Com progresso contínuo das ciências, nunca a humanidade reuniu tantos conhecimentos sobre si mesma, o mundo e o universo. Em 2024 foram anunciadas centenas de descobertas e feitos científicos em biologia, química, astronomia, arqueologia, medicina etc. Em todas elas, cada vez mais, participa a ferramenta da inteligência artificial (IA). Entre centenas de eventos científicos de 2024, como pesquisador, analisei, escolhi, editei e relato sete. Um deles é brasileiro.
1. A vulnerabilidade das mulheres às doenças autoimunes
As doenças autoimunes (esclerose múltipla, lúpus, artrite reumatoide, vitiligo…) afetam até 8% da população mundial, sendo a maior parte mulheres: 78% dos casos. Neles, o sistema imunológico ataca o próprio organismo e existem mais de 80 tipos de doenças autoimunes conhecidas. Até 2024, ninguém fora capaz de explicar essa incidência desproporcional entre mulheres e homens. Novos estudos, como o publicado na revista Cell por cientistas da Stanford Medicine (Califórnia), apontam a falha do mecanismo para inibir um dos dois cromossomos X das mulheres como a origem dessa maior vulnerabilidade feminina às doenças autoimunes.
O sexo é definido geneticamente. O feminino é determinado pela presença de dois cromossomos X e o masculino por um cromossomo X e outro Y. O cromossomo Y contém poucos genes ativos em seu interior. O X contém centenas de genes ativos. Dois cromossomos X nas mulheres são um risco de produção de proteínas em excesso, tóxicas ao organismo. Cada célula feminina “desliga” um dos cromossomos X. Assim, a mesma quantidade de proteína em uma célula masculina é produzida em uma feminina.
A inativação de um cromossomo X nas mulheres resulta da ação de uma molécula chamada Xist. Ela envolve um cromossomo X e o “desliga”. Essa “junção” do Xist ao X pode levar outras proteínas a se ligarem a ele e confundir o sistema imunológico. Os anticorpos atacam essas proteínas por identificá-las como tóxicas e terminam por atacar outras partes do corpo, levando a uma doença autoimune. Mais estudos ampliarão a compreensão dessa desigualdade de gênero frente às doenças autoimunes.
2. A existência de oceanos (e vida?) no sistema solar externo
Terra, planeta água. Durante muito tempo, os oceanos da Terra pareciam os únicos do sistema solar. Marte era um deserto radioativo. Vênus, uma paisagem vulcânica árida com temperatura média de 464 °C, o planeta mais quente do sistema solar. As muitas luas de Júpiter, Saturno, Urano e Netuno eram bolas de gelo. Na década de 1980, estranhos sinais elétricos emitidos por Europa, a lua galileana de Júpiter, sugeriam a existência de um oceano de água líquida, quente e salgada, sob a sua espessa concha gelada. A missão Europa Clipper da NASA foi lançada, em outubro de 2024, para estudar esse oceano e determinar se é capaz de sustentar formas de vida. A Europa Clipper chegará a Júpiter em abril de 2030. É longe.
Em 2024, outros oceanos foram descobertos no sistema solar. Encélado, o sexto maior satélite de Saturno, abriga um oceano líquido, com elementos essenciais à vida. Com os dados da sonda Cassini, astrônomos anunciaram evidências de um oceano escondido em Mimas. A oscilação ou libração de Mimas, ao gravitar em volta de Saturno, indica a presença de um oceano líquido sob sua superfície. Em outubro, dados convincentes indicaram outro oceano nas profundezas de Miranda, a exótica lua de Urano.
A água é um elemento essencial à vida tal como a conhecemos. Em maio, os cientistas descobriram um novo exoplaneta similar à Terra, capaz de conter água e ser potencialmente habitável: Gliese 12b, a 40 anos-luz de distância. Longe demais para ser visitado. Não se sabe, ainda, se essas luas com oceanos, visitáveis, abrigam vida e sob quais formas. A presença de outros oceanos no sistema solar traz novos e mais locais para a procura de formas de vida, onde o perto ainda é muito longe.
3. A inteligência artificial revela o segredo das proteínas
Em 2024, a inteligência artificial (IA) ajudou na compreensão da vida e de seu funcionamento. Na diversidade da vida, as proteínas são ferramentas químicas. Elas controlam e conduzem todas as reações bioquímicas e, juntas, são a base da vida. Proteínas também funcionam como hormônios, substâncias sinalizadoras, anticorpos, blocos de construção de tecidos etc.
Em outubro de 2024, o Nobel de Química foi sobre proteínas. Dois dos três laureados, Demis Hassabis e John Jumper, foram agraciados por suas descobertas, graças ao modelo de IA chamado AlphaFold2, desenvolvido pelo Google DeepMind e pelo European Bioinformatics Institute (EMBL-EBI). Seu trabalho tornou realidade um sonho de 50 anos: prever estruturas proteicas a partir de suas sequências de aminoácidos.
A ferramenta previu com incrível eficiência a estrutura de 214 milhões de sequências de proteínas conhecidas e como essas moléculas da vida interagem. Será possível determinar, com rapidez e precisão, os tipos de proteínas envolvidas nas mais diversas reações químicas e fenômenos biológicos, como a resistência a antibióticos ou doenças neurológicas. Grandes avanços ocorrerão na compreensão de doenças, como malária ou Parkinson, e na busca de métodos eficazes para a cura. Valia um Nobel.
4. Datado o encontro do Homo sapiens com o Homo neanderthalensis
Em 2024, uma equipe de geneticistas da Universidade de Genebra (Suíça) esclareceu, com dados de sequenciamento genético, publicados na Science Advances, a duração e as consequências do encontro entre os ancestrais do Homo sapiens e seu parente Homo neanderthalensis. O encontro entre essas duas humanidades foi datado e qualificado, graças ao tratamento por IA dos sequenciamentos genéticos das duas espécies. Eles coabitaram por 7 mil anos e sua mistura gênica começou há mais de 50 mil anos, quando o Homo sapiens migrou da África para a Eurásia.
Pesquisadores compararam os genes de humanos modernos e antigos. Realizaram análises genéticas detalhadas de ossadas de 59 indivíduos, alguns datando de 2,2 mil anos e outros de até 47 mil anos. Os neandertais estiveram na Ásia e na Europa, muito antes do Homo sapiens, durante 300 mil anos. E se adaptaram, geração após geração, ao clima rigoroso, à sazonalidade e aos vírus e micróbios. A coabitação durou até o desaparecimento dos neandertais.
Os genes dos neandertais representam de 1,8% a 2,6% da composição genética total de pessoas de descendência euroasiática. As trocas de genes fortaleceram as duas espécies e também trouxeram fracassos. Certas características dos neandertais foram mortais para o Homo sapiens. Muitos híbridos não eram viáveis. Cerca de 70% dos genes de neandertais foram eliminados do patrimônio genético do Homo sapiens, como seus olhos grandes, seu osso proeminente da testa ou suas grandes massas musculares.
O Homo sapiens manteve dos neandertais genes de imunidade (protetores contra parasitas, fungos e sua resistência aos ancestrais da gripe A, da hepatite C e coronavírus), e sua capacidade de assimilar lipídios (gorduras) e vitamina D. O Homo sapiens também assumiu a pigmentação clara de sua pele, adaptada ao sol de altas latitudes, sua resistência ao frio e atitudes comportamentais. O estudo de 2024 confirma: neandertais ajudaram o H. sapiens a se adaptar, quando deixou a África e se aventurou rumo ao norte.
5. Descoberta a maior e mais antiga construção humana
Em 2024, uma megaestrutura de 11 mil anos foi descoberta submersa no Mar Báltico Ocidental, a 21 metros. Eram os restos de um muro de pedra pré-histórico identificado no fundo do mar da Baía de Mecklenburgo, a leste de Rerik (Alemanha). Constituído por 1.670 pedras, com 2 metros de largura, 1 metro de altura e 975 metros de comprimento, esse muro é considerado a maior e mais antiga estrutura artificial conhecida na Terra.
Há 11 mil anos, durante o período pós-glacial (Holoceno), os níveis do mar eram muito mais baixos. Para os pesquisadores (artigo de 12 de fevereiro de 2024 na PNAS), seria um muro de caça, usado para conduzir e facilitar a caça das renas (Rangifer tarandus), comuns nessa parte da Europa na época. Ao longo de áreas inundadas ou lagos, ele as conduzia a uma parte afunilada onde caçadores as esperavam.
6. Nova era de foguetes espaciais baratos e reutilizáveis
A SpaceX, a empresa de foguetes fundada e dirigida por Elon Musk, reduziu o custo para colocar carga em órbita em cerca de um fator de 10 com seus foguetes parcialmente reutilizáveis, Falcon 9 e Falcon Heavy. O Falcon Heavy é o foguete mais poderoso do mundo em operação e um dia poderá ser usado para transportar humanos à Lua e a Marte.
Em outubro de 2024, pela primeira vez, a missão visava manobrar o foguete propulsor de 71 metros para uma gigantesca estrutura de pouso, depois de ele queimar a maior parte de seu combustível e se separar da espaçonave superior. O Super Heavy foi lançado e depois capturado com sucesso no ar (veja o vídeo integral) por um par de enormes pinças de metal, chamadas “pauzinhos” (“chopsticks“). Com esse feito científico e tecnológico virá uma era de foguetes de carga pesada, com grande redução de custos.
O Falcon Heavy foi desenvolvido com capital privado, sem nenhum financiamento governamental. A SpaceX realizou 101 lançamentos bem-sucedidos em 2024. E tornou ultrapassado o ditado “foguete não dá ré”.
7. O segundo menor vertebrado do mundo também é brasileiro
Com 6,95 milímetros, o “sapo-pulga” (Brachycephalus dacnis) é o segundo menor vertebrado do mundo! Tão pequeno, cabe com folga sobre a unha de um humano. O biólogo Luis Felipe Toledo e seus colegas da Universidade Estadual de Campinas descobriram essa nova espécie endêmica na floresta úmida da Mata Atlântica, em Ubatuba, litoral de São Paulo. É o segundo menor vertebrado já descoberto, depois do Brachycephalus pulex (6,45 mm), também da família dos “sapos-pulgas”.
O Brachycephalus dacnis possui diferenças morfológicas em relação aos sapos maiores. Nele, fusão e perda óssea reduziram o número de dedos. Um sapo grande tem quatro dedos nas mãos e cinco nos pés. O B. dacnis possui um dedo funcional a menos em cada membro. Num tamanho tão diminuto, não há espaço para abrigar tantos elementos anatômicos.
Esse sapinho coloca apenas dois ovos por vez, quantidade pequena para anfíbios. O sapo cururu, por exemplo, coloca até 50 mil ovos de uma única vez. Dos ovos do B. dacnis saem sapos já formados. Eles não passam pela fase dos girinos. Na mata, vivem sob as folhas mortas. São difíceis de observar e fáceis de ouvir, quando centenas de indivíduos cantam juntos.
Leia também “A agricultura renova sua energia”
Muito bom ficar sabendo
Muito bom ficar sabendo
Artigo importante para ligar o público à ciência. Parabéns!
Sensacional
Demais !
Uma coletânea de leitura obrigatória para aquele que quer se manter a par do que de mais importante aconteceu em 2024.
Uma compilação completa!
Nossos agradecimentos e cumprimentos ao professor Evaristo por esse artigo tão interessante e à Revista Oeste pela publicação.