Um lugar paradisíaco, com dezenas de rios, destino de viagens românticas de casais para a Itália. Esse é o imaginário de parte da população quando ouve falar de Veneza. Do outro lado do Atlântico, uma pequena favela na zona leste da capital paulista tem o mesmo nome da luxuosa cidade italiana: Veneza City, localizada no bairro Fazenda da Juta, em Sapopemba. Mas, no caso brasileiro, o cenário é bem diferente.
O nome da favela é uma abreviação da palavra “venezuelanos”. Os moradores deram esse apelido à região por receber dezenas de imigrantes que fugiram do autoritarismo de Nicolás Maduro. A Venezuela enfrenta uma crise política e humanitária por causa da ditadura chavista há anos — nesta sexta-feira, 10, Maduro vai se autocondecorar para um novo mandato, depois de uma eleição marcada por fraude escancarada.
“Porque, quando os venezuelanos começaram a vir, os brasileiros falaram assim: ‘Ô, você está ajudando os veneza?’”, conta Débora dos Santos, fundadora da favela. “E o nome ficou: Veneza City.”
Ao descer um pequeno morro por uma escada de concreto, é possível observar algumas casas de madeira e duas ruas com chão de terra. Ali moram 40 famílias venezuelanas.
Há cerca de cinco anos, um grupo de imigrantes que acabara de desembarcar em Sapopemba pediu a ajuda de Débora para montar um pequeno quarto na área que hoje é conhecida como Veneza City. Por ter trabalhado como pedreira com os pais, Débora decidiu colocar a mão na massa e os ajudou na obra.
“O Criador falou para eu ajudar essas famílias, porque estavam sofrendo muito”, disse Débora. “Eles vieram pouco a pouco, devagarinho, começaram a vir. Aí, a gente fez essa comunidade.”
Viagem de refúgio
Uma das famílias que chegaram à favela foi a da dona de casa Maria Rivas, de 24 anos. O marido veio ao Brasil primeiro, para procurar emprego, enquanto Maria cuidava dos dois filhos do casal na Venezuela — uma menina de 7 anos e um menino de 4. Maria seguiu para o Brasil depois de receber o sinal verde do marido e cruzou a cidade fronteiriça de Pacaraima (RR) pela Rodovia BR-174.
Sob condição de anonimato, um policial federal relatou a Oeste que existe uma base da corporação em Pacaraima. Contudo, não há barreira física para impedir a entrada de imigrantes — o que abre espaço para venezuelanos entrarem no país sem visto de permanência. Interpelada sobre o controle migratório na fronteira, a Polícia Federal (PF) não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Maria seguiu os trâmites legais: entrou no Brasil de ônibus e obteve o visto através da PF. Com a autorização em mãos, a venezuelana seguiu para Manaus, de onde partiu de barco com destino a Porto Velho. Essa viagem durou sete dias. Na capital rondoniense, Maria pegou uma carona até Londrina (PR) e seguiu para São Paulo.
“Viemos por causa de Nicolás Maduro”, disse Maria, ao lamentar a miséria na Venezuela. “Era muito ruim, não havia comida. Se comprava arroz, não comprava carne. Se comprava carne, não comprava arroz. A gente não conseguia comprar fralda nem leite. Tudo estava escasso.”
Maria faz parte dos mais de 770 mil venezuelanos que vivem no Brasil, de acordo com dados registrados pelo Ministério da Justiça até agosto do ano passado. Desse total, cerca de 135 mil foram reconhecidos como refugiados pelo governo brasileiro.
“O refúgio é concedido ao imigrante por temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”, disse Pedro Cícero, coordenador do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).
Em resumo, o Conare é um órgão vinculado ao Ministério da Justiça que reúne autoridades governamentais, integrantes da sociedade civil e especialistas das Nações Unidas. Cabe ao Conare analisar, por exemplo, se os cidadãos que fogem de países ditatoriais para vir ao Brasil podem receber o status de refugiado. Essa condição lhes permite ficar legalmente em território brasileiro.
“O Conare trabalha em coordenação com as autoridades policiais e de Inteligência do Estado brasileiro para assegurar, quando for o caso, a aplicação da referida cláusula de exclusão”, afirmou Cícero, referindo-se ao processo de deportação de imigrantes.
De acordo com o Conare, em 2023, o Brasil aprovou aproximadamente 80 mil pedidos de refúgio para imigrantes. A Venezuela representa quase 100% do total, com cerca de 75 mil refugiados acolhidos no ano retrasado, seguida pelo Afeganistão, com mais de 900.
Um levantamento solicitado por Oeste ao Ministério da Justiça mostra que o reconhecimento de venezuelanos como refugiados em 2023 cresceu mais de 1.500% em relação a 2022. Eram 4,5 mil e passaram para os cerca de 75 mil citados anteriormente.
Segundo a Pesquisa Nacional de Condições de Vida, divulgada em março de 2023, mais de 50% dos venezuelanos viviam na pobreza naquele ano.
Perseguição política
Além da fome, os venezuelanos têm fugido do país por medo de perseguição política. Maria Rivas, uma das mais antigas moradoras da Veneza City, conta que seus conterrâneos evitam criticar a ditadura de Maduro. “Eles não podem falar, senão são sequestrados, torturados e vão presos”, disse. Já o governo Lula não reconhece a Venezuela como ditadura. “Acho que a Venezuela vive um regime muito desagradável”, afirmou o presidente, em agosto do ano passado, durante entrevista à Rádio Gaúcha. “Não acho que é uma ditadura, é diferente de uma ditadura.”
Por receio de represálias, uma professora aposentada de 71 anos, moradora da Veneza City, sempre aconselha o filho a não conversar sobre política. A docente, que preferiu não se identificar, mora no Brasil há aproximadamente cinco anos. Ele ainda vive no país vizinho. “Sempre falo para meu filho tomar cuidado”, relatou a professora. “Porque a gente sabe que eles eliminam quem fala contra o governo. Não pode falar nada, porque eles prendem.”
De acordo com a docente, depois do anúncio do resultado das eleições venezuelanas, houve manifestações na cidade onde o filho mora. Em resposta, Maduro ordenou que os manifestantes fossem presos. A professora afirmou que a ditadura chegou a interceptar chamadas telefônicas para localizar os dissidentes.
“Tenho medo de que peguem meu filho”, disse a professora, que prefere manter a identidade do filho em sigilo. “Então, quando falo com ele, digo para tomar cuidado. Não falamos mal do governo por telefone. Tenho medo que o governo possa achar que meu filho é da oposição.”
Em maio de 2023, Lula sugeriu a Maduro que fizesse uma propaganda internacional para rebater a má reputação da ditadura venezuelana. “Se quiser vencer uma batalha, preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo”, disse o petista, durante encontro com o chavista. “Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo.”
Fraude eleitoral
Mais de um ano depois dessa conversa, em julho de 2024, foram realizadas as eleições presidenciais venezuelanas. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), responsáveis pela fiscalização do processo eleitoral, reconheceram a vitória de Maduro. Ambos sofrem influência direta do ditador.
A oposição, contudo, apresentou atas eleitorais que provariam a vitória do principal opositor de Maduro, Edmundo González. Este último teria recebido 67% dos votos, enquanto o ditador teria registrado 30%. Organizações e governos internacionais exigiram que o CNE divulgasse as atas, mas o TSJ pôs os resultados sob sigilo.
Para Maria, o candidato da oposição ganhou o pleito. “Não acredito nesse resultado”, disse. “Maduro não venceu. Edmundo González ganhou. Maduro está fazendo coisas erradas. Ele tem de sair. Só Deus neste momento para tirá-lo da Venezuela.”
A crise política na Venezuela ocorre há mais de 20 anos. O país vive sob autoritarismo desde 2002, quando Hugo Chávez, ex-presidente e mentor de Maduro, silenciou a imprensa e perseguiu opositores. Com a morte de Chávez, em 2014, Maduro, então vice-presidente, assumiu a Presidência da Venezuela e conseguiu se reeleger.
A instabilidade econômica na Venezuela provocou a explosão de imigrantes em outros países. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), quase 8 milhões de venezuelanos fugiram do país desde 2002. Apenas em 2024, a Prefeitura de São Paulo acolheu mais de 800 imigrantes que chegaram da Venezuela.
Na Veneza City, 19 famílias recebem um auxílio-aluguel de R$ 600 da administração municipal. Alguns moradores aceitaram o valor, deixaram a favela e alugaram uma residência no bairro. Mas o valor é insuficiente para sustentá-los.
“Não temos dinheiro para completar o valor do aluguel e para comprar as coisas em casa”, disse Maria, ao contar que o marido trabalha como balconista e como pedreiro. “Não estamos desfazendo da ajuda, mas queremos ficar aqui e precisamos de mais recursos.”
Embora viva em condições precárias, Maria acredita que sua situação é melhor no Brasil do que na Venezuela. “Me sinto mal com o que está acontecendo lá”, disse, com lágrimas nos olhos. “Não podemos ir para lá. Com essa situação, não sabemos quando vamos voltar. Tenho família lá, meu avô, meus primos, minha tia. Gostaria de retornar.”
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