Por mais de um século, os carros alemães foram sinônimo de qualidade e tecnologia de ponta. Ter na garagem um Mercedes, uma BMW, um Audi ou um Volkswagen (VW), por exemplo, não era apenas sinal de status, mas, sobretudo, de bom negócio. Os carros alemães significavam segurança, eficiência, inovação, durabilidade e alto valor de revenda. Eram a representação ideal da lenda “Made in Germany”. Mas os tempos mudaram.
Uma sucessão de fatores nos últimos anos fez com que o motor da indústria automotiva alemã começasse a pifar. O cenário não é apenas de perda de mercado, mas principalmente de abalo na reputação. Segundo o alemão Matthias Moetsch, diretor editorial da revista especializada Auto Bild, de Hamburgo, a indústria alemã cometeu erros graves. “A Volkswagen, por exemplo, não fez o recall a tempo do Touran, enquanto carros do modelo explodiam com crianças dentro.”
Membro do conselho de administração da Volkswagen, Thomas Ulbrich, em entrevista ao canal DW, reconheceu recentemente que o setor sente o impacto do cenário global. “Querem que continuemos comprovando a capacidade da engenharia alemã, mas o fato é que não estamos mais sozinhos no mundo. Há um ambiente altamente competitivo.”
Fora do topo da lista
No Brasil, a boa imagem segue aparentemente blindada. Entre janeiro e outubro de 2024, a Volkswagen foi a montadora que mais vendeu carros no país, com 17% do mercado. Nos Estados Unidos, no entanto, a situação é outra. A J.D. Power, empresa norte-americana que há 35 anos pesquisa a confiabilidade dos automóveis, mostra que há muito tempo os alemães deixaram de figurar no topo da lista.
Neste ano, as quatro marcas mais bem colocadas foram Lexus e Toyota, do Japão, e Buick e Chevrolet, dos EUA. As quatro piores foram Chrysler (EUA), Land Rover (Inglaterra) e as alemãs Audi e Volkswagen. Para se ter uma ideia dessa decadência, neste mesmo ranking no ano passado, a única alemã entre as dez primeiras mais bem avaliadas era a BMW (quinto lugar). Entre as menos confiáveis, a Volkswagen emplacou dois modelos: o Taos e o Jetta.
“Fazemos mais de 80 mil avaliações, com mais de 220 perguntas aos consumidores. Queremos saber que tipo de problema ele enfrenta. No caso dos carros alemães, eles reconhecem o ganho de sofisticação, mas dizem que é exatamente essa sofisticação o que tem trazido mais problemas”, explica Jack Dolan, porta-voz da J.D. Power.
O abalo global do ‘Dieselgate’
Enquanto nos Estados Unidos as empresas são rigorosas em realizar recalls diante de qualquer falha, na Alemanha prospera a ideia de que o hábito é varrer problemas para debaixo do tapete. Isso fez com que o jornalista Niko Ganzer criasse o blog Kfz-Rueckrufe, que em português significa “recall de veículos”. “Minha intenção é trazer para o mercado alemão a transparência dos Estados Unidos. Lá, temos a sensação de que as autoridades seguram as rédeas e orientam os fabricantes. Aqui, não.”
Nesse contexto, basta lembrar do “Dieselgate”, que curiosamente estourou nos Estados Unidos. O escândalo envolveu várias técnicas fraudulentas usadas pela Volkswagen, de 2009 a 2015, para reduzir as emissões de dióxido de carbono e óxido de nitrogênio de alguns dos seus motores a diesel e a gasolina nos testes regulatórios de poluentes. Em setembro de 2015, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA emitiu um aviso sobre violação a uma lei que regula a emissão de poluentes no país.
A Volkswagen foi notificada depois da constatação de que a marca tinha programado intencionalmente a injeção eletrônica de carros com motores a diesel para ativar determinados controles de emissões apenas durante os testes de poluentes. A Volkswagen colocou esse programa em cerca de 11 milhões de carros em todo o mundo (meio milhão só nos Estados Unidos, em modelos de 2009 a 2015).
Flechas de prata
Para Ganzer, o “Dieselgate”, de certa forma, resulta de uma cultura protecionista da Alemanha em relação à sua indústria-chave, que continua sendo a automobilística. Esse apreço talvez seja fruto não apenas de interesses econômicos, mas, especialmente, de natureza afetiva. Afinal, o carro foi inventado na Alemanha.
Em 1886, Carl Benz patenteou o que é considerado o primeiro automóvel que serviu de base para o sucesso dos veículos alemães. Um especialista em venda de carros antigos confirma que a qualidade dos modelos fabricados na Alemanha vem sendo degradada ano a ano. O comerciante Burkhard Steins vende em sua loja, em Berlim, várias versões da marca Mercedes dos anos 1970, 1980 e 1990. “Os carros modernos têm uma vida útil de 15 ou no máximo 20 anos, ao contrário dos mais antigos, que você pode dirigir para sempre”, compara.
O poderio tecnológico das marcas alemãs na cronologia da indústria automobilística é inegável. Na década de 1930, a Mercedes começava a se constituir como um mito, demarcando território nas pistas de corrida. Foi sua inovação que permitiu à equipe McLaren, por exemplo, colher diversos títulos na Fórmula 1 a partir da década de 1970. Mais à frente, os chamados carros “flechas de prata” consolidaram a partir da década de 1990 a superioridade dos motores Mercedes.
Reféns do marketing
Nesse contexto, é importante lembrar que o Mercedes W11 é ainda considerado o carro mais potente da história da F1. Nas estatísticas do automobilismo mundial, reunindo todas as categorias de competição, ninguém ultrapassa em número de vitórias a também alemã Porsche, do Grupo Volkswagen.
Na opinião de Mario Theissen, engenheiro alemão que dirigiu a BMW Motorsport e foi chefe de equipe da BMW Sauber de 2005 a 2009, a raiz do problema é o marketing. “Há 50 anos o marketing não tinha um papel tão importante. Eram os engenheiros das áreas de pesquisa e desenvolvimento que direcionavam as linhas de produção e planejamento.” Theissen acrescenta que a prioridade era a engenharia de boa qualidade.
Tom Fischer é visto no mercado europeu como um dos mais talentosos restauradores de carros antigos. Ele diz que a qualidade tecnológica dos carros alemães vem perdendo solidez desde os anos 1990. “A concorrência aumentou, e todos os competidores passaram a ganhar muito mais dinheiro. Nesse cenário, houve um deslocamento de relevância em que o retorno para os acionistas tornou-se muito mais importante do que a qualidade em si.” Fischer corrobora a opinião de Theissen. “A engenharia perdeu espaço para os gestores de negócio.”
‘Rodar, rodar, rodar’
Os fabricantes de carros alemães entenderam que a ordem era enxugar os custos de produção. A mudança de direção refletiu-se rapidamente. Em 2022, a ADAC, maior clube de automobilismo da Europa, com mais de 15 mil membros, avaliou a qualidade dos materiais empregados em mais de 580 carros. O que se viu foram vários problemas, especialmente em modelos da Daimler, do Grupo Mercedes, e da Volkswagen. Martin Ruhdorfer, da ADAC, explica: “Em modelos mais novos, o que se verifica é o uso de materiais mais baratos. Os painéis já não são mais revestidos com tecido, e tudo das maçanetas para baixo é feito de plástico rígido”.
Se nos tempos do Fusca a Volkswagen oferecia uma simples garantia, que era rodar, rodar, rodar, agora seus sucessores propõem virtudes tecnológicas disruptivas, mas que nem sempre compensam. “O orgulho pela nossa tecnologia continua o mesmo de antes, mas é importante destacar que o foco mudou drasticamente nos últimos 10 ou 20 anos”, explica o conselheiro da VW Thomas Ulbrich. O executivo reforça que a eficiência e outros atributos precisam ser incluídos no processo. “Os veículos se tornaram mais complexos e precisam impressionar em outros aspectos.”
1 milhão de quilômetros
Apesar de a lenda “Made in Germany” estar em baixa no que diz respeito à confiabilidade da tecnologia, o apelo emocional das marcas segue firme e forte. Conforme estudos da J.D. Power, os consumidores, embora reconheçam os carros alemães como “mais caros”, não abrem mão do valor da imagem. “A Ferrari vende cada vez mais em razão do apelo emocional”, afirma o restaurador Tom Fischer. “Se os italianos perderem isso, não sobra nada. Logo, se os alemães perderem a qualidade, também não sobra nada.”
Com a transição para os carros elétricos, o desafio para os alemães agora parece maior. Além de resgatar a confiabilidade da sua inovação em meio a um ambiente pautado na eficiência e no lucro, os fabricantes precisam ser mais rápidos. Afinal, clientes que pagam o equivalente a quase R$ 1 milhão em modelos de luxo não estão dispostos a dirigir um carro cuja tecnologia não ofereça garantia de satisfação.
“Tudo vem sendo desenvolvido em um tempo muito curto, numa situação que o setor não via havia mais de 50 anos. As indústrias alemãs estão trabalhando duro para incorporar as novas competências. Se conseguirem, terão os melhores carros, pois sabem como fabricá-los”, diz o engenheiro Mario Theissen. “Se for para fazer, que façamos direito. Por isso podemos dizer que um dos nossos modelos elétricos, o ID.3, pode ter uma vida útil de 1 milhão de quilômetros”, garante o conselheiro Thomas Ulbrich. “Isso é pura especulação”, rebate Matthias Moetsch, da Auto Bild. “Não basta apenas olhar para o passado.”
Leia também “O Vale do Silício brasileiro”
Meus últimos VW foram um T Cross e um Jetta R Line.
Dois lixos pelo preço que se paga.
Por enquanto deixei de ser “volkswagenzeiro”.
Com relação ao “primeiro o lucro dos acionistas, depois a qualidade”, isso vem acontecendo já há anos até na medicina.
Meus últimos VW foram um T Cross e um Jetta R Line.
Dois lixos pelo preço que se paga.
Por enquanto deixei de ser “volkswagenzeiro”.
Com relação ao “primeiro o lucro dos acionistas, depois a qualidade”, isso vem acontecendo já há anos até na medicina.
Meus últimos VW foram um T Cross e um Jetta R Line.
Dois lixos pelo preço que se paga.
Por enquanto deixei de ser “volkswagenzeiro”.
Com relação ao “primeiro o lucro dos acionistas, depois a qualidade”, isso vem acontecendo já há anos até na medicina.
Uma correção. O ADAC – automóvel clube da Alemanha- tem 22 milhões de sócios!!! E não 15 mil como diz o texto. Sou , inclusive, ex sócio. Achei o número baixíssimo e fui pesquisar. Simples busca no Google : zahl adac mitglieder resolveu!
Reportagem idiota! Carros alemães são os melhores, mais confiáveis e os melhores do mundo. Ainda não existem parâmetros para comparar a indústria alemã com as fábricas de descartáveis chineses. Levará uns 150 anos para os chineses conseguirem a qualidade de um Porsche, de uma BMW ou de um Audi.
Não gosto de carro chinês, vou resistir até quando for possível para não comprar um, mas entendo que não é a maioria que tem dinheiro para comprar um BMW, Porsche, Audi ou Mercedes, hoje tem boas opções de Japoneses, Coreanos e Americanos, com preço mais acessível. O problema da indústria alemã, assim como o restante dos países ocidentais, é o custo ultra pesado dos governos, que encarece tudo que é produzido nesses países. Aí concorrer com os asiáticos fica covardia!