mais aprofundado da anatomia. Mas a dor era um impedimento para o desenvolvimento das técnicas. Os pacientes eram embriagados ou fumavam ópio para procedimentos como amputações e retiradas de pedras dos rins e tumores.
Segundo a Enciclopédia Britânica, um passo decisivo para a evolução foi dado em 1846 com a introdução da anestesia por éter. Outro problema grave, a infecção operatória, passou a ser resolvido décadas depois com os estudos de bactéria de Louis Pasteur e a prática (a partir de 1867) da antissepsia. A descoberta dos antibióticos (nos anos 1920) é considerada a primeira grande revolução tecnológica da medicina. A partir dos anos 1960, o desenvolvimento da tomografia computadorizada e da ressonância magnética marcou a segunda grande revolução.
Os robôs vieram para iniciar a terceira grande revolução tecnológica da história da medicina.
A era Da Vinci
A NASA já pensava nessa possibilidade desde os anos 1970, preocupada com a possibilidade de astronautas precisarem de uma cirurgia de emergência a bordo de uma estação espacial (ou em outro planeta). Ficou na ideia.
Nas duas décadas seguintes, foi desenvolvido o conceito de cirurgia laparoscópica: não era mais preciso abrir o corpo do paciente, apenas introduzir o equipamento em cortes mínimos.
No início do século 21, foi criado pela Intuitive, na Califórnia, o Sistema Cirúrgico Da Vinci, até hoje considerado o equipamento-padrão para cirurgias robóticas. O Da Vinci trouxe três grandes conquistas para a medicina: 1) o controle remoto da operação; 2) a eliminação de tremores involuntários dos cirurgiões; e 3) o acesso ao local da cirurgia de forma minimamente invasiva.
O Da Vinci normalmente tem quatro braços. Cada braço tem uma função: um maneja o bisturi, outro as tesouras, um terceiro as pinças e o quarto leva a câmera 3D para dentro do paciente. Os médicos geralmente ficam na sala, ao lado do equipamento, coordenando o procedimento.
O site da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) explica da seguinte maneira como acontece uma cirurgia por robôs:
“Pense no sistema robótico como um supercomputador que permite que a máquina traduza os movimentos do cirurgião em tempo real, possibilitando maior precisão. Durante um procedimento assistido por robótica, o cirurgião usa os controles mestres no console do cirurgião para direcionar os instrumentos durante a cirurgia. O computador traduz os movimentos do cirurgião para os instrumentos, que se movem exatamente como o cirurgião, dentro do corpo do paciente. O cirurgião está no controle do robô o tempo todo; o sistema cirúrgico responde à orientação que eles fornecem.”
Cortes precisos no olho
Em 2016, a Cambridge Consultant apresentou o Axsis, um pequeno robô de dois braços operado à distância. Seu objetivo é realizar uma das cirurgias mais recorrentes do mundo — a de catarata.
Em todo o planeta, cerca de 20 milhões de pessoas são operadas por ano. A operação é simples, mas um mínimo tremor do médico pode eventualmente ferir a íris e causar complicações a 1% desse total. Um por cento de 20 milhões são 200 mil pacientes, o que não é pouco.
A diferença do Axsis para o da Vinci é principalmente o tamanho. O Axsis é bem menor, voltado especialmente para o delicado ato de cortar a córnea do paciente. Os cirurgiões agem com joysticks com base em uma imagem superampliada do olho. O corte é extremamente preciso. E essa possibilidade de complicação cai a praticamente zero.
Um buraco no crânio
Em 2019, pesquisadores da Universidade de Utah desenvolveram um robô específico para cirurgias cranianas. Se o cirurgião quiser atingir um tumor cerebral, por exemplo, não existe outra opção: é preciso fazer um furo no crânio. Normalmente isso é feito com uma furadeira elétrica. E o cirurgião tem que ser muito preciso no momento de parar — para que o próprio cérebro não seja atingido.
Esse procedimento feito à mão chega a durar duas horas. Duas horas na mesa significa que a anestesia pode começar a perder o efeito. Ou que o perigo de uma infecção se torna mais possível.
O robô da Universidade de Utah recebe os dados de uma tomografia computadorizada detalhada do local onde vai ser feito o furo. Dessa forma, nervos e vasos sanguíneos podem ser evitados com precisão milimétrica. Essas informações são passadas para o robô. Ele faz o furo em dois minutos e meio.
Ensinando o robô
Humanos vão para a faculdade de Medicina. E um robô, como aprende?
Pesquisadores das universidades John Hopkins e Stanford apresentaram no final do mês passado o resultado de um método de “ensino” muito prático. Segundo matéria da Fox News, os cientistas não ficaram programando o robô Da Vinci, mas o fizeram “assistir a centenas de vídeos de cirurgias” para que aprendesse três procedimentos básicos: manipular uma agulha, levantar o tecido e costurar.
Segundo a matéria, “esse método permite que o robô aprenda com a experiência coletiva de vários cirurgiões qualificados, superando potencialmente as capacidades de qualquer cirurgião humano. O sistema cirúrgico não só executou tarefas tão proficientemente quanto os cirurgiões humanos, mas também demonstrou a capacidade de corrigir seus próprios erros”. Para isso, foi utilizada a experiência acumulada de 50 mil cirurgiões, que já estão usando 7 mil modelos do Da Vinci.
O momento em que se percebeu que o robô tinha dado um salto definitivo de inteligência e iniciativa está registrado no vídeo abaixo. É quando o braço do robô deixa cair a agulha e a pega de volta numa ação espontânea.
Parceria entre robôs
Outra inovação prática de sucesso aconteceu neste mês de dezembro no UT Southwestern Medical Center com o doutor Jeffrey Cadeddu. Pela primeira vez, ele reuniu o Da Vinci com a plataforma MARS (da Levita) numa cirurgia de remoção de próstata.
Segundo o doutor Cadeddu, o MARS possibilitou o posicionamento dos órgãos internos do paciente por meio de um sistema magnético. A precisão da técnica preservou os nervos que, caso danificados, provocam problemas típicos dessa cirurgia — disfunção sexual e incontinência urinária. O MARS está sendo usado também em outras cirurgias de risco, como procedimentos de vesícula biliar, bariátricos e colorretais.
“Ao combinar tecnologias, estamos criando um novo padrão para cirurgia que prioriza a segurança do paciente, eficiência e melhores resultados”, declarou o Dr. Alberto Rodriguez-Navarro, CEO e fundador da Levita Magnetics.
A revolução chegou ao SUS
Essa “terceira revolução tecnológica da medicina” já está presente no Brasil desde março de 2008, quando o Hospital Albert Einstein recebeu o primeiro sistema Da Vinci. Assim informa o site do Einstein:
“O sistema é composto de um console cirúrgico e uma torre automatizada — controlada por esse console e composta de três braços cirúrgicos — e dispõe de diversas pinças de tamanhos variados (5 e 8 mm). Trouxe como inovações uma câmera binocular que transmite imagens em 3D de alta definição, pinças cirúrgicas que se movimentam em três eixos, permitindo ao cirurgião múltiplos graus de liberdade para movimentá-las, (…) permitindo maior destreza cirúrgica e manipulação delicada dos tecidos. O sistema de vídeo proporciona magnificação de 10 a 15 vezes e visão real em três dimensões. Os instrumentos multiarticulados captam o movimento do cirurgião cerca de 1,3 mil vezes por segundo, filtrando tremores e movimentação escalonada, gerando movimentos nos instrumentos.”
Em setembro, o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto usou um robô numa situação difícil — um bebê de sete meses com hiperinsulinismo precisava ter 98% do pâncreas retirado. Segundo o endocrinologista pediátrico Raphael Del Roio, “quando se fala de uma criança pequena com um pâncreas com uma dimensão de seis, sete centímetros e a obrigatoriedade de tirar [mais de] 95% do órgão, o robô deve ser considerado uma possibilidade”.
Robôs estão sendo usados em 135 cirurgias do SUS em Volta Redonda, no Estado do Rio de Janeiro. São duas cirurgias por dia. O Da Vinci está atuando também desde fevereiro de 2023 na Santa Casa de Maceió e já realizou mais de 400 cirurgias em casos urológicos, de tórax, uroginecológicos, oncológicos e bariátricos. Em junho, a primeira cirurgia com um robô foi realizada no Hospital Monte Sinai, em Juiz de Fora, no interior de Minas Gerais.
E o medo do robô, como fica?
Reece, um garoto britânico de 7 anos, teve que enfrentar uma cirurgia para uma correção no sistema urinário. Depoimento da sua mãe: “Antes, Reece estava nervoso com a operação. Mas mostramos fotos e ele ficou muito animado em saber que um robô estava operando ele”.
É o novo normal, para uma nova geração.
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Queria um robô pra operar só cabeça de jumentos esquerdistas
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