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A eleição de Hugo Motta e Davi Alcolumbre preocupa, mas é preciso lidar com a realidade até 2026 | Foto: Reprodução/X
Edição 255

Viagem à vida real

Alcolumbre e Motta são fruto de um sistema político que tem como efeito inevitável produzir Alcolumbres e Mottas

J. R. Guzzo
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Gente otimista, em geral, gosta de citar o ditado segundo o qual a hora mais escura da noite é aquela que vem logo antes de o sol nascer. Levando-se em conta que os problemas do curto prazo têm a tendência desagradável de serem sempre mais incômodos no aqui e no agora, o que atrapalha mesmo é a escuridão de hoje — por mais que haja esperança na luz de amanhã. Ninguém aqui vai negar, portanto, que é duro aguentar a treva da eleição de Hugo Motta para presidente da Câmara e de Davi Alcolumbre para presidente do Senado. Também não se discute que a possível luz ainda está muito longe, só nas eleições de 2026, e esperar pelo futuro não paga os boletos do presente. Mas a questão aqui não é ficar discutindo o que seria o ideal. É conviver com o que é necessário.

Os dois, Alcolumbre e Mota, são exatamente o que o Brasil não precisa para dar certo em alguma coisa. A vida política brasileira, a um momento qualquer, vai ter de se orientar por um conjunto mínimo de princípios — uns três ou quatro, não mais que isso, mas pelo menos esse tantinho. Se continuar sendo uma atividade basicamente criminosa, como é hoje, não há Deus, nem direita e nem esquerda que resolva. Não há registro de que nenhum dos dois seja capaz de reconhecer o que poderia ser um princípio — mesmo se bater de cara com um princípio no meio da rua. Mas eles também não vêm de Marte, nem da Suécia. São Brasil em estado puro, e é preciso conviver com ambos e com aquilo que trazem consigo. Não é opcional.

Alcolumbre e Motta representam a política falha do Brasil, inevitável dentro do sistema atual | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Alcolumbre e Motta são fruto de um sistema político que tem como efeito inevitável produzir Alcolumbres e Mottas. O Brasil não está organizado para funcionar como um país de leis, e muito menos onde o Estado existe para servir à população. É justamente o oposto. O Estado, a vida pública e as instituições no Brasil, no mundo das realidades, existem apenas para manter a corrupção fora do Código Penal, garantir a impunidade perpétua dos corruptos e considerar que a única função útil dos cidadãos é pagar o máximo de impostos para sustentar uma máquina estatal cada vez mais incompreensível. Essa linha de montagem condena o Brasil a ter o Senado e a Câmara que estão aí. É isso mesmo que eles querem, e é para isso que existe política neste país.

A ordem institucional que manda no Brasil não é uma aberração; é um método. Esqueça por um minuto Lula, o PT e Alexandre de Moraes. Eles são o resultado, e não a causa, da miséria moral, da brutalidade e do bloco de más intenções que são o corpo, a alma e o cérebro da vida política nacional de hoje. Seu oxigênio, desde sempre, é a ignorância sistêmica da população — vítima de um dos piores sistemas de educação pública do mundo, conforme se comprova em todas as avaliações internacionais. Isso forma o bioma dos sonhos de todo vigarista político solto na praça — uns 70%, talvez até mais, dos que você vê aí todo dia. Onde entra a ignorância sai a consciência. Onde não há consciência não há noção de princípios, só de interesses. É tudo o que os Alcolumbres querem.

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Moraes e Lula são fruto de um sistema político corrupto, sustentado pela ignorância da população e pela falta de princípios | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

As leis, a prática e a realidade estabelecem que esse povo todo, que não sabe fazer direito as quatro operações básicas da aritmética e não consegue entender um texto escrito em português simples, só tem uma oportunidade de abrir a boca sobre o seu país — a cada quatro anos, nas eleições gerais. Todos os cuidados são tomados pelos políticos de todas as naturezas, então, para impedir que eleições criem qualquer risco de se aferir a vontade real da população. Não estão interessados em eleitores. Estão interessados em clientes. O resultado é que o Brasil tem eleição, mas não tem decisão popular, não de verdade, sobre quem governa, e principalmente sobre o que os governantes têm de fazer no governo.

Todos os truques para fraudar as eleições estão em vigor nos sistemas políticos e eleitorais do Brasil de hoje. Fale com qualquer político brasileiro, salvo algumas exceções, e diga que você gostaria de sugerir uma única melhoria, por modesta que seja, nesse almanaque de trapaças — ele vai entrar em estado de choque. Ninguém aceita mexer em nada, é claro, porque melhorar qualquer coisa prejudica a vida deles — a única em que estão interessados. Temos, assim, o voto obrigatório, que anula a vontade dos eleitores conscientes e responsáveis, e abre a política para todo tipo de demagogo, aventureiro e bandido. Não temos o escrutínio público dos votos; temos o computador do TSE. Temos mais de 30 partidos, ou gangues que só representam os seus proprietários.

Os políticos brasileiros fogem do voto distrital, método de escolha vital em qualquer democracia séria do mundo, como o lobisomem foge da prata em noite de lua cheia. O parlamentar, por esse sistema, só pode ser eleito se ficar em primeiro lugar na eleição do distrito em que se candidatou — e só pode se candidatar em um distrito. Somem aí os malfeitores eleitos com votos caçados no Estado inteiro, mas que não seriam ninguém se tivessem de convencer os eleitores de um bairro, uma cidade ou um conjunto de cidades. Com a campanha restrita a uma área geográfica limitada, não haveria mais desculpa para torrar bilhões do Erário a cada eleição. Mais que tudo, o voto distrital traria para o Brasil a noção, até hoje proibida por aqui, de que a cada cidadão cabe um voto — não mais e nem menos.

Nada falsifica mais a vontade popular quanto o estelionato do “voto proporcional” que existe hoje. Com o país dividido em 513 distritos (para ter como base a composição atual da Câmara dos Deputados), todos com o mesmo número aproximado de eleitores, o voto de um cidadão passaria, enfim, a valer exatamente o mesmo que o voto de outro cidadão — independentemente de onde ele mora. O voto distrital, honestamente fixado pela matemática, daria aos eleitores dos Estados onde há mais eleitores direitos iguais aos dos Estados onde há menos eleitores. Hoje o voto da metade norte do Brasil vale mais que o voto da metade sul — é daí que saem, justamente, os Alcolumbres e os Mottas da vida, mais os Liras, os Calheiros, os Severinos e o resto.

lira e hugo motta
Hugo Motta e Arthur Lira | Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados

Honestamente: pode funcionar com um mínimo de lógica uma democracia em que um político que não tem voto para se eleger, sequer, deputado estadual por São Paulo vira presidente do Senado Federal? Está na cara que não pode. Ou melhor, poder pode — mas aí fica desse jeito que você sabe. Com o seu sistema político atual, o Brasil está programado para dar ruim; não adianta reclamar das moscas se continua no mesmo lugar, para começo de conversa, o objeto de interesse que atrai essas mesmíssimas moscas. É como se tivesse sido introduzido um malware fatal no chip que faz a política brasileira funcionar — você vai gerar um error em qualquer tecla que tocar. O sistema está organizado para produzir escroques. Produz escroques, é claro.

É assim que estamos, ou mais ou menos assim, mas isso não quer dizer que vai ser assim sempre — e, muito menos, que “a única saída é o aeroporto” e outros refrões de losers mal resolvidos que estão sempre atrás da primeira oportunidade de desistir. Ao contrário, há sinais objetivos de que a tendência é de mudança, apesar de todo o oceano de água pesada que impede a vida política brasileira de sair do subdesenvolvimento e entrar no século 21. Não se caminha, com o sistema descrito acima, para um país como ele deveria ser. Mas o Brasil não está condenado a viver para sempre na desgraça do atual regime Lula-STF — uma combinação de inépcia, colapso moral e busca da tirania como provavelmente nunca se viu antes na história da República.

As últimas eleições municipais foram um sinal disso; ficou provado que o governo não tem povo e que, sem uma central do TSE para proclamar a horas tantas “missão cumprida”, Lula não ganha eleição nem para presidente do clube de bocha da Água Rasa. As próximas eleições, quando a população vai escolher não só o presidente, os governadores e os deputados, mas acima de tudo dois terços do Senado, serão outro. O governo Lula não existe: nunca existiu, porque nunca governou, e não dá nenhum sinal de que vá mudar de ideia, porque não tem ideia nenhuma. Sem voto, e com eleição pela frente, o único caminho racional seria cancelar a eleição, ou fazer uma eleição modelo Venezuela — mas isso não é uma questão de querer, e sim de conseguir. Em suma: está duro.

Na falta de alguma definição mais clara, jogam a sua sobrevivência em cima do STF. “O Xandão resolve.” Ou, então, “o Sidônio resolve” — esse que Lula nomeou ministro da Propaganda e já copiou o bonezinho de Donald Trump para Janja e para a militância irem usando enquanto ele pensa em alguma coisa matadora. É pouco. A direita está mais organizada. Está pensando de forma mais articulada para a eleição de 2026, e está trabalhando com os dados da vida real — em vez de ficar perdendo tempo com miragens tipo “só uma guerra civil resolve”, “tem de haver um banho de sangue” etc. etc. (A propósito: quem vai dar o sangue? Não se sabe? Então esquece.) A troca de comando nas duas casas do Congresso é um sinal na direção do realismo e da busca de resultados práticos — algo que o regime Lula-STF não parece capaz de fazer.

Hugo Motta e Davi Alcolumbre são o que se sabe; não poderia haver uma demonstração tão exata do seu caráter quanto a atitude que demonstraram, mais uma vez, em relação à anistia. É uma necessidade elementar do Brasil — um imperativo de ordem moral, legal e política. Motta não foi capaz de dizer “sim” ou “não”, nem isso, sobre se é a favor da anistia. O homem é presidente da Câmara, mas não tem a coragem de informar sua posição sobre uma questão rudimentar de princípio. Alcolumbre já foi contra, logo de uma vez; disse que a anistia “não ajuda a pacificar o Brasil”, ou seja, é capaz de dizer qualquer coisa para puxar o saco de quem tem a chave da cadeia. Mas o fato é que os candidatos à presidência da Câmara e do Senado, na vida real do Brasil de 2025, não eram Winston Churchill e Ruy Barbosa. Eram Hugo Motta e Davi Alcolumbre.

Ou seja: se não tem tu, vai tu mesmo. No caso concreto, a oposição tinha só uma opção que fazia sentido político, e não duas ou três. Ou dava apoio a Motta e Alcolumbre, e ganhava deles a vice-presidência das duas Casas e o comando de várias comissões influentes, ou não ganhava nada — e tanto um como o outro seriam eleitos para os seus cargos do mesmíssimo jeito. O ex-presidente Jair Bolsonaro, que só pretende dar o jogo por acabado quando o jogo acabar, e enquanto isso continua sendo o nome mais citado da direita para a próxima eleição, foi a favor do acerto. Só mostrou, com isso, maturidade, pragmatismo e respeito às realidades. Não fez um único inimigo com a sua decisão, salvo alguns bocós do seu próprio entorno. Ao contrário, fez o que pôde com um perde-perde.

Ex-presidente Jair Bolsonaro, que governou o Brasil entre 2019 e 2022
Bolsonaro demonstrou pragmatismo ao apoiar Motta e Alcolumbre, garantindo influência sem criar inimigos, mesmo em um cenário político desfavorável | Foto: Carolina Antunes/PR

Bolsonaro e quem pensa como ele nessa questão podem ser traídos tanto por Alcolumbre como por Motta, é claro, mas a partir de agora o ônus da traição passa a ser deles — e, de qualquer maneira, fica difícil fazer política se você conta sempre que vai dar tudo errado. É diferente do que fez o deputado Marcel van Hattem, uma das vozes mais ativas da oposição. Ele lançou sua candidatura, mas com a intenção clara e definida de fazer um protesto público — mesmo porque ele é de um partido tão pequeno que não poderia receber função nenhuma das novas presidências. Mas a história é outra com a direita como um todo. Com um governo cada vez mais fraco, incapaz de mudar sua conduta e que imagina resolver seus problemas com os bonés do Sidônio, nunca se pode perder nada tendo apoio no Congresso. Deputados e senadores, pela situação penal de muitos deles, têm medo do STF. Mas têm pânico da rua, do povo e da sua cólera — e pulam de qualquer barco quando sentem que não é mais seguro ficar nele.

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13 comentários
  1. Denis R.
    Denis R.

    Excelente texto. Só penso que tanto na Câmara quanto no Senado a direita deveria ter indicado sim seus candidatos. Em 2018 Bolsonaro se elegeu sem fazer conchavos com os centrão ou a esquerda e ao fazer isso demonstrou para a população que tem princípios e clareza em relação aos caminhos e pautas que iria seguir… Esta política do toma lá dá cá não convence mais ninguém. Realmente tenho minhas sinceras e modestas dúvidas se apoiar candidatos com propostas políticas tão divergentes as da Direita, em troca de comissões, no final vai valer a pena. Espero SINCERAMENTE que eu esteja completamente enganado! Torço para isso na verdade.

  2. ROGILDO GALLO
    ROGILDO GALLO

    Parabéns Guzzo pelo artigo. Sobre o tema, a minha expectativa de que haja alguma mudança para melhor no Congresso é ZERO. O toma-lá-dá-cá vai continuar, com o Congresso, capitaneado por seus presidentes, se vendendo para quem pagar mais. Eu realmente gostaria de ver a dupla Eduardo Girão e Marcel Van Hatten à frente do Congresso, para fazer as mudanças e os expurgos que o Brasil tanto necessita. Mas para isto, primeiro é preciso que nossa população vote em políticos honestos e não em bandidos. Até lá, continuaremos a ver o mesmo de sempre, infelizmente !!!

  3. Dilson Ribeiro de Almeida
    Dilson Ribeiro de Almeida

    👏👏esse Guzzo sabe tudo, fera, o maior escritor político da atualidade!!!

  4. José Sergio do Amaral Mello Filho
    José Sergio do Amaral Mello Filho

    Mais uma vez, parabéns J. R. Guzzo.

  5. José Sergio do Amaral Mello Filho
    José Sergio do Amaral Mello Filho

    Mais uma vez, parabéns J. R. Guzzo.

  6. Reginaldo Corteletti
    Reginaldo Corteletti

    Ter esperança na próxima eleição é o que fica. Mas a turma vai “fazer o diabo” para vencer. Estão com a máquina. Jogar benefícios sociais para as classes média e C e D, como a Argentina fez, é uma opção. Isso vai quebrar o país. Mas quem se importa? Aí voltaremos ao nosso histórico de inflação alta…

  7. Paulo Henrique Orlato Rossetti
    Paulo Henrique Orlato Rossetti

    José Roberto Guzzo simplesmente disse tudo que está entalado nas gargantas de milhares! Bravo!

  8. Paulo Henrique Orlato Rossetti
    Paulo Henrique Orlato Rossetti

    José Roberto Guzzo simplesmente disse tudo que está entalado nas gargantas de milhares! Bravo!

  9. Luciano Espinheira Fonseca Junior
    Luciano Espinheira Fonseca Junior

    Caro Guzzo, ninguém, jamais me convencerá, que a eleição de Alcolumbre/Motta, semana passada, foi baseada em uma estratégia da “oposição”, que teve dois anos para elaborar uma estratégia e não o fez. Consequentemente: Não haverá anistia para Bolsonaro e nem para os presos políticos; a política de compra de votos continuará (a Itaipu Binacional, que liquidou a sua dívida, está aí com um capital financeiro excedente, disponível para o molusco fazer o que bem entender). Além de tudo, a presença de Kassab, estranhíssima criatura, no comando do centrão, nos levará ao pior dos mundos.

  10. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Guzzo escreveu nesse excelente artigo, a realidade nua e crua.Dificil,é duro demais. No frigir dos ovos,você não vai comer um delicioso omelete,vai ter que engolir Motta e Alcolumbre. Apenas um resumo pessoal, a política brasileira é movida ,com raras exceções, com dinheiro e muita corrupção . Só os interesses pessoais, benesses e cargos públicos contam, esses não são chegados ao trabalho. Isso vai durar para sempre?acredito que não. O povo não está gostando nadica de nada,só sair e andar pelas ruas,verá o mundo real dos brasileiros que acordam cedo e trabalham para valer. Vamos aguardar,algo pode mudar.

  11. Célio Antônio Carvalho
    Célio Antônio Carvalho

    É verdade sim, esperar o que desta composição das presidências das casas legislativas? É duro.
    Aliás, esperar o que deste congresso susberviente? Encabrestado, de joelhos?
    A reforma mais importante hoje é a política. Com o voto por distritos, o distrital. Aí sim teremos igualdade e justiça para o cidadão eleitor. Irá ter o seu representante local. Se vai dar certo atuando será outra coisa.
    Mas é tudo uma imoralidade sem fim, uma vergonha atrás da outra. Você ter de apoiar A ou B porque é o que há, como assim?

    1. Célio Antônio Carvalho
      Célio Antônio Carvalho

      subserviente***

  12. Guilherme Garnett
    Guilherme Garnett

    Guzzo, como sempre, nos dá um texto excelente. E verdade que é sempre um insignificante em termos de voto popular que assume o comando destas duas casas da república e que manterá tudo como antes.

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