O comportamento da economia brasileira está em conformidade com o que qualquer economista com boa formação e um mínimo de honestidade de princípios podia antever durante aquele esquisito período eleitoral de 2022, ou seja, vem entrando resolutamente e de cabeça em uma crise que pode irromper bem antes do que se pensa. É que existem certas leis decorrentes da ação humana — goste-se delas ou não por motivos ideológicos — que, quando não são respeitadas, desencadeiam reações no processo de mercado que tendem a punir o desrespeito cometido. Ora, durante o período de 2003 a 2016, os petistas que governavam o país praticamente não fizeram outra coisa a não ser desprezar os bons princípios econômicos e desacatar as leis milenares da economia, uma ciência que, embora não seja exata e esteja sujeita ao subjetivismo e a toda sorte de incertezas, enfeixa — como qualquer ciência — verdades comprovadas à exaustão. E não tem sido diferente no atual mandato. Era tudo previsível.
Além do desacato renitente às referidas leis, característico da visão econômica antediluviana do governo, é importante destacar o ambiente de instabilidade jurídica que vem se intensificando desde o ano de 2019 e que, sem sombra de dúvida, tem contribuído para amplificar o conjunto de condições propícias à eclosão da crise, cujo ápice — a continuarem as condições atuais — é só uma questão de tempo. Até lá, é fato consumado que a crise é um processo em pleno andamento no país e que os agentes econômicos cada vez mais adotam projeções pessimistas para o futuro.
É verdade que algumas partes do problema ainda estão “dentro do armário” — especialmente a do descontrole da inflação e a da estagnação —, mas as forças necessárias para que se tornem visíveis já estão operando nos mercados: dólar nervoso, investimento receoso, capitais saindo do país, picanha inacessível. Como disse um amigo economista, tudo está acontecendo como se as lavas vulcânicas estivessem em um momento de atividade moderada e com pequenas erupções, mas o fato é que nas profundezas da terra a energia que fará o vulcão acordar está cada vez maior.
É importante dizer e repetir quantas vezes forem necessárias que alguns economistas conhecidos — que, mesmo dominando os princípios de sua ciência, com capacidade de antever que os mesmos seriam desconsiderados e conhecedores da economia rupestre do PT — apoiaram abertamente, sob o pretexto fajuto de “preocupação com a democracia”, a chapa que saiu vitoriosa das urnas em 2022, por motivos que passam por pura inveja, vaidade, interesses políticos e ambição por cargos em caso de eventual ascensão do vice. Não acreditamos que o “arrependimento” que ultimamente vêm manifestando seja genuíno e por isso devem ser também responsabilizados pelo perrengue pelo qual a nossa economia está passando e que certamente punirá, como sempre, os que menos podem se defender.
Será que esses medalhões conhecidos e aspirantes a ministros enrustidos imaginaram, por exemplo, que o candidato que apoiaram teria algum compromisso com reformas estruturais no âmbito do Estado, ou com a diminuição do peso dos impostos sobre quem trabalha e produz? Será que achavam mesmo que respeitaria a autonomia do Banco Central ou se preocuparia com o comportamento da dívida do setor público? Será, ainda, que acreditavam na continuidade das privatizações ou, pelo menos, que as estatais existentes não seriam ocupadas e aparelhadas e que não gerariam prejuízos? Não acredito que se trate de arrependimento sincero, caros leitores, mas apenas de tentativas — que ninguém em sã consciência engole — de ficar bem com a opinião pública, levando-a a acreditar que foram realmente iludidos. É óbvio que os economistas, assim como todos os cidadãos, são livres para apoiarem ou deixarem de apoiar os candidatos que quiserem, mas é também evidente que economistas liberais e conservadores autênticos, sem firulas e com princípios, jamais apoiariam uma chapa formada pelo atual presidente do país e um velho tucano. Que liberalismo é esse?
É indiscutível que estamos em meio a uma crise e que, portanto, devemos tentar responder à importante questão: quanto tempo levará para o colapso, para que o vulcão entre em erupção? Ao retrucá-la perguntando o que precisaria ser feito para apagar as lavas e impedir a explosão, a resposta pode ser resumida assim: tudo aquilo que o governo, por suas características obsoletas, rejeita.
Primeiro, seria necessário adotar medidas bastante duras no sentido de afirmar a responsabilidade fiscal. Ora, embora o presidente da República tenha afirmado em entrevista na semana passada que ninguém tem mais responsabilidade fiscal do que ele, nem crianças que acreditam em Papai Noel levam essa bravata a sério.
E, segundo, seria preciso interromper o crescimento da relação dívida interna/PIB, porque existe um limite para a capacidade de endividamento, que em princípio é desconhecido, mas que é atingido quando os agentes econômicos deixam de acreditar que o déficit algum dia será transformado em superávit, ou seja, quando eles passam a duvidar da capacidade do governo de honrar a dívida que contratou. Esse limite é um aviso de que o endividamento atingiu a linha que separa a credibilidade da desconfiança. Não existem sinais de que a relação dívida/PIB vai deixar de crescer, tendo em vista que petistas não têm nenhuma disposição para mudar o regime fiscal, que o Copom já anunciou que vai aumentar a taxa de juros pelo menos nas duas próximas reuniões e que o PIB não anda lá muito “atlético”.
Não custa lembrar que o governo sempre tem quatro opções, não mutuamente excludentes, para financiamento do déficit: do ponto de vista do Tesouro, cortar gastos efetivamente; elevar a arrecadação; e, em caso extremo, não honrar a dívida; e, da parte do Banco Central, emitir moeda. É certo que o fato de o Banco Central ser independente para buscar metas de inflação preestabelecidas impede teoricamente a quarta opção, mas isso não quer dizer nada, porque, mesmo tendo autonomia para conter a inflação, o Banco Central pode adotar os expedientes de abandonar o regime de metas, aumentar as próprias metas, ou atender aos apelos políticos do governo e reduzir a taxa de juros na marra.
Um indicador infalível de que estamos em uma situação difícil é que cada vez mais se escuta falar, em debates, entrevistas, artigos e conversas informais entre economistas, em uma inimiga bastante temida: a dominância fiscal, que pode ser definida, de modo simples, como uma situação em que a política monetária executada pelo Banco Central para conter a inflação, como a elevação da taxa básica de juros, não funciona, por causa do enorme peso do déficit fiscal. Ou seja, existe dominância fiscal quando o Banco Central perde sua capacidade de controle sobre a inflação, uma vez que suas decisões passam a ser necessariamente determinadas pela necessidade de financiar o déficit fiscal elevado e/ou de administrar uma trajetória insustentável da relação dívida/PIB. Aparece então uma dinâmica perigosa, em que quanto pior é o quadro fiscal maiores são as taxas de juros exigidas pelo mercado financeiro para financiar a dívida, o que, por sua vez, piora o déficit. E a culpa não é do mercado, nem de memes, nem de fake news; é integralmente da irresponsabilidade do governo.
Em outras palavras, em um quadro de dominância fiscal, o Banco Central aumenta a taxa de juros para atacar a inflação, porém o governo continua aumentando o seu déficit; o Tesouro, por sua vez, coloca mais papéis a juros maiores no mercado para financiar as despesas. Esse panorama de juros crescentes fará com que chegue uma hora em que aparecerão dúvidas sobre a capacidade do Tesouro de honrar a dívida contraída, levando a uma rejeição cada vez maior dos títulos públicos e, portanto, a expectativas crescentes de que o Banco Central será forçado a emitir moeda, já que o financiamento via maior arrecadação já atingiu também o seu limite. Nesse caso, claramente, não existe coordenação entre a autoridade fiscal e a monetária. Pelo contrário, a situação é semelhante à de um jogo não cooperativo, em que a autoridade monetária busca controlar a inflação, enquanto a autoridade fiscal não para de gastar, o que vai exigir, para obter o mesmo resultado sobre os preços, taxas de juros muito acima das necessárias para o caso em que houvesse cooperação. Por essas e outras razões, é muito importante que o regime fiscal seja verossímil e sustentável, algo que certamente não podemos esperar do atual governo. A verdade é que não existe disposição do governo para gerar os superávits sucessivos que são essenciais para estabilizar a relação dívida/PIB, o que, como vimos, restringe a capacidade da política monetária de controlar a inflação e pode mesmo trazer a inflação maior do futuro para o presente.
Diante de tudo isso, podemos agora olhar para o próximo ano e tentar enxergar alguma coisa mais concreta — se é que isso é possível, dada as enormes incertezas econômicas e jurídicas. A partir de janeiro o Banco Central terá um novo presidente e parece claro que essa mudança será importante para determinar para onde vamos caminhar nos próximos meses. Que tipo de presidente estará à frente do Bacen, o economista oriundo da Unicamp e simpático ao PT, fazendo-nos antever uma atuação política? Ou o que adveio também do mercado financeiro e conviveu durante meses com Roberto Campos Neto no próprio banco, criando em nós uma expectativa de gestão mais técnica?
Os sinais emitidos até aqui são bastante confusos. De um lado, o próprio Galípolo indicou que optará por uma gestão técnica e autônoma, porém disse isso em uma semana em que o dólar e o real andaram às turras, o que pode levar a crer que suas declarações tinham o intuito apenas de acalmar os mercados. Por sua vez, na mesma semana, o presidente do Brasil, ao posar com ele para uma foto, bradou com arrogância e sem cerimônia que Galípolo será “o maior presidente que o banco já teve”, seja lá o que isso signifique.
A dúvida, então, é muito natural: segundo as declarações do próprio, é lícito imaginarmos que a política monetária que vem sendo executada pelo Banco Central será mantida, o que não deixa de ser um bom sinal, embora, dada a situação de dominância fiscal, isso não seja capaz de acabar com a inflação e pode, inclusive, acirrar as expectativas de mais inflação futura. Mas, ao menos, talvez, poderá contê-la durante algum tempo. O próprio Roberto Campos Neto já anunciou, inclusive, que os juros continuarão subindo pelo menos nas duas próximas reuniões do Copom.
Adeptos da chamada Teoria Fiscal do Nível de Preços (TFNP) argumentam com razão que uma eventual postura técnica do Banco Central não será capaz de resolver o problema da inflação. Essa teoria afirma que o nível de preços se ajusta de modo que o valor real da dívida pública seja sempre igual ao valor presente esperado dos superávits primários. Logo, um grande déficit, que as pessoas não esperam que seja totalmente pago — situação para a qual estamos nos encaminhando —, provoca inflação. Segundo a TFNP, a dívida e os déficits não são automaticamente inflacionários e só o serão se não existirem expectativas de superávits subsequentes, ou seja, pela quase certeza de que haverá emissão de moeda no futuro.
Mas a preocupação maior surge quando nos perguntamos se Galípolo optará (ou será compelido a fazê-lo) por uma gestão política no comando do banco, o que significa aderir ao populismo do partido que, ao que tudo indica, admira. Não quero crer nisso, mas, como dizia aquele comediante, “perguntar não ofende”. Afinal, a postura do partido do governo é a do negacionismo, definido como a crença de que “gasto é vida”, não importa se não puder ser financiado a não ser por emissão de moeda. Nesse caso, a deterioração das expectativas fará o vulcão entrar em erupção rapidamente. Definitivamente, 2025 será mais um ano difícil.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
Instagram: @ubiratanjorgeiorio
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